segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Roberto Saviano, a morte em vida e a sonhada primavera

Jorge Adelar Finatto




O escritor italiano Roberto Saviano afirma que não sabe se está meio morto ou meio vivo.

O fato é que não é mais dono de sua vida. Passa as 24h do dia sob rigorosa proteção policial. Qualquer movimento que faz depende de um cuidadoso detalhamento de segurança.

Para tomar um cappuccino ou comprar uma simples escova de dentes, são necessários complicados arranjos sobre escolha de lugar, formas de chegar e sair, horários, etc. Para não ser morto, muda-se constantemente de endereço.

O drama começou desde que Roberto Saviano publicou o livro Gomorra¹, no ano de 2006, pela editora Mondadori. Nele conta as histórias e a maneira de atuar da Camorra, a máfia da região da Campânia, na Itália, onde está localizada Nápoles, cidade em que nasceu em 1979. Segundo dados do chefe dos carabinieri de Nápoles, general Gaetano Maruccia, responsável pela segurança do escritor, a Camorra tem cerca de 80 clãs e mais de 3.000 integrantes armados, além de uma grande rede de colaboradores.

Os mafiosos não aceitaram a indelicadeza do jovem autor em revelar acontecimentos, esquemas de funcionamento e nomes de integrantes da organização criminosa. Através de ameaças, os Casaleses - clã da Camorra do povoado onde ele cresceu, Casal di Principe - comunicaram-lhe que foi sentenciado à morte.

A máfia não perdoou a divulgação de suas atividades. Não tolerou o fato de a obra tornar-se um êxito editorial poucas vezes visto na Itália e nos países para os quais foi traduzida. Mais de dois milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. Um filme foi feito com base no livro. Dirigido por Matteo Garrone, ganhou o Grande Prêmio de Cannes em 2008.

Os juízes antimáfia italianos consideraram sérias as ameaças contra Saviano. Concluíram pela necessidade de proteção. Em outubro de 2006, o ministro do Interior, Giuliano Amato, determinou a escolta permanente do escritor, que agora tem 31 anos.

O livro Gomorra tornou Roberto Saviano famoso em pouco tempo. Rendeu-lhe o importante Prêmio Viareggio, convites para escrever em jornais e revistas, aparições na televisão, além de dinheiro. Ironicamente, sua vida tomou um rumo absurdo. Tornou-se uma espécie de enterrado vivo em seu próprio país.

A Camorra condenou-o sumariamente à morte. Tirou-lhe a liberdade e, provavelmente, o encanto de viver. Não pode mais ir e vir como qualquer cidadão.

As informações sobre o percurso de Saviano foram detalhadas pelo jornalista Miguel Mora num excelente trabalho feito para o jornal espanhol El País. Ele conseguiu entrevistar Saviano em janeiro de 2009, após um demorado período de tratativas para o encontro. No Brasil, a matéria foi publicada no caderno Mais! do jornal Folha de São Paulo, edição de 26 de abril de 2009.

Aqui estamos, portanto.

Um jovem escritor é condenado à morte por organização criminosa por ter cometido o grave delito de escrever um livro sobre o capítulo da máfia localizado na região de sua terra natal.

Denunciou um mundo de sombras que o atormenta desde a infância. Por isso deve pagar com a vida.

Dados do livro Gomorra, e da reportagem do El País, dão conta de que a Camorra comete em média um assassinato a cada 2,5 dias e fatura bilhões de euros anualmente. Para isso, controla parte do tráfico de cocaína na Europa, lidera nos negócios da extorsão, da agiotagem, da coleta de lixo e do transporte de dejetos tóxicos. Os mesmos informes dão a conhecer que ela controla crianças de 11 anos que atuam como sentinelas. Mais: absorve importantes contratos públicos para os quais são realizadas licitações na região da Campânia. Mas não só: a Camorra também lava dinheiro na área da construção civil na Espanha, compra políticos, faz prefeitos e administra, direta ou indiretamente, 40% do comércio de Nápoles, fabrica roupas no mercado negro para grandes empresas, além de comandar o porto da cidade e de dirigir a importação e a distribuição de mercadorias falsificadas vindas da China.

O estado italiano colocou cinco policiais em alerta máximo 24h por dia para dar-lhe segurança e evitar a todo custo o seu assassinato.

Com isso, o protegido perdeu completamente a liberdade e viu sua vida transformar-se numa espécie de hospício. Amputaram-lhe, liminarmente, sem direito a defesa nem a tribunal de apelação, anos preciosos de juventude.

Destruíram minha vida, mas, quanto a mim, o que fiz já não é meu. É das crianças. ²

Para quem acredita nos valores da convivência e do respeito humano, a realidade vivida por Roberto Saviano implica um alerta importante.

Demonstra o quanto nações civilizadas e democráticas como a Itália não conseguem mitigar os efeitos perversos do crime organizado e nem fazem prevalecer o direito e a justiça. A tal ponto que quem tem de viver escondido e isolado, como se criminoso fosse, é o cidadão inocente e não os agressores da ordem jurídica.

A pena imposta pela máfia atingiu seus primeiros objetivos, colaborando para o abalo e a insegurança psicológica da vítima, na medida em que a coloca em situação de alta vulnerabilidade. De imediato, vê-se que os criminosos alcançam seu desiderato, reduzindo a vida do inimigo a um jogo que o desestabiliza e o faz viver uma espécie de morte em vida.

Não sei o que vai acontecer a Roberto Saviano. O que não se pode, contudo, ignorar são as muitas mortes que ele viveu nesse período, e que ainda viverá no seu cotidiano de morto-vivo.

Roberto Saviano foi condenado por um tribunal de facínoras e permanece com seus direitos civis suspensos enquanto durar a condenação. Vive em estado de invisibilidade vigiada. Sequer operações contratuais singelas como comprar através de cartão de crédito ele pode realizar.

A morte em vida de Saviano é um problema da Itália, mas não só. Diz respeito a todos nós.

O crime organizado atravessou as fronteiras nacionais e opera em quase todos os lugares do mundo. A articulação das organizações criminosas entre si é uma realidade. Nenhum país conseguirá com soluções caseiras pôr um limite nessa criminalidade que afronta os direitos fundamentais.

É tempo de os países democráticos passarem a agir de forma integrada e conjunta no combate ao crime globalizado. Os prejuízos econômicos e sociais derivados desta criminalidade são incalculáveis.

Existem, claro, os deveres de casa de cada nação.

No nosso Brasil, a criminalidade banalizou-se e alcança níveis assustadores. Qualquer pessoa atenta sabe que é preciso investir na construção de presídios, na contratação e boa formação de policiais, na melhor remuneração e apoio aos profissionais da área da segurança, no investimento e na modernização desta estrutura, no ensino voltado para a efetivação dos valores da vida em sociedade.

E, mais importante que tudo, é necessário marcar a presença do Estado com cidadania, através da concretização de direitos. Isto significa, entre outras medidas, a construção de creches, escolas, núcleos de formação profissional, centros comunitários, hospitais, postos médicos, locais públicos para atividades esportivas e culturais, etc.

O mal dos males, a corrupção, precisa ser combatido em todos os setores da vida pública, inclusive nas altas esferas de poder do estado.

Colocar um limite no avanço da criminalidade organizada passa pela atenção básica à vida e pelo respeito aos direitos dos cidadãos, direitos estes que o estado brasileiro tem negligenciado ao longo de séculos.

No momento em que escrevo estas linhas, onde estará Roberto Saviano? Em que esconderijo longe de Nápoles amargará mais um dia ou uma noite de exílio? Terá reencontrado o irmão e o pai, que perdeu de vista desde que tudo começou? Terá recebido algum recado da namorada que o deixou? Os amigos que o abandonaram após o lançamento do livro terão dado algum sinal?

Sentirá o escritor o aroma das flores quando chegar a primavera na Itália, com seus frutos e seivas, apesar da terra enfraquecida pela violência e pela indiferença de muitos?

Falando do exemplo de resistência de outras pessoas que viveram situações parecidas, ele declarou:

Tampouco me esqueço das cartas e dos diários do juiz Giovanni Falcone (1939-1992), o que ele escreveu e publicou, porque resistiu a ataques cotidianos, parecidos com os que eu sofro.³

Espero que a luta de Roberto Saviano por liberdade de expressão e pelo direito de se ver livre de uma condenação inescrupulosa e covarde sirva para acordar - e unir - as pessoas do mundo inteiro que acreditam na justiça como valor essencial da vida.

Ser solidário com Roberto Saviano significa dizer não à violência como modo de vida, além de ser uma afirmação dos direitos humanos e da esperança.

________

1. Gomorra: a história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana. Roberto Saviano. Tradução de Elaine Niccolai. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 4ª ed., 2009.

2. Entrevista concedida a Miguel Mora.

3. idem.

Giovanni Falcone, juiz italiano que enfrentou a máfia, sendo por ela assassinado em 1992. Símbolo da reação da sociedade contra a barbárie, Falcone é referência mundial da magistratura na luta contra o crime organizado.

Foto do escritor: Speranza Casillo - http://www.speranzacasillo.com/

Site de Roberto Saviano: http://www.robertosaviano.it/

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