quarta-feira, 5 de maio de 2010

Nefelindo e o aeroplano

Jorge Adelar Finatto


Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneom na estação de trem abandonada,  traz dentro de si uma luz que cresce e se projeta nos outros, sempre que coisas nefastas acontecem em Passo dos Ausentes.


O aeroplano está destruído no chão da Praça da Ausência. O pouso forçado aconteceu na tarde de sábado. As pessoas estavam em suas casas, encolhidas em volta do fogão a lenha, quando ouviram o forte barulho.

Nefelindo Acquaviva foi encaminhado ao hospital, onde se recupera do infortúnio. Um milagre, segundo o médico. Foi a oitava queda nos últimos dois anos. Quando o colocaram na cama, depois dos procedimentos de urgência, estava com a cabeça e o tórax enfaixados. Através de gestos demorados, pediu lápis e papel.

"Ninguém alimente ilusões. Eu não vou desistir", escreveu com a letra trêmula.

O pioneiro da aviação de Passo dos Ausentes é obcecado pela ideia de ir até Porto Alegre num aparelho mais pesado que o ar por ele próprio inventado no galpão-oficina do fundo do quintal. A aeronave de Nefelindo é uma espécie de motociclo voador pintado de branco com uma águia negra desenhada nas laterais. O piloto fica dentro de um tipo de casulo. Na parte de trás tem uma chaminé e um pouco mais à frente um par de asas. Ao lado do casulo existe um pequeno bagageiro acoplado.

Como essa coisa voa é um mistério que somente Nefelindo conhece.

Naquela trágica manhã, ele decolou da pista improvisada perto do galpão, alçou voo rasante sobre as cercas, árvores e telhados. Quando contornava a torre da igreja, em direção ao sul, o motor soltou estouros e começou a falhar. O objeto voador identificado como Águia Negra perdeu altura rapidamente. Mergulhou na copa de um velho plátano e, em seguida, veio abaixo. Quem assistiu à queda – houve algumas testemunhas - não entende como Nefelindo sobreviveu. Saiu cambaleando da Águia Negra antes de desabar no chão.

A história é sempre a mesma. Trabalha durante meses na preparação da aeronave. Um belo dia fecha a casa onde vive sozinho, coloca a mala de couro no bagageiro, liga o motor e parte. Poucos minutos depois, cai.

Nefelindo usa o capacete de couro marrom e a manta branca que pertenceram ao avô, piloto na Primeira Guerra Mundial.

- As pessoas não se dão conta do que está acontecendo, costuma dizer. Estamos cada vez mais solitários e perdidos. Não temos sequer estrada em condições de chegar e sair daqui. Nem no mapa do Rio Grande do Sul nós aparecemos. Estamos cercados pela neblina e pelo mato. Ninguém sabe da nossa existência. Somos ruínas vivas.

Na noite que se seguiu ao desastre, Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneom na estação de trem abandonada, foi até o jardim do hospital e executou canções perto da janela do quarto do invencível aviador.

Juan Niebla traz dentro de si uma luz que cresce e se projeta nos outros, sempre que coisas nefastas acontecem em Passo dos Ausentes.

Longe do mundo, caminhamos na névoa. Precisamos do calor uns dos outros. Somos poucos e invisíveis.

Nefelindo tem a nossa têmpera. Luta para atravessar as brumas da solidão. Como todos nessa cidade perdida, carrega a vocação para os altos vôos.

O resto, como diz, são os riscos de estar vivo e sonhar.

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Foto: J. Finatto

Um comentário:

  1. De certo modo, Adelar, esta tua narrativa redimensiona o mito de Ícaro numa certa carnavalização gaudéria.
    Esta atmosfera fantástica de uma cidade envolta na névoa, com habitantes peculiares, é uma construção de sonho e paraíso perdido.
    Uma Xangrilá, Atlântida, Passárgada, um oásis em meio ao caos contemporâneo.
    Sempre vale a pena sonhar!

    Abraço.

    Ricardo Mainieri

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