quarta-feira, 17 de março de 2010

Homem com naufrágio dentro

Jorge Adelar Finatto



O homem morava dentro do escafandro.
Os peixes o acompanhavam aonde quer que fosse.
Habitava o território de uma aquarela marinha.
As tardes povoadas de barcos, gaivotas, ventos, búzios.
Ela partiu certa manhã para um giro em torno da ilha onde viviam.
Gostava de ouvir o rumor azul do mar batendo nas pedras.
Nunca mais retornou.
O homem foi mirar os longes na beira do alto penhasco.
A barba cresceu, o tempo misturou as folhas do calendário, enquanto ele esperava.
A lágrima verteu cálida sobre a face fria.
Ele foi então morar no interior do escafandro.
Homem com naufrágio dentro.
Ela estava deitada no leito submerso do seu coração.
Nada em sua nudez lembrava a cálida presença.
O rosto parecia sereno, feliz.
Os cabelos flutuavam como anêmona.
Ele quis morar com ela no fundo das águas.
O irremediável abismo o chamava.
Muitas noites adormeceu com a esperança de não acordar.
Os peixes desenhavam coloridos traços ao redor do homem para despertá-lo.
Um dia ele acordou nas profundezas da manhã austral.
Uma força impressionante puxou o escafandro, ele enfim subiu,
arrastando suas correntes.
A praia vazia, as palmeiras, o horizonte.
A voz dela se distanciando na trompa dos búzios.
O homem saiu a andar na praia deserta da aquarela.
O que ele fez para suportar todas as manhãs que vieram depois? É um segredo que só os cavalos-marinhos e as anêmonas conhecem.

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Foto: J. Finatto. Escafandro utilizado por velhos marinheiros da Fragata Sarmiento, hoje museu naval, em Puerto Madero, Buenos Aires.
 

Vivo, vivíssimo*

José Saramago

Intento ser, à minha maneira, um estóico prático, mas a indiferença como condição de felicidade nunca teve lugar na minha vida, e se é certo que procuro obstinadamente o sossego do espírito, certo é também que não me libertei nem pretendo libertar-me das paixões. Trato de habituar-me sem excessivo dramatismo à ideia de que o corpo não só é finível, como de certo modo é já, em cada momento, finito. Que importância tem isso, porém, se cada gesto, cada palavra, cada emoção são capazes de negar, também em cada momento, essa finitude? Em verdade, sinto-me vivo, vivíssimo, quando, por uma razão ou por outra, tenho de falar da morte…

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*O Caderno de Saramago.
Texto de 18/11/2008.
http://caderno.josesaramago.org/.
Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/