quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A cidade perdida: as origens

Jorge Adelar Finatto




Uma cidade de fantasmas habita um lugar ermo, no cume das montanhas, nos Campos de Cima do Esquecimento.

O leitor talvez se pergunte por que, afinal, Passo dos Ausentes, lugar onde escrevo essas linhas, não aparece no mapa do Rio Grande do Sul nem em nenhum atlas.

Muitas vezes também me fiz essa pergunta. Não encontrei até hoje uma resposta plausível. Para nós, habitantes desta cidade esquecida, a invisibilidade é um mistério difícil de entender.

Não nos veem e não nos sentem.

Nós o que vemos é a andança das nuvens nos contrafortes da solidão.

Oficialmente, não existimos. Não estamos no mapa. De onde vem essa ausência?

A Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária,  Geológica e Astronômica de Passo dos Ausentes já encaminhou diversos expedientes aos órgãos do governo, em Porto Alegre, pedindo providências. As respostas são sempre evasivas. “Vamos examinar”, “estamos estudando”, “faltam dados verossímeis acerca da existência da cidade e sua história”.

Mas como? Acaso nos tomam por seres de papel e tinta?

Passo dos Ausentes é uma espécie de Atlântida, a lendária ilha perdida no fundo tenebroso do oceano.

Uma Atlântida invertida, é certo, que caiu para o alto e desapareceu a 1.800 metros de altitude.


Somos seres invisíveis, desaparecidos vivos. Mortos na memória oficial e nos meios de comunicação.

Don Sigofredo de Alcantis, nosso filósofo-mor, costuma dizer que fomos fundados por um grupo de índios guaranis e padres jesuítas. Eles vieram de São Miguel Arcanjo, após a destruição da redução ocorrida durante a Guerra Guaranítica, em meados do século XVIII, quando portugueses e espanhóis acabaram com os Sete Povos das Missões.

Don Sigofredo é o guardião da nossa memória.

A barbicha grisalha, entradas no cabelo, o cavanhaque branco em forma de v, as extremidades do bigode levantadas para cima como a perscrutar o misterioso universo, o velho pensador conta histórias sentado no banco da praça ou caminhando em volta dos seus jardins.

Os dias não se contavam em horas, mas em suspiros, afirma ele.

O rumor do vento nas coberturas de capim santa-fé das cabanas, na beira do Rio dos Ausentes, era a música daqueles inícios.

Depois aqui chegaram cinquenta pessoas, entre crianças, mulheres e homens, todos escravos foragidos de estâncias do sul do estado. Livres, integraram-se na comunidade local.

Após, vieram algumas famílias de andaluzes, fugidas da Espanha por razões não muito bem esclarecidas. Os espanhóis tinham sido recebidos com antipatia nas metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo. Traziam na bagagem ideias utópicas de conteúdo socialista.

O tempo passou. Mais tarde subiram as montanhas indivíduos russos, polacos, alemães, italianos, portugueses e um grupo de judeus e árabes que chegaram juntos.

Ninguém sabe ao certo como e por que essas pessoas vieram parar em Passo dos Ausentes.




Toda essa gente tinha em comum algum trauma de perseguição por razões políticas, filosóficas ou relacionadas à cultura e etnia.

Em Passo dos Ausentes, encontraram refúgio e paz para viver, reconstruir sua história, trabalhar e criar filhos. Não demorou muito para que a cidade se tornasse produtora de boa variedade de produtos agrícolas, de artesanato e de utensílios de pequena indústria. A prosperidade ocorreu no auge da estrada de ferro nos anos de 1940. O declínio veio com o fim da ferrovia na década seguinte.

A população da cidade, que não era grande, passou a diminuir. As pessoas começaram a ir embora em busca de um futuro.

A memória e o afeto têm nos preservado da extinção. Mas não sabemos até quando.

Íngremes e tortuosos são os caminhos através dos paredões de basalto.

Muito frio, chuva, vento e neblina nos separam do mundo.

Don Sigofredo diz que é do nosso modo de ser a saudade das estrelas que desapareceram há muitos milênios. A luz desses astros nos chega viajando pela noite do tempo infinito.

Somos testemunhas de uma claridade que se apagou.

Por que não estamos no mapa?

Somos invisíveis como a nossa história e a nossa cultura.

Às vezes nos reunimos na praça para ouvir a pequena orquestra sinfônica. O Concerto para Violão e Orquestra, de Heitor Villa-Lobos, é a música predileta de Don Sigofredo. Acho que é também a música de Passo dos Ausentes.

Somos poucos e invisíveis.

Na solitude das noites de bruma ouvimos as histórias uns dos outros.

Não sabemos o que será da cidade e de nós.

Mas quem sabe alguma coisa nessa vida?

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Texto publicado em 25/12/2009.
Fotos: J. Finatto