segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Um sopro de claridade

Jorge Adelar Finatto


Um resto de luz ilumina o pinheiro. Essa é uma das visões que se tem do Vale do Olhar, em Passo dos Ausentes.  A vista é de uma janela que não se apaga nunca, a do poeta Farandolino Brouillon. As noites de frio e neblina (isto é,  as noites do ano inteiro nessa cidade que só conhece uma estação, o inverno) sempre o encontram trabalhando na antiquíssima escrivaninha de peroba rósea. O bardo só se recolhe à cama depois que a manhã se anuncia no recorte das montanhas. Dizem que Farandolino sofre de alta solidão e falta de mulher pra dividir a vida, por isso não dorme à noite.

Don Sigofredo de Alcantis, filósofo, guardião da nossa memória e presidente vitalício da Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Geológica e Astronômica de Passo dos Ausentes, tem, como sempre, seu parecer, que assinou na tarde de domingo numa conversa com seus discípulos (nós), na Praça da Ausência:

- A mulher é talvez o único caminho que um homem tem de entrar no paraíso. A passagem luminosa. Farandolino nunca fez essa travessia. O que o move a atravessar as noites em claro, em direção às manhãs, é o medo de acabar a vida trancado no escuro de si mesmo, dentro da tapera fria e abandonada da sua alma.


Claudionor, o Anacoreta, e Palomar Boavista, o astrônomo-mor, aplaudiram de pé a explanação. Os demais permaneceram, como eu, em constrangedor silêncio. O que fazer com isso?

A vida de todos é mesmo um fundão no fundo do abismo.

Farandolino raras vezes sai de casa. Da janela do escritório, observa as brumas dos Campos de Cima do Esquecimento. Honorata Ferreira cuida da casa e dele próprio desde 1960. Ela tem 78 anos e antes de retirar-se, nos fins de tarde, deixa-lhe a mesa posta para o café noturno. Ninguém sabe o que será dele no dia em que ela não mais estiver ali.

Juan Niebla é o único confidente que Farandolino Brouillon  tem neste mundo. Músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade, Niebla costuma dizer que, enquanto houver um homem sonhando com a aurora, a escuridão não dominará.

- No dia em que a aurora não mais se levantar da  treva,  estará encerrado meu ofício de poeta - escreveu Farandolino com o negro lápis na folha branca.

O poeta lê, escreve, consulta  os cartapácios no silêncio da biblioteca, prepara e espera  o amanhecer. Por isso  a treva não se instalou completamente em Passo dos Ausentes.

- O poeta - fala com voz mansa e grave Juan Niebla - é o guardião dos nossos sonhos de beleza, enquanto espalhamos tristeza e morte por aí. Durante nossos delírios de vaidade, grandeza e inveja, eliminamos o outro. Confio que o vate  continuará a abrir o portal da cidade pra receber o amanhecer. O poeta vale e vela por nós.

Resta, ao menos, um sopro de claridade na voz da poesia.

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Fotos: J. Finatto