quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Escrito do amor perecível

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. São Francisco de Paula
 

Poderia jurar amor eterno à pequena borboleta que agora cruza a beira do lago. Ela carrega no coração, como eu, a melancolia antecipada da partida iminente do jardim.

Está escrito que nosso tempo é breve. Teremos de deixar o jardim que tanto amamos. E não sabemos o que nos espera além dele. Talvez exista um outro jardim depois desse.
 
Levaremos a saudade dos dias vividos entre as flores, as fontes, os córregos, as árvores. Não concordamos, claro, com dias assim tão escassos. Mas o que fazer? Nosso coração pulsa nas têmporas.
 
Os dias ruins e a rotina nunca nos tiram a vontade de viver. 
 
A borboleta escreve minúsculos bilhetes que vai soltando ao vento. Amamos as magnólias, as rosas, as nuvens e os hibiscos.

Escreveu a borboleta estas palavras na folha de um plátano:

Eu só queria mais um dia para estar no jardim e dizer do meu amor a cada um dos seus habitantes. Quero que ao menos recordem de mim quando lerem estas palavras.

Lembrem meus voos silentes e suaves. De como amei o farelo, o miúdo da vida.

Estou prestes a deixar o jardim e isso me dá tanta tristeza.

Quero deixar escrito este amor perecível.

Antes de cair e secar no chão.
 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Os desolados

Jorge Adelar Finatto

 
photo: J. Finatto

 
As manhãs fogem do escuro.

A solidão é um negro capuz que se veste nos retirados da dor.

Tive medo de ver os escombros. Os difíceis haveres do abandono. Havia uma mulher chorando naquele breu. Quem? Não divulguei.

O coração humano gira em estranhos círculos. O traçado torto da vida. Quem puder se segure, senão cai no perau. Eu, quando escuto gente chorando, sinto névoa andando à volta.

Coisas que vi. Meu coração barroco. Aquele choro me doeu. Mas eu fui. Foi quando meus olhos divulgaram ela. A mulher era uma visão sob a pérgula. Eu não sabia o que era beleza até aquele quando.

Estava sentada num banco de pedra ao lado de uma camélia vermelha, perto da fonte. Havia uma escada com seis degraus que terminava no ar. Ligava parte alguma a lugar nenhum. A casa desmoronada no íntimo da pessoa.

A mulher, sua triste alma, aquela ruína. Me aproximei no cuidadoso jeito. Era uma tarde de junho como essa. O frio, frios.

A mulher - a visão - fez sinal para eu parar e esperar.

O que fiz nos respeitos. Ela se levantou, arrumou o vestido, olhou o céu. Entre as duas mãos largou a face e os cabelos de linho, depois seguiu sozinha. O tempo andou.

Eu vivia no lugar perdido, arrostando sol e vento, sem eira nem beira.

Os loucos dias no sanatório do mundo. Os ermos. Caminhos que se andam.

Um dia de fina luz de primavera ela veio em minha direção, pegou no braço meu. Caminhou, caminhamos. Em silêncio. Palavras que se dizem sem falar. Aconteceu a brilhante estrela caindo no meu caminho.

O punhal que me rasgava por dentro foi saindo, saiu.

Nos acolhemos, reunimos as raras pertenças.

Me tornei sentimento. Sentimentos.
 
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Texto publicado em 03/05/2010.
 

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Série Retratos 8



"A Catedral", escultura de Auguste Rodin (1840 - 1917)
Museu Rodin, Paris. photo: j.finatto



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Autor da photo: Jorge A. Finatto
Pedidos de cópia ou reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail j.finatto@terra.com.br
 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Tragédia de Santa Maria

Jorge Adelar Finatto

A dor diante do trágico acontecimento de Santa Maria é infinita. Manifesto minha solidariedade e profundo sentimento aos familiares e amigos dos que perderam a vida.
 

Mulheres escritoras

Jorge Adelar Finatto
 

Margaret Atwood. Foto do site oficial da escritora*


Estou lendo um livro muito interessante da escritora canadense Margaret Atwood, nascida na cidade de Ottawa em 1939. Trata-se de Buscas Curiosas**, conjunto de textos avulsos nos quais a autora aborda assuntos relacionados a sua experiência de escritora e leitora, desde a infância até a maturidade.

Os textos ocasionais, como os chama, foram escritos no período de 1970 a 2005.
 
Nunca tinha lido nada desta autora que é poeta, romancista, contista, ensaísta e roteirista. Entre suas premiações estão o Booker Prize de 2000 por O assassino cego e o Príncipe das Astúrias de 2008. Peguei o livro na estante da livraria levado pela intuição, gostei do título e da capa, li alguns trechos ao acaso (a força do acaso) e acabei comprando.

Não me arrependi. Margaret Atwood é uma escritora obstinada no seu trabalho e uma observadora que lança luzes generosas sobre aquilo que escreve.
 
Ela não mitifica o ato de escrever, tem uma visão realista do ofício. Ao mesmo tempo, é capaz de voar com as palavras e olhar o mundo lá do alto com ternura. Escreve simples e claro.
 
Chamou-me a atenção, entre outros, o texto Nove começos, em que fala sobre os problemas que as mulheres escritoras enfrentam diante de certa mentalidade preconceituosa. Diz ela:
 
"É preciso ter uma quantidade considerável de coragem para ser escritora, uma coragem quase física, do tipo que se precisa para atravessar um rio sobre troncos flutuando. (...)

Uma proporção de fracassos vem embutida no processo de escrever. A lata de lixo não evoluiu sem motivo. Pensem nela como o altar da Musa do Olvido, a quem você sacrifica seus primeiros rascunhos malsucedidos, as provas de sua imperfeiçao humana. Ela é a décima musa, aquela sem a qual nenhuma das outras pode funcionar. A dádiva que ela lhe oferece é a liberdade da segunda chance. Ou de tantas chances quantas você quiser arriscar."(pág. 167).

Nada como ouvir alguém que tem algo a dizer sobre a difícil condição do escritor e o faz de forma tão lúcida quanto inspirada. Margaret Atwood fala de verdades que se aplicam a mulheres, e também a homens, que se lançam no turbulento e belo caminho da escrita.

Agrada-me a sinceridade com que a escritora encara os mais diversos assuntos, discorrendo com desenvoltura a respeito de livros, autores e situações vividas. O livro prende a atenção e em nenhum momento se mostra pesado, pelo contrário, nos leva por paisagens variadas com profundidade e sutileza.

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*Margaret Atwood:
  http://www.margaretatwood.ca/index.php
 **Buscas Curiosas, Margaret Atwood. Tradução de Ana Deiró. Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2009. 

domingo, 27 de janeiro de 2013

Série Retratos 7 ( Colonia del Sacramento, Uruguai)




photo: j.finatto



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Autor da photo: Jorge A. Finatto
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As imagens são protegidas pela legislação que regula os direitos autorais.  

sábado, 26 de janeiro de 2013

A aventura do flamingo cor-de-rosa

Jorge Adelar Finatto


Flamingo. Foto: Aaron Logan. Fonte: Wikipédia


O flamingo pousou na popa do veleiro quando passávamos pela Ilha do Barba Negra, na Lagoa dos Patos (que, àquela hora, brilhava sob o sol amarelo e intenso da tarde de fevereiro).

Pousou ao lado de Filipo, o papagaio marinheiro, que estava sentado e distraído na beira do barco, os olhinhos fechados, peito estufado respirando a brisa. Filipo deu um pulo de susto, o boné de marinheiro caiu na água. O flamingo recolheu-o com o bico.

Essas surpresas acontecem na vida de quem navega. Tínhamos saído para dar um giro com nosso veleiro Solitário, a fim de ver as belezas do rio, suas ilhas e pássaros. E também para ficar distante do ruído e do trânsito violento da cidade, da correria agressiva e sem sentido.

Filipo indagou do flamingo, na linguagem das aves, qual era seu nome e de onde vinha. Ele respondeu que se chamava Arquibaldo e que vinha de Amsterdam, sua cidade natal, na Holanda. Vivia com a família num barco abandonado num dos canais daquela bela cidade. Estava em viagem de férias com os pais e irmãos quando o inesperado aconteceu.
 
Amsterdam. photo: j.finatto
 
Na altura do arquipélago dos Açores, uma tempestade dispersou a família de flamingos e arremessou Arquibaldo em outra direção, separando-o do grupo. Depois de vencer o medo e a ventania, voou muito e pegou carona num navio. Acabou chegando ao sul do Brasil após vinte dias. Estava exausto e atordoado com os últimos acontecimentos.

Os flamingos, em geral, têm a plumagem cor-de-rosa. Em Arquibaldo essa cor é ainda mais viva, um rosa antigo belíssimo. Providenciamos uma boa alimentação e um bom descanso para nosso novo amigo.

Arquibaldo é um flamingo adolescente e observador, com bom humor e espírito de aventura. Sentiu-se tão bem que pretende ficar conosco até o final do verão, quando então regressará para junto de sua família na casa-barco de Amsterdam.

O peixinho Moisés, nosso companheiro de navegações, saltou do rio para o interior do barco e ficou dentro do balde conversando com Arquibaldo.

Na Ilha das Pedras Brancas, rumamos em direção ao Parque da Harmonia e, daí, para o velho cais de Porto Alegre, sempre ouvindo a incrível história do mais novo membro da tripulação.

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Mais aventuras do veleiro Solitário em:

Navegador de barco de papel
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/08/navegador-de-barco-de-papel.html

A volta do barco de papel
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2010/10/volta-do-barco-de-papel.html

Texto publicado em 10.02.2012.
 

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Série Retratos 6



photo: j.finatto


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Autor da photo: Jorge A. Finatto
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quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O menino da água-furtada

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto


O habitante da água-furtada sobrevive na memória de um sótão. Veja este álbum invisível que se abre como um segredo sobre a tela do computador.

Aqui está a casa velha de pinheiro, a parreira no quintal amadurecendo a uva moscatel, a janela aberta sobre o telhado para o Vale do Olhar,  a horta com seus aromas e gostos do passado, os pintos correndo no pátio ao lado da casa como pequenas bolas douradas.

O arroio atravessa o fundo do quintal, onde o menino molha a cabeça e os pés e depois se deita na margem, fecha os olhos e voa até as esferas celestes.

O arroio vem não se sabe de onde, passa pelo morador do oblívio e segue adiante, murmurante, risonho, leva os barcos de papel do menino mundo afora.

Hoje os mortos vieram visitar o menino, em silêncio sentaram-se em volta da mesa da sala diante dos retratos. Estavam com a cabeça baixa e sussurravam coisas caladas, suspiravam pelos dias vividos.

Os mortos vieram para o jantar na casa vazia. Depois foram desaparecendo lentamente, um a um, deixando um pó azul e branco no ar.

Os sonhos do menino não estão presos a nada. Em algum lugar bate o sino no meio da noite. O menino da água-furtada abre os olhos.

Tudo ainda tão vivo no coração.

Pedaços de seda coloridos pendurados nos galhos das árvores balançam ao vento.

A solidão descarnada das horas no sótão.
  

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Walmor Chagas e a beleza da palavra falada

Jorge Adelar Finatto


Walmor Chagas em seu sítio, 2006. Foto: Fernando Donasci. Folha da S.Paulo
 
 
No mês de outubro passado, no texto Um bosque no amanhecer*, falei da importância da Biblioteca Pública do Estado na vida de muitas pessoas e na minha em particular. De passagem, relembrei, também, um recital inesquecível do ator Walmor Chagas (1930-2013) apresentado naquela biblioteca, no início dos anos 1980, se estou bem lembrado.

Nunca esqueci aquela apresentação. A beleza da palavra escrita, quando ouvida da boca de Walmor Chagas, era inefável.

Pouca gente sabia dizer um texto como ele, especialmente poesia. O recital Partilha (título de um poema do poeta e escritor porto-alegrense Paulo Hecker Filho, amigo do ator e autor do roteiro), que ele apresentou no Salão Mourisco da Biblioteca Pública, foi um grande momento.

Quem não tinha intimidade com a literatura, ao ouvi-lo, passava a se interessar e ir atrás de textos e autores. Não sei se gravaram o recital em vídeo, tomara que sim.

Walmor Chagas tinha o dom de dar vida ao texto literário, na sua maneira de dizer, bem viva, bem sentida, sem excessos, sem faltas.
 
Infelizmente, o ator foi encontrado morto com um tiro na cabeça, na última sexta-feira, dia 18, na casa de seu sítio no interior da cidade paulista de Guaratinguetá. O corpo foi cremado no sábado. Os dados levantados pela polícia, até o momento, levam a crer em suicídio, segundo informou a imprensa.

Nascido em Porto Alegre, Walmor Chagas tinha um carreira longa e rica, tendo feito novelas e séries para televisão, além de cinema e teatro. Era, essencialmente, homem de teatro e cinema.
 
Depois de assistir Partilha, fiquei imaginando o quanto teria sido bom se o Ministério da Cultura ou outro órgão, até mesmo algum particular, patrocinasse não só peças de teatro como recitais de Walmor Chagas para percorrer o Brasil, levando literatura e despertando leitores com sua voz, sua elegância e sua interpretação de mestre. Além disso, esses programas poderiam ser gravados para televisão.
 
Perdemos Walmor Chagas. Já não será possível vê-lo nem ouvi-lo. O seu talento poderia ter sido melhor aproveitado.  Com sua morte, lá se vai não apenas um grande ator, como também grandes oportunidades perdidas.

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*Um bosque no amanhecer:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/10/um-bosque-no-amanhecer.html
 

domingo, 20 de janeiro de 2013

Série Retratos 5 (Drummond em Copacabana)








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Autor da photo: Jorge A. Finatto
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sábado, 19 de janeiro de 2013

A pátria da língua portuguesa

Jorge Adelar Finatto


Fernando Pessoa nos azulejos do Martinho da Arcada*. photo. j.finatto


Após um tempo sem falar português, num país distante, quando, enfim, entrei no avião da TAP, de regresso a Lisboa e, horas mais tarde, ao Brasil, disse aos tripulantes, na porta de entrada da aeronave: a nossa pátria é a língua portuguesa.

Aquilo saiu assim, de repente, quase um desabafo, ao reencontrar pessoas que compartilham o mesmo idioma, depois de um período de exílio longe da língua.

Minha pátria é a língua portuguesa. A frase de Fernando Pessoa, do Livro do Desassossego, trecho 259, expressa essa verdade cósmica e sentimental: pertencemos à língua que nos viu nascer, essa que sussurrou aos nossos ouvidos, nos instantes inaugurais da vida, o som das primeiras palavras de acalanto e consolo.


Amanhecer no oceano perto de Lisboa. photo: j.finatto


Os membros da tripulação não se mostraram espantados com o palavroso passageiro, ao contrário, aderiram à minha saudação, talvez levados por um sentimento de saudades de Portugal e do Tejo, naquela tarde fria do norte europeu.

A maternal língua de Camões nos lambe desde o berço, como lambeu Pessoa, Vitorino Nemésio, Eugénio de Andrade, Carlos Drummond, Heitor Saldanha, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Henrique do Valle, entre tantos, da mesma maneira que lambe o vendedor de peixe do mercado público de Porto Alegre, a florista da Praça da Aurora, o homem da banca de jornais.

O português cultivado no Brasil enriqueceu-se dos sons e novos sentidos advindos das falas de origem africana, indígena, espanhola e de todos os povos que vieram ao continente brasileiro.

A língua portuguesa, amarga e doce, nos habita, e com ela tentamos nos comunicar no duro ofício de viver, sonhar e sofrer. Essa pátria nos carrega dentro de si aonde quer que nos levem os ventos oceânicos.

A língua é nosso território espiritual no mundo.

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*Café-Restaurante Martinho da Arcada, um dos mais antigos do mundo, em Lisboa. Patrimônio Nacional Português. Nele Fernando Pessoa costumava beber, jantar e receber amigos no balcão do café (foto acima) e na sua mesa cativa. O proprietário de então, reza a lenda, amigo a admirador do poeta (pobre), não cobrava as suas despesas. Há no local cópias de manuscritos, de fotografias e outros documentos do poeta. Fica na Praça do Comércio (ou Terreiro do Paço), sob os arcos, quase à margem do Tejo. Este post foi publicado anteriormente em 28.7.2012. (Jorge Finatto)
 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O violão de Ulisses Rocha

Jorge Adelar Finatto 

Ulisses Rocha

 
Um pedaço oco de madeira com algumas cordas. Com isso apenas, o artista é capaz de tanger o infinito. O universo inteiro cabe no som de um violão.

No violão cabem Bach e Tom Jobim, Villa-Lobos e Chopin. No violão cabem as nossas dores e as nossas alegrias.

A nossa partilha e a nossa solidão cabem no violão.
 
Um dia eu quis tocar violão. Este instrumento tem uma maneira de dizer as coisas que as palavras não conseguem. Isso foi há muito tempo.

Não esperava tornar-me um Andrés Segovia ou um Baden Powell, como de fato não aconteceu. Dedilhei o pinho como quem encosta a ponta dos dedos numa estrela distante.

Vivi momentos de felicidade ao dedilhar as seis cordas. Mas tinha pouca desenvoltura.

Percebi que teria mais encanto em ouvir do que em tocar. O amor pelo instrumento, porém, nunca se perdeu.

Nos últimos tempos tenho ouvido os violões de Villa-Lobos, Joaquín Rodrigo, Mario Castelnuovo Tedesco, Segovia, Baden, Paco de Lucía, entre outros.

Mas hoje quero falar de um músico que conheci através de um disco que comprei no mês passado. Trata-se de Estudos e outras idéias, do ano de 2005, com 16 músicas de autoria de Ulisses Rocha.

Nascido no Rio de Janeiro em 1960, tornou-se um virtuose do violão. Faz apresentações no Brasil e no mundo. É professor da Faculdade de Música da Unicamp desde 1990.
 
Ulisses Rocha é um violonista e compositor de grandes recursos.

A sintaxe da frase musical, como a de um poema, é feita de sentimento e técnica. De silêncios e pequenas eternidades harmônicas. É isso que eu espero de um músico e de um poeta. Foi esse apuro em construção que encontrei no trabalho deste artista.

O disco de Ulisses Rocha é um presente para a alma sensível. Ilusão e Rumores, por exemplo, são duas obras-primas do violonista que estão no disco. Mas há outras.

Se você gosta da arte do violão, eis aí um belo momento de talento e musicalidade.
 

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Somos uma pequena ilha no mar do tempo

Jorge Adelar Finatto



photo: j.finatto. Ilha das Pedras Brancas

 
O barco passa diante da Ilha das Pedras Brancas, entre Porto Alegre e Guaíba. Um lugar tão bonito com um passado tenebroso: ali, durante a ditadura militar (1964 -1985), funcionou um presídio para presos políticos. Quem dissentia do poder, e demonstrava isso por palavras ou ações, tinha grande chance de ir para o calabouço. Alguns morreram por não concordar, por dizer não. Tristes tempos. 
 
O que parecia eterno, para quem viveu na pele aquela escuridão, passou como tudo passa. Mas durou muito e deixou marcas profundas. No meu caso, e no de muitos, durou o tempo da juventude.

A democracia é o menos ruim dos regimes políticos, já se disse, pois possibilita que a sociedade participe da escolha dos que vão ter o poder nas mãos e dirigir o Estado. Sistema perfeito não existe, uma vez que o próprio ser humano longe está da perfeição (longe, muito longe). A democracia é o que temos de melhor em política.

Ditaduras, sejam elas de direita ou de esquerda, são o inferno. Por mais que seus líderes digam que querem o bem da humanidade, o que eles querem mesmo é o máximo bem para si mesmos, para os familiares e amigos ou correligionários.

Nada autoriza a permanência no poder pela força bruta. O apelo à violência, seja de que lado for, é um grave erro. Gente como Mahatma Gandhi mostrou que é possível lutar sem dar um tapa e muito menos um tiro.

É outra coisa viver num lugar onde os direitos e garantias individuais e coletivos são respeitados, no qual os cidadãos cumprem seus deveres. Ao menos existe esperança.

Poder sonhar e trabalhar por um melhor amanhã é a única coisa que justifica sair da cama todos os dias. Senão, é preferível ficar deitado.

photo: j.finatto.  Guaíba, visão da saída para a Lagoa dos Patos


Mas falemos de coisas amenas nesses dias tão quentes. Fiz essas imagens na travessia de Porto Alegre para a cidade de Guaíba a bordo do catamarã. O tal barco anda bem rápido (dura cerca de 30 minutos o percurso). Por mim até podia ser mais lento.  O mundo todo podia ser mais lento. Mas, afinal, está certo, não é embarcação de passeio, mas de transporte público.

Esse rio Guaíba é tão largo, volumoso e grande que até parece um mar.

Olhando o mapa se vê: depois do Guaíba vem a Lagoa dos Patos, esta sim conhecida como Mar de Dentro. Um mar de água doce que se estende por quase 300 km até o Atlântico Oceano. Em longos trechos da Lagoa não se avistam as margens, só água.

Peixe, muitos peixes, vento, gaivotas e ilhas. Navios afundados também.

Gosto muito de navegar em barco e avião (sou um bicho das águas e do ar). Mas nada se compara ao sentimento de, ao final, pisar em terra firme outra vez.

Voltar para casa, reencontrar as tralhas, os objetos e recantos caseiros, mergulhar outra vez nesse território minimalista. Ainda é a melhor parte de qualquer viagem.

Somos uma pequena ilha no mar do tempo.

Da mínima ínsula miramos as estrelas, as águas, os céus, os seres.

Ir ao encontro de outras ilhas é a mais bela e difícil aventura. A verdadeira missão do navegante.

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O barco mais triste do mundo:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/11/basofias-o-barco-mais-triste-do-mundo.html

Brasil, árvore frondosa
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/10/brasil-arvore-frondosa.html

Cuba e os direitos humanos:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/03/cuba-e-os-direitos-humanos.html

Ilha das Pedras Brancas:
http://ilhapedrasbrancasguaiba.blogspot.com.br/p/quem-somos.html
 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

A Borboleta Amarela

Jorge Adelar Finatto


"Eu vinha sem raiva nem desejo - no fundo do coração as feridas mal cicatrizadas, e a esperança humilde como ave doméstica - eu vinha como um homem que vem e vai, e já teve noites de tormenta e madrugadas de seda, e dias vividos com todos os nervos e com toda a alma, e charnecas de tédio atravessadas com a longa paciência dos pobres - eu vinha como um homem que faz parte da sua cidade, e é menos um homem que um transeunte, e me sentia como aquele que se vê nos cartões postais, de longe, dobrando uma esquina - eu vinha como um elemento altamente banal, de paletó e gravata, integrado no horário coletivo, acertando o relógio do meu pulso pelo grande relógio da estrada de ferro central do meu país, acertando a batida do meu pulso pelo ritmo da faina quotidiana - eu vinha, portanto, extremamente sem importância (...)"
 
                        Rubem Braga, trecho da crônica Visão, Rio, novembro, 1952.*



photo: j.finatto
Não sei há quanto tempo não pegava este livro na estante. Fazia certamente muitos anos.
 
Subi na escadinha na altura dos autores de letra b. Lá estava, vertical e querendo ser folheado outra vez, A Borboleta Amarela, de Rubem Braga. 
 
Um livro bonito a começar pelo título. A bela capa branca silenciosa com o desenho da borboleta. A contracapa amarela com o título em letras vermelhas.
 
A folha de rosto tem uma assinatura com caneta esferográfica azul, mas foi toda riscada. Provavelmente ao vender o livro para o sebo, o anterior proprietário riscou seu nome. Ou foi o próprio dono do sebo, sei lá. Imagino que é triste se desfazer de um livro de que se gosta. E há uma data assinalada perto do nome: 1969, mesmo ano da edição.
 
No interior da orelha, meu nome e o ano em que adquiri o livro: 1977. Eu era então bem pobre e não comprava livros sem sacrifício, mesmo com o preço barateado do sebo.

No sábado foi o aniversário de 100 anos de nascimento de Rubem Braga (12 de janeiro de 1913 - 19 de dezembro de 1990), um dos grandes cronistas brasileiros.

Reli algumas crônicas da Borboleta. São textos publicados entre janeiro de 1950 e dezembro de 1952 no Correio da Manhã e em outros jornais. Anos antes, durante a Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945), o escritor fez a cobertura da participação da Força Expedicionária Brasileira no conflito.

Parece que foram escritos para a edição de hoje do jornal, estão ainda frescos e macios esses textos do velho Rubem. Um senhor livro.
 
Valeu a pena cada centavo que investi nesse e em outros livros. Eles foram para mim fonte de beleza, esperança e talvez salvação (quando não se tem quase nada, um bom livro faz uma grande diferença) .

A poesia dessa Borboleta Amarela, tanto tempo depois, ainda voa com graça e encanto pelo jardim da estante.
 
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*A Borboleta Amarela, crônicas. Rubem Braga. Editora Sabiá, 4ª edição, Rio de Janeiro, 1969.
Leia excelente artigo de Augusto Massi, na Folha de São Paulo:
Rubem Braga entre Sartre, Matisse e Breton
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1213565-rubem-braga-entre-sartre-matisse-e-breton.shtml
 

domingo, 13 de janeiro de 2013

Série Retratos 4 (Le champ de blé aux corbeaux)



photo: j.finatto



photo: j.finatto



photo: j.finatto


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Autor das photos: Jorge A. Finatto
Parte alta de Auvers-sur-Oise, cidade próxima de Paris, onde Van Gogh (1853 - 1890) pintou, entre outros, o célebre Campo de trigo com corvos. No mesmo local, provavelmente, disparou o tiro no abdômen, que causou sua morte dois dias depois. Uma outra versão diz que o disparo foi feito por outra pessoa.
O último quarto de Van Gogh:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2009/12/o-ultimo-quarto-de-van-gogh.html
Pedidos de cópia ou reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail j.finatto@terra.com.br
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sábado, 12 de janeiro de 2013

Virgílio fugindo da treva

Jorge Adelar Finatto 


photo: j.finatto. Passo dos Ausentes

 
Então houve quem falou: ah, esse não vinga, semente ruinzinha. Tem jeito de gente abandonada no olhar. Está de malas prontas pras brumas do mundo.

Pobre virgílio viajando nas páginas iletradas da vida. Tão moço, tão sem amanhã. As contumélias da existência afloram ao nascer do sol e vão até a noite. virgílio sem eira nem beira. Amargança das horas. Ser da palavra inventada.

Esperançoso virgílio (assim minúsculo, pequeno) com terninho preto curto, botina marrom, a magra mala na estação. Espera o trem noturno na estação. O último abraço de Juan Niebla, o cego tocador de bandoneón.

A palavra cálida do ceguinho no ouvido:

- Vai com Deus, meu filho, vai com Deus. Não desespere. Eu vou rezar. Não se esqueça de voltar. Eu vou esperar você aqui.
 
Viver são as partilhas, não importa quão escuro.

A lágrima morna, coração saltando pela boca. virgílio.

Os oráculos da merda falaram deveras as coisas que disseram: esse não volta, dele é o círio que queima ligeirinho no breve da vida. Vai-se ao fundo.

Quem sabe o quê, nessa quirera? Quem aposta um caco nas patas do destino?

virgílio foi-se pelas estradas sombrosas, rasgou o breu. Habitou o deserto, o deserto sem fundo de cada esquina ventosa. O deserto dos quartos tristes e das ruas nojentas da cidade grande.

Nas horas do estúrdio, sentado no banco da pracinha, comeu bolacha de água e sal, bebeu água de torneira pública na concha da mão. Com a pequena rede invisível, deitado no banco da praça, pescava estrelas antes de dormir.
 
Tem gente com medo de trovão. Outros temem a neblina espalhando calada.

Ele tem medo do que está do outro lado do espelho. Receia um dia olhar e não divulgar ninguém. Nem rosto nem mão nem nada.

Espelho cego. Irredutível ausência. (A lembrança de Juan Niebla na estação.)
  
O mundo é um baita invento, pensa virgílio. Só que a pessoa é muito sozinha.

(Saudade do cheiro da flor de manacá na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. Saudade, saudades.)
 
O tempo passou. virgílio não se matou. Nem foi engolido pela boca do esgoto. Fez um caminho desesperado, inesperado, tanta luz cultivou no labirinto. Acendeu-se. Sobreviveu nas quebradas da city, emergiu da sua ausência.

virgílio plantou a árvore do sonho na cabeça, os galhos cresceram para dentro da realidade.

Os gerânios deflagram lilases e rosas na janela do bardo da palavra reconstruída.

A escuridão ficou lá atrás, atrozes dias.
 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Série Retratos 3

  

 

 
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Autor da photo: Jorge A. Finatto
O último quarto de Van Gogh. Maison de Van Gogh. Auvers-sur-Oise, França.
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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Série Retratos 2







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Autor da photo: Jorge A. Finatto
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terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Série Retratos 1


 
 



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Autor da imagem: Jorge A. Finatto
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Série Retratos

Jorge Adelar Finatto

A partir de hoje publico a Série Retratos
 
A novidade é que as fotos desta série não serão acompanhadas de texto. As imagens falarão por si. Um álbum de fotografias virtual, uma memorabilia do olhar.
 
Os pedidos de cópia ou reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail j.finatto@terra.com.br

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domingo, 6 de janeiro de 2013

A carreta cósmica

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 

O mundo visto de cima de uma carreta é diferente.  Não é o mesmo que se vê de um ônibus, metrô, barco, automóvel ou avião.  O andar da carreta é outro, diverso é o seu olhar.
 
Em Passo dos Ausentes, havia muitas carretas. Era meio de transporte de pessoas e de carga por estradas de terra e ruas pedregosas.
 
A velocidade do mundo era bem menor. 24h, naquele tempo, equivaliam a cinco dias de agora, talvez um pouco menos.
 
Os tempos eram longos e as conversas também. Dava para experimentar o sabor de cada fruto, associá-lo a um nome e a uma estação do ano.
 
Havia tardes de chuva mergulhadas na leitura e na preguiça. Olhos cismavam nas janelas. A preparação dos doces caseiros espalhava delicados cheiros pela casa.
 
Andar de carreta puxada por boi era uma maneira diversa não só de se deslocar como de olhar o universo.

O homem que vê a vida tendo a carreta como ponto de mirada não é o mesmo que se movimenta em máquinas velozes.
 
Aqui nos Campos de Cima do Esquecimento ainda se encontram carretas. Há alguns anos encontrei uma em bom estado, construída em 1953. Resolvi comprá-la e coloqueia-a no jardim.

Ela aparece em primeiro plano na foto, tendo mais ao fundo Monsieur Jardin, o espantalho que faz a alegria dos passarinhos. As aves fazem ninhos nos seus bolsos e no chapéu de palha.

A minha carreta está sempre pronta pra partir. Em certos dias, quando a vida perde a graça, em subo nela e vou dar uma volta pelo cosmos. O sobe e desce entre as nuvens, a gente sacudindo lá dentro, a evolução do vôo pela atmosfera e depois uma esticada até o infinito.
 
Voamos entre as estrelas, passamos perto da Lua, paramos em Órion para ver a chuva dos meteoros cintilantes.

Visito os amigos que partiram em suas carretas de luz e nunca mais voltaram. Conversamos e rimos juntos. Depois eu me despeço e volto pra casa.

Ao retornar da viagem, sinto o coração bater em paz outra vez.
 

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Escritor desiste de parar de escrever

Jorge Adelar Finatto
 
 
Elmore Leonard. Foto de Paul Sancya, Associated Press
 

O escritor americano Elmore Leonard, 87 anos, tinha decidido parar de escrever. A aposentadoria estava prevista para depois da publicação de seu último livro, Blue Dreams (Sonhos Azuis), esperada para este ano.
 
A boa notícia para seus leitores é que ele desistiu de desistir. Autor de 47 livros, Elmore Leonard recebeu em novembro passado o prêmio da Fundação Literária Nacional pela Contribuição com as Letras Americanas. O reconhecimento fez com que abandonasse a idéia de parar.

A premiação existe desde 1950 e já foi dada a autores como Norman Mailer, John Updike e Gore Vidal.

"Eu fiquei tão feliz (...) O prestígio, para mim, é o que vale mais", declarou à agência de notícias Reuters, conforme reproduzido na Folha de São Paulo de 31.12.2012.
 
"Não tenho razão para me aposentar. Eu ainda gosto muito de escrever", acrescentou.

Leonard é autor, entre tantos, de O nome do jogo, que virou filme com  o ator John Travolta, e Jackie Brown, adaptado para o cinema por Quentin Tarantino.
 
Se até os bichos gostam de agrado e salamaleque, imaginem então os escritores que são, no reino animal, espécie das mais suscetíveis e carentes de reconhecimento.

(Reconhecer vem do latim recognoscere, que significa, na acepção aqui empregada, admitir como bom, verdadeiro ou legítimo, consoante ensina o bom Aurélio.)

Ainda não li nada de Elmore Leonard, mas acredito que a premiação faz jus a uma longa vida dedicada a escrever. Penso naqueles outros que nunca receberam nem receberão qualquer prêmio e que, mesmo assim, não desistem do ofício.

O vero escritor não escreve para receber prêmios, mas para dizer algo a seus semelhantes através da palavra escrita. Mas também é verdade que quando alguém escreve o faz pensando em ser reconhecido pelo trabalho. Em suma, ninguém escreve para as paredes. 
 
Entre os fogos de artifício dos prêmios literários (e da mídia) e a solidão da caverna, existe um caminho do meio capaz de estimular um autor a não desistir: o reconhecimento. Reconhecimento sem o qual a coisa toda - literatura ou qualquer outra - perde o sentido.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Nos trilhos do tempo

Jorge Adelar Finatto


photo: Museu Virtual Memória Carris. Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
Autor: José Luís Kieling Franco.*

 
Não sabia que uns velhos trilhos de bonde podem mexer com a gente depois de tanto tempo. Isso aconteceu quando descobri que havia trilhos escondidos na escuridão da terra, sob a Avenida Protásio Alves, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre.

O leito da avenida está em obras para receber o sistema de ônibus rápidos. Ao realizarem os trabalhos, os operários retiraram o asfalto e escavaram cerca de 80 centímetros no subsolo.

Passava pelo local outro dia e parei para olhar. Percebi então, com assombro, que no fundo do buraco havia os trilhos do bonde que ligava o bairro ao centro da cidade. Sim, vetustos trilhos que estavam soterrados reapareceram.
 
A escavação significou um mergulho no tempo. Encontrou uma cidade submersa que não existe mais.

Os bondes deixaram de circular em março de 1970, infelizmente.

Eu morei  perto do itinerário dos trilhos quando menino.

Por um momento, me vi outra vez passageiro do bonde, a cara na janela pegando vento, descendo e subindo a colina sobre a qual se ergue o bairro Petrópolis.

Recolheria os trilhos e guardaria num cofre, se possível fosse. Eles dão testemunho de uma época e de um modo de viver.
 
Difícil explicar que não são meros pedaços de aço que afloraram do chão, são caminhos perdidos no tempo. No passado, eles conduziram as pessoas diariamente nos rumos de suas vidas. Muito cansaço, muita esperança e sonho eles carregaram.

A descoberta foi como se tivessem escavado o interior do meu coração.
   
Um pedaço do que eu  fui aflorou naqueles trilhos.

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*A imagem foi editada para ilustrar este post. A original encontra-se no texto:
Eu ia tomar um bonde amarelo