sexta-feira, 30 de agosto de 2013

É dura a vida de pássaro

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

Nesses dias de frio, chuva, neblina e neve (às vezes esses fenômenos ocorrem num mesmo dia em Passo dos Ausentes), os pássaros encontram dificuldade em se alimentar. Parece que a oferta de alimentos na natureza diminui para eles (ou a possibilidade de acesso torna-se mais difícil). Este é um conhecimento empírico que tenho do assunto.
 
Quando a última neve caiu (entre segunda e terça passadas), coloquei os potes com banana na sacada do escritório sobre a neve que se acumulava numa espessura de três a quatro centímetros. Fiz isso depois que vi um passarinho na árvore diante da janela com todo aquele frio. Não demorou muito, vários vieram comer (como fazem todos os dias), pisando na borda dos potes.

photo: j.finatto

Me impressionou a quantidade de passarinhos que se chegaram, mesmo com tempo tão adverso. Renovei três vezes a porção de bananas durante o dia. Estavam mais famintos do que o normal. Talvez o frio excessivo.

Aqui ainda tem verde, espaço pra voar, fazer ninhos e criar os filhotes.
 
photo: j.finatto

Nas grandes cidades, porém, a vida das aves passa por imensas dificuldades. No ambiente hostil, a sobrevivência delas é tarefa muito complicada.
 
Onde vão achar árvores para construir suas casas? Onde vão buscar o alimento? E a fumaça e barulheira dos veículos (sim, as aves escutam), e os paredões dos edifícios?

 É dura a vida de pássaro.
 
Quando o ambiente que o homem constrói (?) se deteriora e já não é capaz de acolher esses seres, estamos perdendo espécies viventes e nos matando.
 
Quando estou em Porto Alegre, tenho a sensação de estar num lugar cada vez mais triste e sem perspectiva. O movimento ambientalista, que um dia foi forte entre nós, definhou. A força do dinheiro tomou conta de todos os setores da vida. A indiferença e a maldade venceram embrulhadas em bonitos pacotes de promessas falsas. 
 
Existe uma praça perto de onde tenho casa, em Porto Alegre, em que alguém ou alguéns fez ou fizeram um recanto para alimentar os passarinhos. Naquele lugar colocam frutas. É um pequeno gesto de resistência que revela consciência e solidariedade.

photo: j.finatto

Não sei se isso será suficiente, na verdade acho que não será. Mas quem age dessa forma cultiva algo mais do que retórica ecológica, e semeia esperança.

Num outro recanto da praça, é comum a presença da marmanjos tomando chimarrão e fumando maconha. Uma mistura de tradição com vontade de voar talvez. O cheiro é insuportável e, desses pássaros, eu passo o mais longe que posso.

photo: j.finatto
 
Agora estou em Passo dos Ausentes. Os pássaros se alimentam.  Pulam nos galhos próximos, vêm até os potes, comem em paz, regressam às árvores. Faz uma sexta-feira de quase primavera. Tenho o encanto de ouvi-los cantar. Um cálido concerto a céu aberto. No que me concerne, esse é um momento que merece ser vivido. 
 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

O tecido da neve

Jorge Adelar Finatto
 
De manhã, a paisagem ficou assim.
  
photo: j.finatto. 27.8.2013

 
photo: j.finatto.

 
photo: j.finatto


photo: j.finatto. Eta vida difícil.


photo: j.finatto


photo: j.finatto

 

Notícias da neve

Jorge Adelar Finatto
 
photos: j.finatto. Neve em Canela. 27/8/2013
 
Caminhar pelo jardim é uma maneira de andar dentro de si mesmo por veredas interiores. Foi o que fiz há poucas horas atrás, em busca da companhia suave das plantas e do aroma dos jasmins de inverno.

O que encontrei foi a neve caindo, caindo, em silêncio em volta da casa. Peguei a Coruja e fiz essas imagens. Depois tudo ficou muito mais branco e fofo, mas aí eu já estava em casa, fugindo do frio de -2º C. 
 
Bem-vinda sejas, neve de quase setembro!
 
 
photo: j.finatto. 27/8/2013
 


photo: j.finatto. 27/8/2013
 


photo: j.finatto. 27/8/2013
 


photo: j.finatto. 27/8/2013
 

A fala de Pedrolino

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Venezia. Os mascarados


Pertenço à ordem dos amorosos sem camélia.

Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os que saíram cedo da festa. Os quase.
 
A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é lugar de barbaridades. Dor, dores.
 
Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu.
 
O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O triste que eu sou.

A Commedia dell'Arte invadiu a minha existência. Pedrolino, Pierrô.
 
Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar.

Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha, o vestido branco, laço azul na cintura. Os sapatinhos amarelos. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão.
 
Bailei no ar como folha de plátano no outono, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada em espiral. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama.
 
Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim, sim. 

photo: j.finatto. Venezia
As iluminações.

Passamos a freqüentar a Praça da Ausência, nas tardes ocres daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três noites.
 
Alberta meu sentimento. Camafeu cravado na minhalma. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o num lugar secreto, bem no fundo de mim.
 
Aqueles eram dias de ora-veja.
 
A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar.

Não canto outros amores, que não os tive, e, se os tivesse, silenciaria.
 
Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim.

Arlequim e seus guizos, seus versos de algibeira, sua palavra sem valia, seu alaúde. Ser miserável.
 
Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse.

Bazófias.
 
Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Blasona. Explorador de amores, ladrão de musas. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros, até o corpo de violino que eu nunca toquei.
 
Eu calado sonhador do fim do mundo. Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei.
 
Quem me visse, a face esculpida da dor. Veio o inverno. Invernos.
 
O vero solitário da rua triste. O que olha a vida da janela. O que foi quase feliz.
 
O sem camélia.
 
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Texto publicado em 09 de junho, 2010.
Do livro Calado sonhador do fim do mundo. Editora Vésper, 2010, Passo dos Ausentes.
Outros detalhes do drama de Pedrolino em A fala do Arlequim, post de 30/10/10, e Alberta de Montecalvino, de 8/11/10. 

domingo, 25 de agosto de 2013

O barco abandonado e a gaivota solitária

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto. local: rio Guaíba.
a gaivota está na parte mais alta do barco. clique na imagem

Era uma vez um velho barco.

Tão, mas tão afundado no tempo, que não pôde mais navegar pelo seu amado rio Guaíba. Nem levar passageiros em direção à Lagoa dos Patos e depois desembocar no Oceano Atlântico para ir ao Rio de Janeiro, viagem que tanta alegria lhe dava quando era mais moço.

O tempo caiu verticalmente sobre o ferro, o curvou e enferrujou.

O vetusto barco foi abandonado sem piedade. Esquecido, mergulhado em lembranças, ele naufragou em si mesmo, em sua espessa solidão.

Passou a morar na beira do Guaíba onde o deixaram à deriva.

O barco perdeu o gosto de viver.

Um dia uma gaivota decidiu habitar a solidão do barco abismado. Ela também era solitária e costumava voar sobre a estrutura que era antes uma ruína que uma embarcação. Sofria ao ver a triste situação do pobre barco. Pensou que ele poderia ser um bom ninho metálico, amplo, arejado, iluminado e com muitas aberturas. Além disso, encontraria nele talvez um bom amigo com muitas histórias pra contar.

Eles conversaram, ela expôs seu plano (estava tão entusiasmada que perdia o fôlego no meio da fala). O barco concordou de imediato (sim, sim, sins, foi o que disse), o coração batendo forte no peito. Ela então se mudou de mala e cuia  para dentro da nova casa, aquele bonito ninho de ferrugem colorida.
 
O barco ficou tão feliz com a idéia, que desistiu de precipitar-se na profundeza das águas (pensamento cada vez mais freqüente nas suas depressões de final de tarde).

Agora ele tinha um motivo pra viver: servir de abrigo para a jovem e bela gaivota. Ela começou a trazer-lhe notícias frescas dos movimentos no rio (navios que chegavam e partiam, roteiros de viagem, direção dos ventos, rumo das nuvens), e também lhe contava novidades da cidade no continente.

A solidão do barco ganhou assim uma querida companhia. Passou a ser conhecido como o velho barco da gaivota solitária. Ele, que renasceu do fundo do esquecimento. Ela, que ganhou um amigo de verdade e um porto seguro na vida.

Dizem que desde então nunca se viram duas criaturas mais felizes nas águas do Guaíba.
 

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Um olhar sobre a lua

Jorge Adelar Finatto

photo: Lua cheia em Belo Horizonte (20/ago/2013)
jornal O Tempo online; autor: Leo Fontes*

Estou olhando pela janela do escritório, madrugada alta, nessa hora em que o silêncio é tão intenso que dá para escutar o orvalho. Espero palavras para escrever alguma coisa.
 
A Lua vai longe e alta sobre as montanhas.
 
A chegada da Lua cheia, na terça-feira passada, 20 de agosto, foi um rotundo acontecimento.
 
Estava eu em viagem, regressando a Passo dos Ausentes pela estrada íngreme de chão batido no Contraforte dos Capuchinhos. Tinha ainda muito chão pela frente - ou muito céu - até chegar aos 1800 metros de altitude da nossa cidadezinha. Foi quando avistei aquela beleza.
 
A Lua imensa se levantava pouco acima dos telhados das casas do campo e das árvores da mata. Parecia estar tão perto que poderia estender o braço e tocar nela com a ponta dos dedos, talvez até fazer um desenho na sua superfície. Era possível ver o relevo do solo e das crateras. Depois de vários dias de Lua nova, o luar resplandecia em toda luminosidade. 
 
Se alguém atravessasse a paisagem lunar de bicicleta naquele instante, seria visível de onde eu estava. O ar transparente, sem luzes da cidade, permitia ver o universo inteiro.

O fato é que eu tinha a Lua nas mãos naquela subida da Serra.

Desci da caminhonete, fiquei olhando, admirando. Um cheiro bom de erva do mato andava no ar. Como eu não trazia a velha Coruja comigo, fiquei sem poder fotografar as lindas feições do nosso satélite natural.

Eu procurei na internet imagens do luar de terça-feira e encontrei essas do fotógrafo Leo Fontes.**
 
photo: Leo Fontes, O Tempo online
 
Valho-me, em boa hora, das belas fotos publicadas no jornal O Tempo*, online, de Minas Gerais, de autoria do Leo (ao qual agradeço a generosidade de autorizar a publicação aqui no blog). É um trabalho artístico de rara felicidade: a Lua cheia iluminando Belo Horizonte naquela noite.
 
Então, como não havia nada mais importante a fazer naquele momento do que admirar a Lua, me sentei no degrau da porta da caminhonete e comecei a descascar e comer laranja, olhando a Lua que era essa mesma da foto do Leo.

Depois de algum tempo, ela começou a diminuir, se distanciar, fazendo seu itinerário. Essa Lua, em outros tempos, foi vista pelos primeiros homens e mulheres que habitaram a Terra.

Luminosa testemunha da história humana a pouca distância acima da nossa cabeça.
 
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*O Tempo:

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Maiakóvski: a última esperança

Jorge Adelar Finatto
 
O poeta Maiakóvski em 1929
 
               
               Não vivi até o fim o meu bocado terrestre.
               Sobre a Terra
               não vivi o meu bocado de amor.
                    Maiakóvski (trecho do poema A propósito disto, 1923)¹
 
A insuficiência da vida, onde não viemos para passar férias ou viver em harmonia, mas para enfrentar toda sorte de vicissitudes e incertezas, com raras intermitências de felicidade e paz, é um dos principais motivos que levam o ser humano a procurar na arte um pouco de consolo e transcendência.

Um dos mais belos poemas que já li é A propósito disto, do poeta russo Vladímir Maiakóvski (1893-1930). Ele lutou ao lado dos bolcheviques na Revolução Russa de 1917 e depois, na sua área, que era escrever poemas, pintar cartazes (no Museu da Revolução, contavam-se mais de três mil pintados por ele e cerca de mil frases poéticas para o front²), realizar recitais viajando por todo o país, debater, falar sobre a função da arte, compor peças teatrais, colaborar na imprensa.

Maiakóvski fez o que pôde para a realização dos ideais revolucionários. Acreditava no novo homem que haveria de nascer com a revolução, sem vis mesquinharias, avesso à brutal exploração, solidário, aberto ao amor e ao diálogo, disposto a construir uma sociedade e um planeta bons para todos.

Empenhou-se com aguda sensibilidade de grande poeta. Foi um caso raro de escritor que trabalhou em função de uma causa, sem contudo diminuir o valor de seu fazer literário. Conseguiu ser um imenso poeta, mesmo vivendo os difíceis dias da revolução, nela empregando seus esforços. Mas entre a crueza da política e a alma sensível havia contradições que com o tempo se tornariam maiores e insuperáveis. Disse ele uma ocasião:

Não sei como se juntaram em minha cabeça os versos e a revolução.3

Um dia cansou, exaurido na luta, nas incompreensões, na pequenez e na sordidez de muitos dos que queriam, pretensamente, mudar a realidade (afinal, digo eu, os camaradas tomaram o poder e, uma vez nele, aparelharam o Estado, eliminaram a oposição e revelaram-se, com o tempo, iguais a tantos tiranos em qualquer parte do mundo. Veja-se o longo período de Stalin).

Ouçamos Emílio Carrera Guerra em seu excelente A vida de Maiakóvski:

Não bastavam o gênio, as provas de sinceridade, o trabalho árduo e honesto do poeta, para que seus inimigos fossem aplacados, para que seus adversários o deixassem em paz. Ao contrário, seu êxito crescente fazia com que mais se encarniçassem contra ele. 4

Maiakóvski não encontrou o novo mundo por que tanto ansiou e lutou, não teve tempo para viver e amar em paz. Deixou para o futuro o encontro definitivo com sua amada Lila Brik.

Com uma única bala no velho revólver, o poeta disparou contra o coração na noite de 14 de abril de 1930. Terminava, assim, num ato de desespero, antes de completar 37 anos, a vida de um dos maiores poetas que a humanidade conheceu.

photo: j.finatto

Em 12 de abril, escreveu a carta de despedida. Nela estava transcrita, em meio ao texto, parte do poema no qual trabalhava, À plena voz:

A todos!... Eu morro, não culpeis disso a ninguém. E nada de falatórios. O defunto tinha horror a isso.
Mamãe, minhas irmãs, meus camaradas, perdoem-me, isto não é um meio (não o aconselho a ninguém), mas para mim não há outra saída. Lili, ama-me. (...)

Como se diz
"O incidente está encerrado"
O barco do amor
                            quebrou-se contra a vida quotidiana
Estou quite com a vida
Inútil passar em revista
                               as dores
                               as desgraças
                               e os erros recíprocos.
Sede felizes! 5

Sete anos antes, em 1923, Maiakóvski escreveu este que é um dos poemas absolutos que nos legou, A propósito disto. Neste texto, imagina o futuro limpo de podridões, no qual se encontra o laboratório das ressurreições humanas. Nesse ambiente, o poeta vê o calmo químico, a vasta fronte franzida em meio à experiência.

E acrescenta: num livro, intitulado Toda a Terra, o cientista procura um nome, alguém a quem ressuscitar no século XX. Ao encontrar o poeta nas páginas do livro, o químico fica em dúvida e acaba desistindo dele, busquemos matéria mais interessante!

Diz, por sua vez, o poeta:

                              Será então minha vez de gritar
                                       daqui mesmo,
                                              desta página de hoje:
                              "Pára, não folheeis mais!
                                      É a mim que deves ressuscitar!" 6

Para um cristão, o cientista seria Deus, tratando de ressuscitar os mortos no fim do atual sistema de coisas. A esperança do poeta, por outro lado, é a mesma de todo mundo (ou pelo menos de muitos): voltar à vida, tornar a viver, sair do fundo da caverna escura (tal como Lázaro*) para uma vida plena, sem tantos sofrimentos, doenças, problemas, angústias, tragédias e o inevitável abismo da morte.

Prossegue Maiakóvski, na sua/nossa esperança:

                    Vosso Trigésimo Século
                                                   ultrapassará o enxame
                    de mil nadas,
                                         que dilaceravam o coração.
                    Então,
                           de todo amor não terminado
                    seremos pagos
                                            em inumeráveis noites de estrelas.
                    Ressuscita-me,      
                                             nem que seja só porque te esperava
                                                                            como um poeta,
                    repelindo o absurdo quotidiano!
                    Ressuscita-me,
                                             nem que seja só por isso!
                    Ressuscita-me!
                                             Quero viver até o fim o que me cabe! 7

O poema, belíssimo, continua. O grito de Maiakóvski em direção ao futuro, para ser ouvido pelo químico no laboratório das ressurreições, certamente será escutado e atendido um dia, pois poucos como ele souberam pedir, com tanta fé, por uma nova oportunidade na vida.

______________

1. O poeta-operário. Antologia poética. Vladímir Maiakóvski. p. 154. Tradução e estudo biográfico de Emílio Carrera Guerra. Cìrculo do Livro S.A. São Paulo, 1991.
2. idem, p.30.
3. idem, p.13.
4. idem, p.66.
5. idem, p.95.
6. idem, p. 154.
7. idem, pp. 155-156.
*Lázaro, o levantado dos mortos
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/08/lazaro-o-levantado-dos-mortos.html
O crédito da foto será dado assim que conhecida a autoria.
 

terça-feira, 20 de agosto de 2013

A navalha do avô

O Cavaleiro da Bandana Escarlate 
 
photo: Jean-Claude Bernardet como o avô
fonte: divulgação do filme
 

No fundo, apesar de me sentir meio fora de lugar nesse ambiente competitivo e cansativo do festival (quem agüenta ver tantos filmes?), sou um cinéfilo sentimental.

O cinema faz parte da minha vida desde tenra idade, desde quando o médico da nossa pequena Passo dos Ausentes (Dr. Fredolino Lancaster, hoje com 96 anos) projetava filmes sobre um lençol branco estendido na parede externa de sua casa para todos assistirem.

O mundo está explodindo? A vida anda insuportável? As frustrações acumulam-se? O blog tem raros leitores? Vou ao cinema em busca de renascimento.
 
Mas quero falar do presente e do daqui pra frente. Assisti a um belo curta-metragem nesse 41º Festival de Cinema de Gramado, que se encerrou no sábado, A navalha do avô (São Paulo, 2013), direção de Pedro Jorge.

O filme me tocou por trazer uma história de amor familiar entre um neto (Bruno), jovem universitário, e seu avô José. Bruno precisa dedicar parte de seu cotidiano para cuidar do avô doente. O adolescente é interpretado por Kauê Telloli e o velho, pelo escritor e crítico Jean-Claude Bernardet, ambos muito bem.

No início, Bruno reluta em conviver e acompanhar o avô em coisas como feira, barbearia, porque isso não tem a ver com sua juventude. Aos poucos, porém, passa a entender o mundo do avô e suas dificuldades, ficando a seu lado nas poucas atividades que ainda lhe restam.

Um momento de suspense é quando Bruno é levado a fazer a barba de José com a velha navalha deste. É que o dono da barbearia recusa-se a fazê-lo, alegando dificuldades com a pele do velho. Com isso, as idas à barbearia para ver os amigos, um dos poucos passeios do avô, terminam.

Bruno afia a navalha no estilo antigo. Quando começa a raspagem, a interferência intempestiva da avó faz com o jovem se assuste e a navalha...

É um filme em que a história e a emoção se constroem na medida certa, trazendo ao espectador uma sensibilidade escondida, um mundo pouco comum no cinema e na tv, que é o do afeto familiar e da consideração em relação aos mais velhos.

Foram bem merecidos os prêmios conquistados: Prêmio de Melhor Ator para Kauê Telloli; de Melhor Roteiro para Francine Barbosa e Pedro Jorge, e o Prêmio Canal Brasil.

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O Cavaleiro da Bandana Escarlate, menestrel medieval e livre-pensador, faz a cobertura do Festival de Cinema de Gramado para o blogue a convite de Alberta de Montecalvino. Como o blogue não tem mecenas, o Cavaleiro paga todas as suas despesas e acha que está muito bem assim.
 

domingo, 18 de agosto de 2013

Lázaro, o levantado dos mortos

Jorge Adelar Finatto

A ressurreição de Lázaro (depois de Rembrandt). Van Gogh
fonte: Van Gogh Museum
 
Uma das histórias que mais me tocam, na Bíblia, é a da ressurreição de Lázaro. O fato aconteceu na antiga aldeia de Betânia, que é um lugarejo situado a três quilômetros a leste de Jerusalém. Ainda hoje existe por lá o lugar onde se presume ficava o túmulo de Lázaro.
 
Naquela aldeia viviam os irmãos Lázaro, Maria e Marta. Eram muito amigos de Jesus e acreditavam na sua palavra. Jesus tinha muito carinho por eles. Numa ocasião, na casa deles, Maria banhou os pés de Jesus com óleo perfumado (caríssimo na época) e depois os secou com seus cabelos. A casa encheu-se com a fragrância.
 
Certo dia, Lázaro adoeceu. As irmãs mandaram avisar Jesus. Ao saber, Ele ainda permaneceu com os discípulos dois dias no lugar onde estavam, dizendo-lhes: "Lázaro, nosso amigo, foi descansar, mas eu viajo para lá para o despertar do sono." (João 11:11).
 
Quando Jesus se aproxima de Betânia, Marta vem a seu encontro, dizendo que, se Ele estivesse por perto, Lázaro não teria falecido. Jesus responde: "Teu irmão se levantará" (João 11;23). Marta acha que Jesus se refere à ressurreição do último dia. Foi quando Jesus disse as célebres frases: "Eu sou a ressurreição e a vida. Quem exercer fé em mim, ainda que morra, viverá (outra vez); e todo aquele que vive e exerce fé em mim nunca jamais morrerá."( João 11:25:26).
 
Maria também veio ao encontro de Jesus e chorou a seus pés. As pessoas que a acompanhavam igualmente choravam. Vendo isso, Jesus "gemeu no espírito e ficou aflito".  Ele pergunta onde está o corpo de Lázaro. Nesse momento, Jesus chora bastante.

Levam-no ao túmulo memorial (conforme a Bíblia, Deus guarda os mortos em sua memória para o dia da ressurreição).

O túmulo de Lázaro é uma caverna fechada com uma pedra. Jesus diz que é para retirá-la. Marta, irmã do morto, pondera: "Senhor, ele já deve estar cheirando, porque já faz quatro dias." (João 11:39). Ele responde, perguntando: "Não te disse eu que, se cresses, verias a glória de Deus?"

Retiram a pedra. Jesus diz, em voz alta: "Lázaro, vem para fora!" Nesse instante, Lázaro sai com mãos e pés amarrados com faixas e o rosto enrolado num pano. Jesus diz para soltá-lo e deixá-lo ir.

O morto está vivo outra vez.

Lázaro teria por volta de 30 anos na ocasião, e seguiu sua vida. Jesus, infelizmente, não duraria muito tempo mais.

Essa é uma bela história. A face sentimental de Jesus, a sua capacidade de comover-se ante o drama humano, revela-se em toda sua dimensão.

Literatura de primeira qualidade que, acima de tudo, passa a esperança de que um dia, talvez, tal como Lázaro, seremos levantados da escuridão da caverna e teremos outra oportunidade de vida na Terra.

Uma nova oportunidade para viver é tudo que se precisa, quando uma vida só, em meio à luta pra sobreviver e tentar ser um pouco feliz, num mundo extremamente injusto e conturbado, mostra-se insuficiente.
 

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Na tarde gelada e nevoenta de Gramado, todos somos celebridades

O Cavaleiro da Bandana Escarlate

photo: jfinatto

Alguns haverão de encontrar encanto em sair do cálido quarto de hotel, abandonar a leitura de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, e mergulhar na paisagem gelada e nevoenta de Gramado para assistir filmes no Festival de Cinema. Não é o meu caso.
 
photo: j. finatto
 
No hotel onde estou hospedado há tantos astros, estrelas, diretores e gente envolvida com cinema, que até um anônimo como eu chama a atenção.
 
Tenho participado, involuntariamente, de variadas rodas sobre temas relacionados ao mundo da tela grande. Não que eu faça questão. Sou ao natural um sujeito tímido e pouco falante. Prefiro sempre ouvir a falar. Não por modéstia, mas por falta do que dizer.
 
Ocorre que me pegam pelo braço no corredor, no café, no jardim, como se fosse um deles, e me levam pra lá, pra cá, em salas temáticas da sétima arte. Talvez o cabelo cinza, os óculos com lentes de fundo de garrafa e a aparência vetusta façam presumir alguém que não sou eu.
 
photo: j.finatto

A vida me ensinou que não é de bom tom perguntar-se o nome das pessoas nesse ambiente cinematográfico. Supõe-se que, entre nós, celebridades, existe o desejável, esperável e nunca desprezível recíproco reconhecimento.
 
A mim deram para chamar de Carlos, o Carlinhos do 707. Eu, que até dias atrás era um ilustre anônimo, pertenço agora à malta.

Sou um peixe navegando nessas marés de Deus, adapto-me com certa facilidade às vicissitudes, sobrevivo. E sempre gostei deste nome, Carlos! Já agora me sinto à vontade com a nova identidade.
 
Um diretor famoso (no festival todos os diretores são famosos) cismou de achar, num desses encontros, que, no início da carreira, trabalhou como meu assistente num filme. Disse aos presentes - pedindo que eu levantasse da cadeira, no fundo da sala - disse que eu lhe dei a primeira oportunidade.

Espantado, eu quis dizer que não, não era assim, ele estava me confundindo com outro. Mas o diretor imediatamente me interrompeu e retrucou:
 
- O velho e bom Carlinhos de sempre! Além de tudo, humilde!
 
A assistência aplaudiu, alguns de pé. Limitei-me a esboçar um breve aceno e sentei-me, curtindo meu momento de glória.
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O Cavaleiro da Bandana Escarlate, menestrel medieval e livre-pensador, faz a cobertura do Festival de Cinema de Gramado para o blogue a convite de Alberta de Montecalvino. Como o blogue não tem mecenas, o Cavaleiro paga todas as suas despesas e acha que está muito bem assim. Texto revisto, publicado antes em 10 de agosto, 2011.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Venimos de muy lejos

O Cavaleiro da Bandana Escarlate
 
photo: cena do filme
fonte: site dos produtores*
 
Não fique em casa sozinho, vendo televisão no sofá. Venha para a praça fazer teatro com a gente.
                                              Grupo de Teatro Catalinas Sur

Venimos de muy lejos (Viemos de muito longe, 2012), filme argentino com direção de Ricardo Piterbarg, é o melhor que vi até agora no Festival de Cinema de Gramado. Mais uma vez, o cinema argentino brilha, salva um festival que costuma ser apenas morno e faz valer a pena estar aqui em meio à chuva e ao frio.
 
O filme documenta o trabalho de criação e realização da peça Venimos de muy lejos, do Grupo de Teatro Catalinas Sur, que existe há trinta anos em Buenos Aires.

Catalinas Sur é o nome do bairro onde o grupo se formou, integrado pelas pessoas da comunidade. Vejamos o que eles dizem no seu site oficial*:

Somos um grupo de vizinhos que vemos no teatro a possibilidade de nos comunicarmos com outros vizinhos. Através do teatro, da música, do circo, dos títeres, queremos recordar o valor de nossas histórias individuais e coletivas e recuperar a memória que acreditou e que acredita em um mundo melhor.

Parece exagero dizer que o teatro pode mudar a sociedade, mas um grupo de homens e mulheres que fazem teatro pode levar adiante um projeto que não se limite aos novos modismos globalizados e se apóie nas ricas tradições e na história popular.


Pensamos e sentimos que o teatro é uma forma de comunicação e também de resistência. Estamos convencidos de que nossa utopia é possível e trabalhamos todos os dias para torná-la realidade.

photo: peça Venimos de muy lejos

Venimos de muy lejos conta histórias fictícias e reais, a partir da experiência dos imigrantes (italianos, espanhóis, poloneses, etc., antepassados dos membros do grupo) que vieram para a Argentina em fins do século XIX, inícios do XX, instalando-se nas imediações do porto da cidade de Buenos Aires, no bairro La Boca, conhecidíssimo hoje pelo time de futebol Boca Juniors (estádio La Bombonera) e pela rua-museu Caminito
 
Naquele lugar os imigrantes passaram a morar nos conventillos (cortiços), precariamente instalados em pequenos quartos, com problemas de toda ordem, desde várias pessoas dormindo no mesmo ambiente até diversas famílias usando um mesmo banheiro.
 
O filme traz a peça para a tela, contando as dificuldades e também a solidariedade que movia aquela gente, suas esperanças, suas lutas por um amanhã melhor, suas festas e canções, tudo sempre com muito humor.

Teatro comunitário. A peça, agora filme, estreou em 1990 na Praça Ilhas Malvinas do bairro Catalinas Sur, e segue sendo apresentada em outras praças, cidades e países.

O que mais chama a atenção é a maneira como o grupo atua na comunidade, chamando os moradores para a rua a fim de participarem das atividades artísticas e comunitárias.

Desde crianças até velhos, muita gente se envolve, opina, discute, atua, sendo a criação coletiva a principal característica.

O filme retrata tudo isso com muita riqueza.

Ao saírem da solidão dos apartamentos, as pessoas se encontram, conversam, sabem umas das outras, realizam vários tipos de oficinas, criam projetos, sentimentos e sentidos. E isto, nos dias de hoje, considerando a penúria de convivência em que se vive, é, no mínimo, revolucionário.
 

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Wagner Moura, ator e cidadão

O Cavaleiro da Bandana Escarlate
 
photo: j.finatto
 
No sábado, fez um frio polar aqui em Gramado, com a temperatura caindo para algo próximo de zero grau. Uma chuva bem molhada e insistente não parou o dia inteiro. À noite, no Palácio dos Festivais, assisti ao filme argentino Puerta de Hierro, El Exilio de Perón, e a um curta-metragem (o primeiro da programação noturna) que achei decepcionante, não entendendo como passou na seleção.
 
Para quem, como eu, conhece pouco a história da Argentina, o filme sobre o exílio de Perón (1955-1973), direção de Dieguillo Fernández e Víctor Laplace, tem interesse. Perón foi um líder político marcante e com personalidade complexa. Puerta de Hierro é o nome da casa em que ele morou em Madri, onde recebia visitantes e políticos, e na qual foi guardado o cadáver embalsamado de Eva Perón, depois que restou devolvido por inimigos de Perón, após terem mantido o corpo desaparecido por quase 20 anos. A obra aborda também sua amizade com uma jovem mulher espanhola, à qual confia suas memórias gravadas em fitas.

Naquele período conhece e casa-se com Isabelita. Através dela, entra na história um estranho com supostos poderes sobrenaturais, López Rega, dito El Brujo. Perón retorna à Argentina, é eleito novamente presidente, morre e assume sua vice, Isabelita, que dá poderes a Rega, seguindo-se um período de grande violência promovido por ele, que deságua no golpe e na ditadura militar em 1976.  
 
Um bom filme, embora não desenvolva como poderia as contradições de Perón, inevitáveis, para o bem e para o mal, em figuras de sua dimensão.
 
Mas o melhor da noite ocorreu depois deste filme, durante a entrega do Troféu Cidade de Gramado ao ator Wagner Moura, pelo conjunto de seu trabalho.

photo: j.finatto
 
Poucos artistas no Brasil conseguem se expressar tão bem sobre a arte e a função do ator como ele. Moura estava chegando dos Estados Unidos, onde foi para o lançamento do filme Elysium (estréia de Wagner em Hollywood), que no primeiro dia de exibição faturou cerca de 11 milhões de dólares, conquistando a primeira posição em bilheteria nos EUA.
 
Wagner disse, entre outras coisas, que partilhava o troféu com os atores de sua geração. Com a mãe presente no Palácio dos Festivais,  ele comentou que ela realizava o desejo de estar em Gramado e de ver o filho participando do festival.
 
photo: j.finatto
 
Depois ele referiu que no domingo, 11/8, Dia dos Pais, gostaria de almoçar com seu pai, abraçá-lo, mas não seria possível pois faleceu ainda durante a realização do filme Elysium.
 
O momento mais emocionante ocorreu quando ele dedicou o troféu aos filhos do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido desde 14 de julho, na favela da Rocinha, no Rio, quando, após identificar-se aos policiais que o abordaram com a carteira de trabalho, foi conduzido a prestar depoimento na Unidade de Polícia Pacificadora local e não foi mais visto. Sumiu.
 
Wagner disse que não poderia almoçar com seu pai porque ele ficou doente e morreu. Mas que os filhos de Amarildo não poderiam passar com seu pai porque ele desapareceu e não há explicações para isso.
 
O ator falou como alguém que, além de procurar fazer o melhor na profissão que exerce (e o faz muito bem), não se omite diante da realidade brasileira e de fatos dramáticos como o desaparecimento de Amarildo. Sabe dizer as coisas com verdade e sentimento. Além de ator, um ser humano e um cidadão.
 
photo: j.finatto
  

domingo, 11 de agosto de 2013

A sombra da esfinge

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto. duas magnólias
 

Como ele nunca tivera pai para amar, sempre lhe pareceu que a coisa mais em falta no mundo não é dinheiro nem qualquer outro bem material, mas um abraço de pai.
 
Quando menino, era difícil explicar aquela ausência para os outros. Na rua e na escola, as pessoas botavam olho, cara de admiração. Não ter pai era mesmo que não ter um braço ou uma perna.
 
A sombra da esfinge o perseguia no Dia dos Pais, aniversários, natais, páscoas, reuniões na escola, fins de semana, noites e dias sem fim. A falta projetou-se nos sonhos e pesadelos do menino.

O tempo passou.

Um dia ele descobriu que outras casas também não tinham a figura misteriosa. Só que muita gente escondia isso. Estranho: escondiam um ser que não existia. Ocultavam o mito. E alguns possuíam apenas uma deprimente imagem de homem no sofá da sala.

Os sem-pai já não eram exceção. Talvez fossem maioria.

Ficou nele a idéia de que as mulheres, e não os homens, fazem o moinho do mundo girar.

Na verdade, isso não era um consolo, mas a consciência de uma espécie de mutilação. Sempre falta um pedaço.

A humanidade é toda seqüelada, ele pensa, enquanto caminha com o filho pela mão na praça do bairro, domingo à tarde.
 
É que pra ele, agora, todo dia é Dia dos Pais. 
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Texto revisto, publicado anteriormente em 16 de maio, 2013.
 

sábado, 10 de agosto de 2013

O assassinato do ambientalista

Jorge Adelar Finatto

photo: Hernández, em imagem cedida por sua viúva. fonte: El País

O assassinato do ambientalista espanhol Gonzalo Alonso Hernández, 49 anos, ocorrido no último domingo, em seu sítio, no interior do município de Rio Claro, Estado do Rio de Janeiro, é mais um trágico acontecimento na história da luta pela preservação do meio ambiente no Brasil. Uma demonstração evidente - mais uma - do alto grau de violência que domina a sociedade brasileira.

Segundo o jornal El País*, da Espanha, Hernández, que era biólogo, estava no Brasil desde 1997. Inicialmente veio trabalhar como diretor de uma empresa de telefonia. Em 2005 decidiu largar o emprego para dedicar-se integralmente à causa da ecologia, abrindo mão do bom salário que o cargo lhe proporcionava. Passou a atuar no Parque Estadual Cunhambebe, uma reserva da Mata Atlântica, com 38 mil hectares. Conforme o periódico, ele era rigoroso na denúncia de caçadores e desmatadores, chegando até mesmo a segui-los e fotografá-los em suas atividades ilegais.
 
O informe dá conta, ainda, de que sua viúva, a brasileira Maria de Lourdes Pena Campos, e pessoas envolvidas na proteção ambiental temiam pela maneira firme e contundente com que Hernández atuava. Para os que lhe eram próximos, foi uma tragédia anunciada. De acordo com Maria de Lourdes, ele se queixava de que "os brasileiros nunca protestam por nada".

Ela acrescentou que o marido era uma pessoa estudiosa, caseira, que gostava de ler, além de dedicar-se à ecologia:

- Ele queria fazer um blog sobre meio ambiente, mas não deu tempo.

O secretário do Meio Ambiente de Rio Claro, Mario Vidigal, lembrou que ele era um idealista da causa ambiental, denunciando toda ilegalidade que via.
 
O ecologista foi atingido pelas costas com um tiro na cabeça, quando chegava em seu sítio, depois de levar a mulher até a rodoviária, onde ela embarcou para a cidade do Rio, na qual trabalhava durante a semana. Ela regressava aos finais de semana para encontrar o marido. O corpo só foi encontrado na terça-feira pela manhã, coberto por pedregulhos e folhas de bananeira, num riacho próximo. De sua casa foram levados o laptop, duas lanternas e o celular, informa O Globo**. Conforme a reportagem, Hernández participava do programa Produtores de Água e Floresta, uma parceria do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) com o Instituto Terra de Preservação Ambiental, a prefeitura de Rio Claro e a ONG The Nature Conservancy. Ele recebia uma compensação financeira pelo zelo ambiental. O homicídio está sendo investigado pelas autoridades.
 
A violência inaceitável e revoltante nos remete a um Brasil em que existe um abismo entre o elevado poder dos criminosos e a baixa capacidade do Estado em fazer valer a lei. As pessoas de bem, que respeitam regras de convivência e procuram fazer algo pelo coletivo e pela natureza (como Hernández), vivem à margem de proteção. Dominam a cena os bandidos, os malfeitores, os corruptos e corruptores, os violadores da ordem jurídica, que atuam com desenvoltura, sem nenhum limite, porque falta Estado para fazer respeitar a lei.

Os agentes que combatem a criminalidade se defrontam com a falta de recursos para exercer seu papel, com poucos meios materiais e humanos, muitas vezes sem mínimas condições de trabalho. Os salários pagos pelo Estado a esses homens e mulheres não condizem com a importância e o risco de sua missão.
 
Infelizmente, há muito o Brasil deixou de ser um País cordial e pacífico (se é que realmente algum dia o foi). O que vemos é um quadro crescente e assustador de violência, que radica na maior de todas elas, a corrupção.

A incompetência governamental, em níveis federal, estadual e municipal, em áreas essenciais como segurança, saúde, educação, transporte, infraestrutura, meio ambiente e outras, se acentua a cada dia. Com poucas exceções, a maior parte dos administradores públicos subestima a capacidade de indignação da população diante dessa situação, o que põe em risco as conquistas democráticas.

A terrível morte de Hernández é mais um dado nessa realidade brutal, que é a negação dos direitos humanos, da democracia e do estado de direito pelos quais tanto se lutou e tantos perderam, e continuam a perder, a vida.

Quantos outros ambientalistas estarão sofrendo ameaças e agressões neste momento pelo país afora, sem que nada seja feito? Triste Brasil.
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*El País:
**O Globo:
 

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Cley e Cortázar

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Julio Cortázar*

  "Sei que algum dia os brasileiros vão descobrir melhor Cley."
     Julio Cortázar
 
Volto ao livro Papéis Inesperados, de Julio Cortázar, sobre o qual escrevi faz algum tempo. Um texto me chamou a atenção, aquele em que Cortázar fala a respeito de seu amigo Cley Gama de Carvalho, que ele apresenta como jornalista e dramaturgo brasileiro. Impressiona o afeto, e também o respeito, que havia entre eles. Conheceram-se em Paris quando Cley fez uma entrevista com o escritor argentino.

Não eram amigos de se ver todo dia. Encontravam-se de vez em quando, a intervalos de dois anos, em geral. Quando Cortázar lhe perguntava, pessoalmente ou através de carta, como estava, a resposta era sempre a mesma: tudo bem.

Mas o escritor pressentia que as coisas não iam bem com o amigo, pelo contrário. Eram os anos dos governos de força neste lado do mundo e Cley teve sérios problemas com a ditadura militar no Brasil. Cortázar não sabia detalhes do que acontecia, pois Cley não era de lamentar-se e evitava o assunto. Mas sentia que a realidade, a cada dia, pressionava mais e mais o brasileiro.
 
É um texto cálido sobre o amigo Cley que se suicidou no Brasil, no final de 1976 ou inícios de 1977, não há precisão. O companheiro que enviava garrafas de cachaça, pelo correio, para Cortázar enfrentar o inverno. Algumas chegavam estilhaçadas no pacote.

O argentino refere-se, também, à peça de teatro que Cley escreveu, intitulada Cromossomos (Como somos), e que considera "magnífica", "cuja representação no Brasil não havia servido exatamente para facilitar a vida e a tranquilidade de Cley". Esse elogio, vindo do criador de Histórias de Cronópios e de Famas, tem que ser bem apreciado.
 
Nunca ouvira falar antes de Cley Gama de Carvalho até ler este texto.
 
Tentei encontrar alguma informação sobre ele, algum trabalho de sua autoria, mas muito pouco consegui até agora. Vou continuar atento. Afinal, pelo que diz Cortázar (poderia haver melhor testemunha?), foi uma pessoa muito especial e um autor importante:
 
"algum dia os paulistas, todos os brasileiros, saberão melhor quem foi Cley Gama de Carvalho, como passou por seu tempo com uma dignidade de grande urso livre, com um sorriso calado de ironia sem maldade".
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Papéis Inesperados, Julio Cortázar. Para uma imagem de Cley, pp. 367/372. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2010.
*Foto de: Julio Cortázar. Fonte: www.juliocortazar.com.ar. O crédito será dado ao autor tão logo tenhamos a informação.
Este texto publicado anteriormente em 18 de agosto, 2010.
Leia também Urso solitário, do artista plástico Mario Gruber sobre Cley:
http://www.memorial.org.br/acervo/obras-de-arte/homenagem-a-clay-gama-de-carvalho/urso-solitario/
 

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Proust no Festival de Cinema de Gramado

O Cavaleiro da Bandana Escarlate

photo: j.finatto. magnólias de Gramado. agosto 2013
 

Estava em solidão com o livro (Em busca do tempo perdido) no breve jardim de inverno no meu solar da Praça Maurício Cardoso, na madrugada fria de Porto Alegre, quando ouvi o som do telégrafo no escritório. Sim, ainda tenho um desses vetustos aparelhos (ninguém mais sabe o que é isso). É com ele que me comunico com Passo dos Ausentes.

Quem será no manipulador a uma hora dessas? Ainda há gente viva naquela cidade perdida? - perguntei-me.
 
Pedi licença a Marcel Proust (1871-1922) para ausentar-me um momento. Ele me olhou como quem diz: vá lá, eu tenho toda a eternidade pela frente.

Subi ao escritório e li a mensagem. Era Alberta de Montecalvino*, a Senhora da Biblioteca, me lembrando que nesta sexta-feira, 09 de agosto, começa mais um Festival de Cinema de Gramado, que se estenderá até o dia 17. Trata-se da 41ª edição do evento, que reúne filmes brasileiros e latinos. Mais que isso: a nobre dama me convocou a fazer a cobertura do festival para o blog.

Do meu jeito, claro, com liberdade, inclusive, para não assistir a todos os filmes (quem há de ver tudo?). Eu não consigo. Preciso de um tempo para respirar e admirar as magnólias que brilham nessa época contra o céu azul de Gramado. 
 
Respondi que sim, tenho por norma jamais dizer não ao cinema e à Alberta. Depois, naquela glacial madrugada, voltei ao jardim e comuniquei a meu amigo que teria de viajar, expliquei-lhe o motivo.
 
- Não se explique tanto, vá em paz, meu caro. Na sua volta, estarei aqui, esperando, aliás como sempre faço - disse-me Marcel. Havia nessas palavras muito mais que compreensão: era a ironia proustiana caindo sobre mim.
 
E não pense o leitor que me espantei, pois faço jus à ironia do grande escritor francês. Faz trinta anos que não consigo terminar de ler os sete volumes de Em busca do tempo perdido.
 
Proust por volta de 1900. photo: Sygma/Corbis.
fonte: site do jornal The Guardian**

Deus, é difícil confessar tamanha barbaridade. As páginas dos volumes ficaram amarelas, muitas coisas caíram no esquecimento dentro de mim, meus cabelos ficaram cor de cinza. Minha culpa não tem limites e é ainda maior do que aparenta: sequer recordo quantas vezes iniciei e interrompi a leitura do primeiro volume (No caminho de Swann), na bela tradução de Mario (sem acento, por favor) Quintana.
 
Pois justo agora tinha decidido seguir até o fim. Com o constrangimento habitual, pedi desculpas a Marcel que, com gravata de laço, perna esquerda cruzada, sentado, olhou para o teto, ergueu a mão direita, deixando-a cair em seguida sobre o braço vermelho da poltrona.
 
- C'est la vie, c'est la vie, mon ami, disse ele com visível enfado, baforando a cigarrilha contra a luz do abajur azul. No mesmo instante perguntei se não gostaria de viajar comigo a Gramado. Poderíamos continuar a conversa na serrana cidade, andar pelas ruas, ir a cafés e tavernas, que nessa época se enchem de felinis e mazaropis. Qual não foi minha surpresa com a concordância de Marcel.

Preparei a Yamaha 250 cilindradas (ano 1974), pouca roupa no alforje e parti, partimos, em tresloucada aventura pela BR-116. Marcel veio na carona da moto.
 
E aqui estamos olhando a imensidão do Vale do Quilombo, no hotel, depois de três horas de vento e garoa na cara. No caminho, paramos em Nova Petrópolis para um café com memorável fatia de bolo caseiro, que teve para nós o sabor de uma madeleine proustiana.

Publicado em 1913, No caminho de Swann foi pago com o dinheiro do próprio escritor. É a porta de entrada desta grande, bela e acolhedora casa. Desta vez, vou tentar não decepcionar Marcel. Enquanto o festival não começa, estamos convivendo, varando as noites em busca da memória e do sentido das coisas.

Os filmes que quero ver. O que mais me move nesta empreitada, não vou negar, é assistir aos seguintes filmes:  A Oeste do Fim do Mundo (2013) - Argentina/Brasil (coprodução); Cazando Luciérnagas (2013) - Colômbia; El Padre de Gardel (2013) - Uruguai; Puerta de Hierro - El Exilio de Perón (2012) - Argentina; Repare Bem (2012) - Portugal; Venimos de Muy Lejos (2012) - Argentina.

O cinema que se faz na Argentina, principalmente, e no Uruguai, atualmente, está entre os melhores do mundo. Pretendo acompanhar de perto esses filmes, sem esquecer alguns brasileiros (embora sem levar muita fé, confesso. Tomara que me surpreenda).

E, é claro, não vou perder os curtas, que passam às tardes, gratuitamente, no Palácio dos Festivais. Descobri belos trabalhos entre os curtas nas edições anteriores.

Os pequenos-grandes filmes são a cereja do bolo do festival de Gramado.

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O Cavaleiro da Bandana Escarlate, menestrel medieval e livre-pensador, faz a cobertura do Festival de Cinema de Gramado para o blogue a convite de Alberta de Montecalvino.
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/01/o-conde-de-lautreamont-e-as-magnolias.html

*Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html

**The Guardian:
http://www.theguardian.com/books/2013/feb/07/reading-group-swanns-way
 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Imagens do Vale do Quilombo

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto

 
Tem início hoje na Universidade de Caxias do Sul, campus da cidade de Canela, a exposição fotográfica Visões do Vale do Quilombo. São 22 imagens que fiz com a intrépida Coruja durante as minhas passagens por Canela e Gramado, onde se situa o Vale, nas idas e vindas a Passo dos Ausentes.
 
São pinturas de quem não sabe pintar, mas gosta de registrar imagens da natureza.
 
photo: j.finatto
 
Gosto de photos que nos transportam para um lugar espiritual.
 
Fotografar, como escrever, faz parte da vã tentativa de dominar o tempo, aprisionar o transitório. A arte é talvez a busca da impossível permanência. Isso de que somos carentes. A brevidade da vida é algo assustador e não está de acordo com nossa ânsia de beleza e eternidade, perceptível em quase tudo que fazemos.
 
Nesta luta entre o rochedo e o mar, a gente faz o que pode. São formas de partilhar a vida.
 
photo: j.finatto

A fotografia só se completa no olhar e no sentimento do observador.
 
Estão todos convidados.

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Exposição de 05 a 31 de agosto, na UCS, Canela. Fone: 054-32825200