quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Maiakóvski: a última esperança

Jorge Adelar Finatto
 
O poeta Maiakóvski em 1929
 
               
               Não vivi até o fim o meu bocado terrestre.
               Sobre a Terra
               não vivi o meu bocado de amor.
                    Maiakóvski (trecho do poema A propósito disto, 1923)¹
 
A insuficiência da vida, onde não viemos para passar férias ou viver em harmonia, mas para enfrentar toda sorte de vicissitudes e incertezas, com raras intermitências de felicidade e paz, é um dos principais motivos que levam o ser humano a procurar na arte um pouco de consolo e transcendência.

Um dos mais belos poemas que já li é A propósito disto, do poeta russo Vladímir Maiakóvski (1893-1930). Ele lutou ao lado dos bolcheviques na Revolução Russa de 1917 e depois, na sua área, que era escrever poemas, pintar cartazes (no Museu da Revolução, contavam-se mais de três mil pintados por ele e cerca de mil frases poéticas para o front²), realizar recitais viajando por todo o país, debater, falar sobre a função da arte, compor peças teatrais, colaborar na imprensa.

Maiakóvski fez o que pôde para a realização dos ideais revolucionários. Acreditava no novo homem que haveria de nascer com a revolução, sem vis mesquinharias, avesso à brutal exploração, solidário, aberto ao amor e ao diálogo, disposto a construir uma sociedade e um planeta bons para todos.

Empenhou-se com aguda sensibilidade de grande poeta. Foi um caso raro de escritor que trabalhou em função de uma causa, sem contudo diminuir o valor de seu fazer literário. Conseguiu ser um imenso poeta, mesmo vivendo os difíceis dias da revolução, nela empregando seus esforços. Mas entre a crueza da política e a alma sensível havia contradições que com o tempo se tornariam maiores e insuperáveis. Disse ele uma ocasião:

Não sei como se juntaram em minha cabeça os versos e a revolução.3

Um dia cansou, exaurido na luta, nas incompreensões, na pequenez e na sordidez de muitos dos que queriam, pretensamente, mudar a realidade (afinal, digo eu, os camaradas tomaram o poder e, uma vez nele, aparelharam o Estado, eliminaram a oposição e revelaram-se, com o tempo, iguais a tantos tiranos em qualquer parte do mundo. Veja-se o longo período de Stalin).

Ouçamos Emílio Carrera Guerra em seu excelente A vida de Maiakóvski:

Não bastavam o gênio, as provas de sinceridade, o trabalho árduo e honesto do poeta, para que seus inimigos fossem aplacados, para que seus adversários o deixassem em paz. Ao contrário, seu êxito crescente fazia com que mais se encarniçassem contra ele. 4

Maiakóvski não encontrou o novo mundo por que tanto ansiou e lutou, não teve tempo para viver e amar em paz. Deixou para o futuro o encontro definitivo com sua amada Lila Brik.

Com uma única bala no velho revólver, o poeta disparou contra o coração na noite de 14 de abril de 1930. Terminava, assim, num ato de desespero, antes de completar 37 anos, a vida de um dos maiores poetas que a humanidade conheceu.

photo: j.finatto

Em 12 de abril, escreveu a carta de despedida. Nela estava transcrita, em meio ao texto, parte do poema no qual trabalhava, À plena voz:

A todos!... Eu morro, não culpeis disso a ninguém. E nada de falatórios. O defunto tinha horror a isso.
Mamãe, minhas irmãs, meus camaradas, perdoem-me, isto não é um meio (não o aconselho a ninguém), mas para mim não há outra saída. Lili, ama-me. (...)

Como se diz
"O incidente está encerrado"
O barco do amor
                            quebrou-se contra a vida quotidiana
Estou quite com a vida
Inútil passar em revista
                               as dores
                               as desgraças
                               e os erros recíprocos.
Sede felizes! 5

Sete anos antes, em 1923, Maiakóvski escreveu este que é um dos poemas absolutos que nos legou, A propósito disto. Neste texto, imagina o futuro limpo de podridões, no qual se encontra o laboratório das ressurreições humanas. Nesse ambiente, o poeta vê o calmo químico, a vasta fronte franzida em meio à experiência.

E acrescenta: num livro, intitulado Toda a Terra, o cientista procura um nome, alguém a quem ressuscitar no século XX. Ao encontrar o poeta nas páginas do livro, o químico fica em dúvida e acaba desistindo dele, busquemos matéria mais interessante!

Diz, por sua vez, o poeta:

                              Será então minha vez de gritar
                                       daqui mesmo,
                                              desta página de hoje:
                              "Pára, não folheeis mais!
                                      É a mim que deves ressuscitar!" 6

Para um cristão, o cientista seria Deus, tratando de ressuscitar os mortos no fim do atual sistema de coisas. A esperança do poeta, por outro lado, é a mesma de todo mundo (ou pelo menos de muitos): voltar à vida, tornar a viver, sair do fundo da caverna escura (tal como Lázaro*) para uma vida plena, sem tantos sofrimentos, doenças, problemas, angústias, tragédias e o inevitável abismo da morte.

Prossegue Maiakóvski, na sua/nossa esperança:

                    Vosso Trigésimo Século
                                                   ultrapassará o enxame
                    de mil nadas,
                                         que dilaceravam o coração.
                    Então,
                           de todo amor não terminado
                    seremos pagos
                                            em inumeráveis noites de estrelas.
                    Ressuscita-me,      
                                             nem que seja só porque te esperava
                                                                            como um poeta,
                    repelindo o absurdo quotidiano!
                    Ressuscita-me,
                                             nem que seja só por isso!
                    Ressuscita-me!
                                             Quero viver até o fim o que me cabe! 7

O poema, belíssimo, continua. O grito de Maiakóvski em direção ao futuro, para ser ouvido pelo químico no laboratório das ressurreições, certamente será escutado e atendido um dia, pois poucos como ele souberam pedir, com tanta fé, por uma nova oportunidade na vida.

______________

1. O poeta-operário. Antologia poética. Vladímir Maiakóvski. p. 154. Tradução e estudo biográfico de Emílio Carrera Guerra. Cìrculo do Livro S.A. São Paulo, 1991.
2. idem, p.30.
3. idem, p.13.
4. idem, p.66.
5. idem, p.95.
6. idem, p. 154.
7. idem, pp. 155-156.
*Lázaro, o levantado dos mortos
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/08/lazaro-o-levantado-dos-mortos.html
O crédito da foto será dado assim que conhecida a autoria.
 

2 comentários:

  1. Caetano junto com um letrista, do qual não lembro o nome, compôs uma música cantada por Gal Costa, utilizando excertos de versos deste poema.
    Chama-se "O amor". Lindíssima.
    Maiacoviski foi grande em toda a sua extensão.
    Infelizmente, quando viu que poesia & política não se conciliavam, preferiu o suicídio.
    Bem ao contrário do poeta, interpretado por Jardel Filho, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, que empunhava a metralhadora e recitava versos.
    Depois, ia às festas e orgias da burguesia.
    Maiacoviski foi um poeta orgânico. Merece ser mais divulgado para as novas gerações.

    Abs.

    Ricardo Mainieri

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    1. Ricardo,
      ao menos uma vez ele pensou no Brasil, nestes versos:
      "Dizem
      que em alguma parte
      parece que no Brasil
      existe
      um homem feliz."

      Um abraço.
      JF

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