domingo, 21 de abril de 2013

O senhor do tempo

Jorge Adelar Finatto
 

ilustração: Maria Machiavelli
 

De antigo senhor das horas, o meu velho relógio virou vítima do tempo e hoje sofre com longos intervalos de ausência.

É um relógio que me acompanha desde o século passado. É um objeto austero e simples. Não existem outros como ele à venda. É um dos últimos exemplares vivos de sua geração, se não for o último.
 
Registrou com precisão a passagem do tempo durante muitos e muitos anos. Esse mesmo tempo agora volta-se contra ele.
 
O calendário numérico funciona às vezes, e o escrito perdeu-se na bruma. Esquece em que dia da semana estamos, não sabe bem se é segunda, sábado ou domingo. A passagem das horas confunde-lhe o mecanismo e, por vezes, ele pára sem saber o que fazer, como alguém que perdeu a memória numa esquina, de repente.
 
Em suma, o relógio que por séculos me guiou na mata escura dos dias precisa agora ser guiado.
 
Não tenho coragem de separar-me dele, jamais o faria e me recuso a sequer falar no assunto. Contudo, sem que ele soubesse, tive outros relógios, mais funcionais e modernos. Nenhum, porém, conseguiu substituí-lo no meu afeto. 
 
Toda vez que abria a gaveta, encontrava-o calado, sem nada reclamar, olhando as paredes internas do cubículo sombrio. Ao perceber minha presença, olhava-me nos olhos como quem se coloca à disposição para o trabalho e a luta. Um companheiro valente e digno.

Resgatei-o agora das trevas.
 
Se ele é hoje apenas a lembrança do relógio que foi um dia, por outro lado não posso negar-lhe reconhecimento pelos serviços prestados. Além disso, atravessamos momentos difíceis juntos, vivemos muitas situações complicadas e dolorosas nessa vida, coisas que atormentam o pensamento e queimam o coração. E às vezes fomos felizes também.
  
Carregar o tempo nas entranhas, como ele sempre fez, segundo a segundo, ano após ano, sem descanso, num giro interminável e monótono, é ofício dos piores.
 
Mandei-o à oficina já por três vezes, mas não resolveu o problema. Decidi poupá-lo das internações inúteis no hospital dos relógios, pois observei que o magoam pelo ar de tristeza com que retorna a casa.
 
Não sou mais escravo do tempo. Eu faço o que quero do meu tempo. (Por favor, raro leitor, não se iluda: essa disponibilidade é tão sedutora quanto terrível). 
 
Trago o antigo relógio no pulso outra vez. Faço-lhe ajustes manuais e tocamos a vida. Quando é necessário, em razão de compromissos e viagens longas, levo um outro, no bolso ou na mala, sem que ele perceba. E assim levamos o nosso barco.