domingo, 6 de outubro de 2013

Monsieur Jardin du Bonheur

Jorge Adelar Finatto
 
 
estação de trem no dia da chegada de M. Jardin. photo: j.finatto


Du Bonheur, Monsieur Jardin du Bonheur. É natural de uma colônia do interior de Gramado. Vem de uma nobre linhagem de espantalhos da região do Valais, nos Alpes suíços. No Brasil, os Bonheur fixaram-se na Serra gaúcha no fim do século XIX.

Ele desembarcou na estação de trem de Passo dos Ausentes no final dos anos 1940, pouco antes da melancólica desativação do transporte ferroviário em nossa região, os Campos de Cima do Esquecimento. Estranhável pela roupa velha, amassada e colorida, pelo chapéu de palha desfiado nas extremidades e pelo sotaque que mistura português, alemão e francês, logo na chegada atraiu muitos olhares.

Com uma surrada mala de couro na mão, caminhava com as finas pernas em arco e com os ombros levantando e baixando, alternadamente, feito gangorra. Assim que desceu do trem, foi em direção a Juan Niebla, o músico cego que tocava bandoneón na gare para alegrar os passageiros. Indagou se sabia onde podia encontrar trabalho, esclarecendo que era espantalho profissional. Niebla indicou a minha casa. Desde então ele vive aqui comigo.

Nunca precisei de um espantalho. Niebla me encaminhou Jardin para fazer troça comigo, e divertiu-se muito com a situação.

Percebi nos primeiros dias que Jardin jamais seria um espantalho convencional. É, na verdade, um subversivo do ofício. Não veio ao mundo para assustar aves em plantações e jardins, nem tampouco pessoas, estas por natureza tristes e sofridas.

Jardin é um espantalho vivo e alegre. Veio ao mundo para fazer graça às crianças e espantar a tristeza dos mais velhos.

Contemplativo, revela-se amigo do livre pensar e dos livros, que lê tanto de pé como sentado no jardim e no quintal, encostado na vetusta carreta coberta de vasos floridos. 

É bom conversador e tem livre acesso à minha pequena biblioteca.

Gosta de chá de maçã com canela. Vem ao escritório três ou quatro vezes por semana para pôr a conversa em dia e beber seu chá. Costuma observar demoradamente o Vale do Olhar. É quando sinto certa nostalgia no claro azul daqueles olhos. Às vezes, na minha ausência, ele se recosta na poltrona de couro marrom perto da janela, cobre-se com a manta de lã e dorme feito um menino.
 
À noite, quando a solitude e o frio pedem lareira acesa e aconchego, vamos para a sala dos fundos, de onde se avista, muito longe, o Contraforte dos Capuchinhos. Dali se vêem as muitas faces das estrelas que rebrilham a anos-luz de distância.

É quando mais gosto de ouvir as histórias do meu amigo, que emigrou da mansidão da colônia para o meu singelo jardim e, sobretudo, para o meu coração.
 
Jardin é meu confidente e também o é dos pássaros. Leva a vida a folhear seus livros e fazer anotações debaixo do pinheiro-mor. De vez em quando, assume a missão de seus ancestrais. Vai para o meio do jardim, estende os braços horizontalmente e abre um largo sorriso.

Nesse momento recebe a visita de muitos pássaros que lhe pousam nos braços e no chapéu. Para atraí-los traz sempre nas mãos grãos de alpiste.
 
A barba por fazer, as botas escuras, uma espiga de milho em cada bolso do casaco, a camisa quadriculada com retalhos coloridos e a gravata-borboleta azul dão-lhe um aspecto jovial. Uma capacidade de observação além do comum faz de Jardin um ser diferente. 
 
Um dia comentei que sua aparência lembrava a figura de um poeta antigo ou talvez um filósofo.
 
A comparação trouxe-lhe certo encanto: 
 
- Vivo longe das vaidades desse mundo, existo modestamente, em contato com a natureza, tagarelando com os pássaros que me visitam em busca dos farelos que trago sempre nos bolsos e nas mãos. Por isso amo a poesia.
 
Antes de sair do escritório, Jardin abriu a estante e pegou O Caminho do Campo *, obra do filósofo existencialista alemão Martin Heidegger (1889-1976), famoso habitante da Floresta Negra.
 
Leu estas linhas em voz alta:
 
“O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo o que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente ambas as coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz. Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu destino.”
 
Acrescentou Monsieur Jardin:
 
- Essa é a parte boa do pensamento heideggeriano, em oposição à outra, sombria e inaceitável, que se envolveu com o nazismo, o que é simplesmente grotesco para um filósofo (e para qualquer ser humano dotado de um pouco de sensibilidade e inteligência), manchou-lhe a biografia. Triste.

O controvertido filósofo, digo eu, concordando com meu amigo, nunca veio a público dar explicações (que devia) e nem desculpou-se. Nunca pediu perdão. Silenciou. Isto é trágico para um pensador.

Monsieur Jardin despediu-se, sumindo na escada, deixando no ar um aroma de ervas silvestres.

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Sobre o problema do ser. O Caminho do Campo. Martin Heidegger. Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1969. Tradução de Ernildo Stein.