terça-feira, 9 de setembro de 2014

Depois de tudo

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
Depois de tudo ele quer só um banho. Não o tagarela e desajeitado das enfermeiras. Anseia um banho demorado, com direito de ficar só, recolhido, senhor de seus domínios.

Durante o tempo em que esteve longe do mundo e do próprio corpo, viajando na nuvem de morfina, sonhava sentar debaixo de uma cachoeira e ali ficar um dia inteiro sentindo a água cair.

Havia muitas árvores nesse lugar, camélias brancas e vermelhas, pássaros, um ar carregado de fragrância de mato, bom de respirar. Havia também uma mesa larga e comprida, onde gente da família e amigos se reuniam para o café da tarde.

Até os desaparecidos se chegavam na mesa para conversar com ele. Até mesmo o pai, imemorial ausência, surgiu no sonho e o abraçou calidamente, como nunca antes fizera.

Reencontrou o córrego da infância, entre os pinheiros. Caminhou descalço sobre os seixos, olhou o movimento ligeiro e colorido dos peixes na água. Recordou o jeito da saíra entrar e sair do ninho. A suave luz de maio a tudo envolvia.

Agora está de novo em seus domínios, o hospital ficou pra trás. Embaixo do chuveiro, a água morna escorrendo na cabeça, no corpo, ninguém pra segurá-lo, virá-lo dum lado pra outro feito joão-bobo.

Sob a água, sentindo os seixos nos pés, o vento macio na face, os peixes luminosos, as conversas na mesa larga dos afetos, ele celebra a dádiva de estar vivo. 
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Texto publicado em 1º de julho, 2010.
 

2 comentários:

  1. muitas vezes, o que se quer na vida é um bom banho quente que lave o corpo e retire as impurezas da alma. bela crônica. abraço. Ricardo Mainieri

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    1. O que eu espero também é que o banho - de cachoeira ou chuveiro - leve embora as ziquiziras da vida. Um abraço.

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