domingo, 9 de março de 2014

Fernando Pessoa e o barbeiro Manassés

Jorge Adelar Finatto
 
Fernando Pessoa. fonte: Casa Fernando Pessoa


Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Fernando Pessoa, no poema Mar Português
 
Em 2007 estive na minúscula sala onde funcionou a Barbearia Seixas do senhor Manassés, na Rua Coelho da Rocha, bairro Campo de Ourique, em Lisboa. Ele foi, durante muitos anos, o barbeiro de Fernando Pessoa (1888-1935), que morou naquela rua entre 1920 e 1935. Conversei na ocasião com António Seixas, quase octogenário, que ocupava então a velha sala que tinha pertencido ao seu pai.

Não era mais uma barbearia, mas uma oficina para conserto de aparelhos de som. Estava localizada quase na frente do prédio onde o poeta viveu até a morte em 30 de novembro de 1935. No local existe hoje a Casa Fernando Pessoa.
 
Sobre esta longa conversa e as revelações de António (que conheceu o poeta) escrevi O barbeiro de Fernando Pessoa, publicado no blog.¹

Acrescento algo que não divulguei naquele texto. O poeta vivia na época na companhia da irmã, do cunhado e da sobrinha. Segundo António Seixas, o relacionamento de Fernando com o marido da irmã não era bom.

Não admira que assim fosse. O poeta levava uma vida de solteirão, ganhava pouco como correspondente de inglês e francês em casas comerciais, bebia muito (fato que contribuiu para a morte precoce aos 47 anos) e fumava como uma chaminé no pequeno quarto que ocupava no apartamento. O cunhado era coronel acostumado à disciplina da caserna. A contradição entre as visões de mundo de ambos é de fácil percepção.

A família, contudo, foi fundamental na vida de Fernando Pessoa. Nela ele encontrou amparo emocional e material. Não foi por acaso que viveu os últimos 15 anos na casa da irmã. Ali se sentia acolhido, não obstante as diferenças com o cunhado (de resto comuns entre pessoas do mesmo grupo familiar).

Arrisco a dizer que não haveria a obra genial sem o lastro afetivo e prático da família (açoriana pelo lado materno). Os familiares de Pessoa foram essenciais na sua vida e contribuíram para que ele tivesse condições de dedicar-se à escrita.

photo: j.finatto, 2007, Lisboa

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Ontem, 8 de março, pessoanos do munto inteiro recordaram os cem anos do famoso Dia Triunfal (08 de março de 1914).

Conforme relatou Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, em carta de 13/1/1935, ao abordar a gênese dos heterônimos: "(...) acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim." ²

Vieram à luz, no êxtase do Dia Triunfal, o Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, "O Mestre"; após a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa; seguindo-se a revelação dos heterônimos Ricardo Reis e Álvaro de Campos (este com a Ode Triunfal).

A carta foi escrita alguns meses antes da morte do poeta. Segundo estudiosos, o Dia Triunfal foi uma ficção de Pessoa para explicar a origem dos seus "outros".³

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¹O barbeiro de Fernando Pessoa:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/03/o-barbeiro-de-fernando-pessoa.html
²Arquivo Pessoa:
http://arquivopessoa.net/textos/3007
³O "dia triunfal" de Pessoa: uma ficção verdadeira
http://www.publico.pt/cultura/noticia/o-dia-triunfal-de-pessoa-uma-ficcao-verdadeira-1627473
Casa Fernando Pessoa:
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2233