domingo, 30 de novembro de 2014

O raio perfumado

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
De como Claudionor, o Anacoreta, emigrou para o planeta FAJ 376, na constelação de Rio Erídano, a 35 milhões de anos-luz. O embarque na nave interestelar em plena Praça da Ausência, sob o olhar incrédulo dos 495 habitantes da cidade. Onde se conta como o fantasma do poeta Rainer Maria Rilke, em suas aparições noturnas na Biblioteca Pública Municipal de Passo dos Ausentes, foi o causador da grande viagem e se dão a conhecer outros eventos.
 
Faz 10 anos que Claudionor, o Anacoreta, afastou-se do mundo. Foi viver em solidão numa caverna do Contraforte dos Capuchinhos. Faz 10 anos que Mocita de La Vega ficou só e não teve mais ninguém depois que ele se foi.

Claudionor  tornou-se um místico conhecido e respeitado em toda a região. Vive em estado de contemplação desde a desilusão amorosa,  aos 20 anos.
 
Eles jamais revelaram o que motivou o rompimento. Foram inseparáveis desde a infância até o fatídico dia em que Claudionor surpreendeu Mocita nos braços do fantasma do poeta Rainer Maria Rilke, na Biblioteca Pública de Passo dos Ausentes, onde ela é bibliotecária.

A paixão literária transfigurou-se entre a jovem guardiã de livros e o bardo. Aparições freqüentes de Rilke na Biblioteca afetaram o coração de Mocita, apaixonada pela obra do poeta, em especial pelas Elegias de Duíno, as quais sabia de cor. O volátil não resistiu aos cabelos negros, à pele alva como o luar e à sensibilidade da bibliotecária que traz no corpo os contornos de um violão.

Claudionor sentiu-se desmoronar depois do que viu - segundo dizem as línguas ferinas. Despediu-se da mãe, a costureira Helena dos Santos Leaens e Bragança, numa cinzenta manhã de julho de 2004. Disse que ia procurar mudas de jasmim na mata, a principal paixão de sua vida depois de Mocita. Nunca mais voltou.

Um ano ficou sumido. Nada menos do que cinco expedições saíram à sua procura. Rastrearam-no pelas matas e até mesmo no fundo de abismos. Concluíram que ele tinha se atirado num dos muitos penhascos que cercam os Campos de Cima do Esquecimento. O corpo fora devorado por onça ou leão-baio, feras que ainda habitam a profundeza da Mata Atlântica.

Isto foi assim até o dia em que o pombo-correio dos Capuchos do Perpétuo Amanhecer trouxe à cidade um bilhete do superior da ordem informando que Claudionor estava vivo. Vivia em reclusão numa caverna não distante do mosteiro. No informe especificou as cooordenadas do lugar onde o místico se encontrava, "vivendo uma vida nova, voltada ao silêncio e ao encontro com Deus e os Anjos, nas altas esferas do reino espiritual".

A caverna de Claudionor situa-se no alto de uma chapada no Contraforte dos Capuchinhos, a 2 mil metros de altitude. De lá, olhando-se para leste, tem-se a visão azul e distante do Oceano Atlântico. Flores silvestres margeiam o caminho de pedras e grama que vai dar na porta da austera habitação.

A barba espessa e a cabeleira negra sobre a túnica branca escondem o homem ainda moço.
 
Em julho de 2014, outra mensagem de Dom Eleutério, o Benigno, foi entregue pelo pombo-correio na Sociedade Histórica, Geográfica, Literária, Artística, Astronômica, Antropológica, Esportiva, Recreativa, Geológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes, aos cuidados de seu presidente, o filósofo Don Sigofredo de Alcantis.

Enquanto Don Sigofredo comentava o conteúdo da mensagem com Mocita, secretária da sociedade, um fato estranho se passou nos céus da cidade.

Um objeto em forma de bola, achatado nos polos, com cerca de 20 metros de diâmetro por 10 de altura, surgiu do nada e cruzou lentamente o espaço aéreo de Passo dos Ausentes. Movia-se sem qualquer ruído. Depois de sobrevoar o casario e a igreja, parou sobre a Praça da Ausência, a 30 metros do chão. Era uma tarde fria de céu claro, às 4h em ponto. Muitas pessoas foram até a praça ver o que se passava.
 
A nave tinha cor azul-clara. Uma luz branca e gelada pulsava no interior. Possuía seis escotilhas distribuídas circularmente na parte superior. Uma espécie de tubo de alumínio projetou-se até o centro da praça, ao lado do chafariz. Alguém começou a descer por ele num estreito elevador. Era um homem vestindo macacão preto com um distintivo cor de prata no lado esquerdo do peito. Havia no símbolo coisas escritas em caracteres indecifráveis.

Saiu do tubo e disse que queria falar com a autoridade local. Imediatamente buscaram Don Sigofredo. O filósofo aproximou-se levemente arqueado, com a bengala, o terno preto, cabelo e cavanhaque brancos e bigode torcido para cima nas extremidades.

- Boa-tarde, a que devemos a honra da visita - disse Don Sigofredo ao viajante do espaço, com ar de quem já vira coisas suficientes nos Campos de Cima do Esquecimento e não se deixava mais impressionar.

O alienígena retirou os óculos muito grandes. Só então se percebeu que seus olhos eram enormes, do tamanho de uma bola de tênis, e a testa muito maior que a humana.

- Desculpe-nos chegar dessa maneira, sem aviso. Recebemos a missão de vir a este lugar buscar um dos seus que pretende conhecer a nossa civilização. Somos do planeta FAJ 376, da constelação Rio Erídano, interior da galáxia espiral NGC 1637, a 35 milhões de anos-luz do seu planeta.

- Ora bem. Quem é a pessoa que quer nos deixar para ir tão longe, poderia nos dizer?

- Sou eu, Don Sigofredo - disse uma voz na entrada na praça. Era Claudionor, o Anacoreta, que trazia o alforje ao ombro, a longa túnica branca com botões brancos abotoados até o pescoço.

- Fiz contato com esta civilização após anos de meditação. Conversamos com o pensamento. Depois do primeiro contato, Palomar Boavista me ajudou com seu telescópio a localizar no céu a espiral NGC 1637. Eles me convidaram para uma viagem. Vou mas pretendo retornar um dia.

- Que maluquice é essa, menino, sair por aí assim?- interpelou aflito Don Sigofredo. E sua velha mãe, e nós? 

- Não vá, Claudionor - disse uma mulher que se aproximou ofegante entre as magnólias. Era Mocita.

- Claudionor, por favor, não - continuou ela. Temos muito que conversar. Não quero mais viver longe de ti. Queria ir dizer isso lá na tua caverna. Eu sei que faz muito tempo. Mas isso assim não é vida. Quanto tempo perdido, quanta vida morta por nada! - exclamou, enquanto lágrimas escorriam dos seus olhos.

- Peço perdão a todos, mas tenho de partir. Faz parte de um projeto espiritual. Quero conhecer esta civilização que é muito desenvolvida. Vou te levar no coração, Mocita. Nunca te esqueci.  Peço que olhem por minha mãe enquanto estiver fora.

- Senhores, temos que ir - disse o viajante do espaço. São 35 milhões de anos-luz!

- Não vá, Claudionor. Não desista de nós - insistiu Don Sigofredo.

O visitante olhou para Claudionor e ambos entraram no tudo, que se fechou e retornou com ambos à nave. De uma escotilha, Claudionor acenou lá de cima.

A nave distanciou-se um pouco e, em seguida, transformou-se numa grande centelha dourada que disparou pelo céu e desapareceu.

Alguns meses depois, o pombo-correio dos Capuchos do Perpétuo Amanhecer trouxe um recado de Dom Eleutério. Dizia que recebera uma mensagem de Claudionor informando que estava bem no novo lugar. Um mundo diferente. Mas nem tanto.

- Não era bem o que ele esperava, pois lá também há extratos sociais, inclusive com privilégios de classe.  Apesar de tudo está aprendendo e é bem tratado. Pretende, sim, voltar a Passo dos Ausentes, mais cedo do que se imagina. Anunciou, por fim, que no dia 6 de julho de 2014, às 21h, enviará um sinal até nós pelo cosmos.

No dia marcado, ou melhor, naquela noite, nos reunimos no jardim das camélias da Sociedade Histórica à espera do sinal. Na hora designada, um longo fio de luz amarela projetou-se desde o infinito em direção a Passo dos Ausentes.

O raio luminoso passou sobre a cidade clareando tudo e retornou ao desconhecido de onde viera, desfazendo-se em segundos.

Um suavíssimo aroma de jasmim ficou no ar por alguns minutos.

Então tivemos certeza de que Claudionor voltará um dia.  
 

ilustração: Maria Machiavelli