quarta-feira, 29 de julho de 2015

A fala de Arlequim

Jorge Adelar Finatto
 
Veneza, Itália. photo: jfinatto

Querer eu quero, e o querer é tudo. Cumpro os regulamentos do invisível.

De silêncio em silêncio, as difíceis passagens. Eu sinto no calado.

Os comedimentos. A pessoa sonhada tem certos jeitos. De não se deixar ver, nem tocar, nem sentir, nem sonhar. Os caprichos do ser amado.

As magnólias me doem no inverno de tão belas. Eu lírico. Os tormentos do amador. A musa é do tipo nem aí. Não sabe de mim.

Arlequim ao relento eu sou. Os rigores da lira me dilaceram. Vivo no austero das horas. Sinto no meu segredo.

Ela não me vê. Eu a vejo. Amador.
 
A musa é só o motivo. Eu sou o seu adamastor.

O que dorme no banco da praça. O que mora dentro do casaco e da manta. O do chapéu ridículo. O que fala algaravias no café. O que não suporta gritos. O que senta no cais a olhar as faluas e gaivotas.

Caminho à beira dos penhascos.
 
Ruínas são coisas que habitam no íntimo da pessoa. O que se fala e o outro não entende. Um diz aurora, a musa entende anoitecer. As palavras, tonterias.

Sentimento é o ora-veja da vida. Cultivo distância, alimento paciência. A musa e seu mistério e seu desdém.

O ser sonhado tem certos olhares. A musa vive num jardim secreto que eu mesmo inventei. A trança de linho desce pelo muro escarpado do castelo. Eu romântico.
 
A vida gira no esconso das horas cinzas.

Os trapos coloridos do meu coração ao vento.

Amador, amador. 
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Texto revisto, publicado em 30 de outubro, 2010.

domingo, 26 de julho de 2015

A porta misteriosa

Jorge Adelar Finatto
 
fotos: jfinatto

 
Um leitor observa que as fotografias aqui publicadas não mostram pessoas. Diz sentir muita solidão nas minhas imagens. O textos, bem. Dia sim, dia não, se aproveita alguma coisa, segundo ele.
 
Olhando bem, raro leitor, verá que existem pessoas, sim, nas fotos. Mas o que eu posso fazer se elas se escondem atrás de árvores, deitam-se no algodão branco das nuvens, viram pássaros, flores, estátuas, peixes? Ou simplesmente desaparecem na neblina?
 
Algumas valem-se de sutil artimanha e afundam-se em repentinos penhascos, embrenham-se em densas ramagens. Outras, talvez mais tímidas, tornam-se invisíveis sob côncavas umbelas, capelos e guarda-chuvas.
 
De qualquer forma, as pessoas estão lá quando fotografo. Só que, depois, por alguma misteriosa porta, saem de cena sem avisar, passando incômoda sensação de ausência.

Os textos, bem. Não sei dizer quanto valem, se é que valem. Mas me apraz saber que, dia sim, dia não, o perspicaz e exigente leitor passa por aqui para julgá-los e, quem sabe até, de vez em quando, os absolve.
 
O importante é não perder o sentimento da coisa.
 

sexta-feira, 24 de julho de 2015

A vida invisível

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 

O texto sobre fantasmas causou estranhamento.

Leitores questionam o fato de o autor tratar como natural a existência de assombrações em Passo dos Ausentes.

Mais que isso, não entendem como eles transitam livremente, e à luz do dia, pelas ruas, praças, telhados e calçadas da nossa pequena cidade.
 
Eu também muitas vezes me pergunto a que se deve a presença dos voláteis entre nós. Eles não se fazem de invisíveis por aqui. E isso não causa perplexidade entre os vivos. São tênues os limites entre o real e o imaginário nestas bandas dos Campos de Cima do Esquecimento. 
 
O que se vê: os fantasmas em nada interferem no dia a dia da aldeia. Vivem com discrição sua espessa solidão, sem fazer alvoroço nem assustar  ninguém. Habitam recantos de ausência e silêncio.

Segundo Heitor dos Crepúsculos, o mais conhecido volátil desse território perdido, nossa aldeia é o único lugar do mundo onde fantasmas podem viver em paz, sem causar estrépito nem escândalo. A população não lhes faz caso.

A fantasmagoria pertence à história da cidade.

Não disseram que o passado está vivo no presente? Que os mortos cada vez mais governam os vivos? Não sei se isto é assim. Acredito que a responsabilidade pelo presente é sempre, a um só tempo, individual e coletiva. E é hoje, não ontem.

Não existem roteiros pré-escritos. Tampouco abismos e perdas intransponíveis. Havemos de escrever novas e belas histórias.
 
O pouco que sei - se é que sei - é que, para além dos fantasmas, há vida silenciosa pulsando entre nós em todos os lugares do mundo.

Gente que não é notada. Gente invisível e solitária, que vive de cabeça baixa, longe de tudo e de todos. É preciso estar atento aos fantasmas-vivos que nos cercam, dar-lhes abrigo e afeto antes que morram de frio.

Nem tudo que parece invisível está, de fato, fora da realidade. 
  

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Ruas da minha aldeia

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto

 
Na tarde de inverno, caminho pelas ruas adormecidas de Passo dos Ausentes.

Uma garoa fina penetra até a alma. O dia amanheceu nevoento e gelado. As calçadas cobertas de folhas secas. Eu vou andando, misturo-me com elas, abro caminho na névoa.

A fumaça dos fogões a lenha sobe lentamente nas chaminés. Não me deixa esquecer quem sou: um homem que nasceu nas montanhas e que, ainda na infância, delas foi desterrado por acontecimento de morte na família.
 
Muito tempo depois, o regresso para a Serra. Mas a maior parte das pessoas e das coisas que eu amava não existia mais.  A velha casa tinha habitantes mortos. De alguma forma, tinha de aprender a conviver com os voláteis para reencontrar os seres amados.

Não sou arqueólogo do oblívio. A escavação do tempo extinto não me interessa, senão pela invenção e pela travessia do esquecimento. Não vou revirar escombros.
 
Sei lá o que resta pulsando em segredo no sótão, porão e implúvio.

A garoa insistente escorre pelos muros e paredes.  
 
Vou por aí sem desespero, como essas folhas sem peso soltas no ar.
 
O sol abraça os vivos à flor da terra. Passo diante de portas e janelas silenciosas. Sinto o aroma de pão feito em casa. O cheiro de lenha sai das chaminés sobre os telhados úmidos.

Sou passageiro eventual de um dia que se aquece ao sol tênue do inverno. Trago essa luz acalentando o coração, o chapéu e o capote.
 
Não quero a melancolia das horas findas. Ao menos não agora, ao menos não nesse momento luminoso, nessa tarde tão fria, o sol escondido atrás do alvo tecido das nuvens. 
 

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Da existência de fantasmas

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto

 
Nunca demonstre medo nem saia correndo de um fantasma. Tampouco se faça de corajoso. Jamais vá para o enfrentamento. Lutar com um fantasma é desafiar o vento e o relâmpago. Deixe-o quieto na sua infinita solidão.

Os fantasmas são seres desesperados e melancólicos por natureza. Habitam casas antigas que tenham sótão, escadaria e porão. Calma: não há notícia de fantasmas morando em apartamentos. Isso é realmente muito raro, para não dizer inverossímil.

Às vezes sentam na mesa da sala de jantar. Fique frio. Não demonstre espanto diante do chapéu e do capote surrados e molhados do orvalho, se masculinos, ou diante das echarpes, da maquiagem pesada e dos vestidos floridos, fora de época, se femininos. Alguns adormecem no sofá, de madrugada, diante da televisão, exaustos diante da péssima programação.
 
Apesar de não parecer, são seres sentimentais. Ficam ressentidos com a maledicência que pesa sobre eles. A quase totalidade não quer apavorar ninguém, não deseja causar medo ou incômodo. Quer apenas fazer e receber companhia. Não se iluda: se há um fantasma na sua vida, existe uma razão.
 
Se você vive perto de um fantasma, trate-o com delicadeza. Observe alguns preceitos. Por exemplo, não banque o valentão nem faça piadinhas. Nem fique arrepiado.

Se não quiser conversar, cale e passe reto. Pode até mesmo permanecer em silêncio no mesmo recinto, fazendo suas coisas. Isto, aliás, eles apreciam muito. Revela certa intimidade.

Alcance algo para entreter o volátil. Eles adoram remexer velhos álbuns de fotografia.
 
Com exceção da estirpe dos exibicionistas, que gostam de fazer barulhos pela casa em horas impróprias, empurrando móveis, arrastando correntes e batendo portas, os outros são discretos. Querem apenas estar ali.

Nada mais esperam da vida nem da morte. Só querem um pouco de companhia para amenizar a solidão e o peso das horas no mundo oco onde vagueiam. 
  

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Não esqueça de visitar um amigo morto

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto
 
Deixem-me caminhar
até que tropece e desapareça
na neve
                                   Matsuo Bashô*
 
A viagem ao mundo das formas e cores só me é possível através do óculos. Pra mim, a maior invenção de todos os tempos. Depois do guarda-chuva, claro, e do rádio elétrico.
 
Estou numa fase em que, sem óculos, sentar ao lado da janela é um desperdício e viajar de trem perde o encanto. Só divulgo vultos e uma neblina densa.

Aproveitei o dia pra caminhar em direção ao Contraforte dos Capuchinhos, a fim de visitar meu amigo Claudionor, o Anacoreta, em sua caverna/observatório de estrelas incrustada na montanha.

Durante o percurso por estradas a pique e oblíquas encostas, dormi uma noite na Volta da Espera, que fica na colina do moinho abandonado. Existe ali uma pequena cabana para descanso dos viajantes.

Logo que cheguei acendi o fogo campeiro para aquecer o álgido ambiente forrado por paredes de basalto azulado. Fiz um bom café passado na água de uma sonora fonte que existe nas cercanias da cabana.

O cheiro inefável do café tomou conta. Degustei a celestial bebida na caneca de alumínio, com pão aquecido e margarina da colônia. Está bem, havia um quarto de bolo de fubá que trouxe de casa.

Depois acendi o lampião portátil e terminei a noite lendo O gosto solitário do orvalho, de Matsuo Bashô (1644-1694). Universal poeta japonês de mínimos versos!

Um vento glacial soprou a noite inteira. O vento sul que traz nos foles invisíveis acordes de bandoneón. Sim, é o gelado vento que vem da Patagônia nessa época e se aninha nos Campos de Cima do Esquecimento.

Acordei muito cedo e me fui em viagem por entre galhos secos e folhas espalhadas. O dia nublado. A mochila nas costas e, ao ombro, o velho bornal com luneta, calepino e óculos reserva.

O belo mundo aparecia diante de mim outra vez. Segui em frente, contornando os penhascos do caminho pela estrada de terra, sob o sol frio, à beira de verdes abismos com córregos ao fundo. 

No caminho colhi margaridas cor-de-rosa e lírios azuis clarinhos de inverno para fazer um agrado ao solitário Claudionor. Pressentindo a minha chegada, ele foi me esperar na estrada. Ficou tão contente com a minha presença que me ocorreu visitar meu amigo mais seguido.

Não esqueça de visitar um amigo morto no inverno.

O inverno é uma bela estação para estar com amigos.

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O gosto solitário do orvalho, Matsuo Bashô. Editora Assírio e Alvim, Lisboa, fevereiro de 1986. Tradução de Jorge de Sousa Braga.
 

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Iluminação pela razão e pelo sentimento

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto. os Campos de Cima do Esquecimento
 
Escrever e ler até altas horas, procurar livros na estante em busca de beleza e consolo, remexer fotografias, papéis, revistas antigas, portulanos, velhas cartas (vivas como se fosse ontem), eis a obsessão do astrônomo do farelo. Que não é outra senão querer dominar o tempo. Um esforço atroz e inútil.
 
Nenhum livro, nenhuma teoria, nenhum pensador, conseguiram até hoje explicar o tempo e a nossa miserável transitoriedade. Quem consegue segurar uma onda no mar?
 
O jornal, a fotografia, a literatura, a música, a pintura, o blog, a ciência, a dança e a arte em geral são tentativas desesperadas de se apropriar do tempo.

Ora, o tempo que vai para a página do jornal, que se deposita no fundo da ampulheta, da câmara escura na máquina fotográfica, nas linhas do livro, é só um insignificante fragmento. Um grão de pó.

Perdoem-me por isso Cervantes, Goethe, Rilke, Van Gogh, Bach, Mozart, Jobim, Unamuno, Ortega y Gasset, Juan Ramón Jiménez, Heitor Saldanha, Giovannino Guareschi, Salvador Espriu e toda a turma. Não posso nem quero ser-lhes ingrato.
 
O tempo não é uma realidade absoluta. Pelo contrário, é bastante plural e relativa (não é mesmo, Einstein?). Existem tantos tempos quantos são os seres humanos sobre a Terra.

Os calendários são meros marcadores de alguma coisa que passa ou parece passar. Einstein e outros consideram a ideia de fluxo temporal (rumo ao futuro) uma ilusão somente (para eles o tempo não passa).*

Vejo que cada pessoa carrega um tempo pessoal, único, individual, intransferível.

O meu tempo, que começou no dia, na hora, na cama e na casa em que nasci na Rua São João, é diferente de todos os outros tempos. E acabará no dia em que eu me for.

Se não existissem as pessoas, o tempo não teria o menor sentido, não existiria simplesmente. O tempo existe para nós, que somos seus solitários passageiros. O tempo só existe embaixo da nossa pele. Fora de nós, o tempo jaz frio e sem respiração.

Nem sei, raro leitor, por que, afinal, estou falando do tempo, quando, na verdade, eu queria falar de orquídeas, joaninhas e passarinhos. Só eles podem me iluminar nessa tarde coberta de chuva, neblina e muito frio em Passo dos Ausentes.

Não acredito em conhecimento concebido apenas com a razão. Sabedoria, que é conhecimento em seu mais elevado patamar, só se adquire com razão e sentimento. O resto é bomba atômica, desconsideração do outro, assassinato, mentira, todo tipo de maldade, terrorismo, sofrimento e corrupção.

Os passarinhos vêm comer frutas na varanda do escritório. Alguns eu nunca tinha visto. Apareceu hoje um lilás, azul, branco, com peito de intenso amarelo e sobre a cabeça um penachinho vermelho. Tentei fotografá-lo, mas assim que pegou o pedaço de banana sumiu para as árvores. Deve voltar.
 
E tem as orquídeas que dão o ar de sua delicada graça, iluminando tudo ao redor nos troncos do quintal.

Sei que vivemos num país e num mundo com uma talvez irrecuperável vocação para o abismo e a autodestruição. Mas as coisas belas estão aí para provar que algo melhor é possível.
  

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Amar os caminhos, os ventos

Jorge Adelar Finatto

 
photo: jfinatto


Ninguém deixa a velha casca sem sofrimento. O difícil parto de si mesmo. As verdadeiras mudanças vêm de dentro pra fora.

Ler o roteiro da nossa história para transformá-la requer reconhecer as circunstâncias, um olhar amoroso e crítico sobre a paisagem da qual fazemos parte.

Eu sou eu e minha circunstância, o ensinamento mais conhecido de Ortega y Gasset, principalmente entre os que nunca leram o filósofo.

É necessário buscar o sentido do que nos rodeia, procurar entender as suas razões, cultivar a claridade, assim nos estimula o mestre.*
 
É preciso, digo eu, secar as lágrimas, tirar o pó da roupa, conjurar os medos, não desistir.

Amar os caminhos, os ventos, seguir em viagem.

Nada como a segunda-feira pra botar o pé no mundo.

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*Meditações do Quixote. José Ortega y Gasset. Comentários por Julián Marías. Livro Ibero Americano Ltda. Tradução de Gilberto de Mello Kujawski. São Paulo, 1967.
 
Ortega y Gasset e as Meditações do Quixote:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/07/ortega-y-gasset-e-as-meditacoes-do.html 

  

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Somos uma irrecusável perda sob o sol

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

Não suportamos mais despedidas. Quando alguém morre ou vai-se embora, fica um buraco insuportável na paisagem.

 
Inverno. Passo dos Ausentes é um lugar perdido na Serra do Rio Grande do Sul, cercado de neblina e vento. Um resto de sol, entre nuvens, ilumina as poucas ruas. 

As folhas secas caem no chão. Passam vultos na praça, fugindo do frio e da noite próxima.

O inverno impõe um ritual próprio. Nos recolhemos cedo em torno do fogão a lenha, os pinhões assando na chapa, a água esquentando na chaleira. Pouco saímos à rua. Nos tornamos invisíveis.

Somos poucos os habitantes da velha cidade. Estamos em extinção.

A população, ao invés de aumentar, está diminuindo ao longo dos anos. Os jovens vão embora cedo, só voltam de vez em quando, em datas especiais. A falta de gente faz com que nos agarremos uns aos outros. Preservar o que resta da cidade, cuidar bem dos que ficaram, é o que nos move.

Somos poucos. A memória e o afeto são nosso escudo contra o oblívio.

Em Passo dos Ausentes, qualquer pessoa é mais do que um simples habitante, é alguém da família. Imprescindível como um amigo ou um parente a quem se quer muito.

Nesse território tão pequeno e esquecido, não podemos abrir mão de ninguém. Nos procuramos e nos reconhecemos uns nos outros. Espelhos humanos é o que somos, espelhos que não podem quebrar. Todos muito diferentes entre si, todos indispensáveis.

Somos poucos e raros.
 
Talvez por isso, mais do que em outros lugares, temos muito presente o sentido da solidão e da brevidade das coisas. As brigas aqui não podem durar mais do que um dia, sob pena de morrermos congelados.

O maestro da banda municipal, o Giocondo, morreu faz cinco anos.

Desde então, não apareceu ninguém como ele pra tomar conta do nobre conjunto. Os músicos tocam as mesmas músicas, fazem  seu trabalho com esforço. Mas não é a mesma coisa. Falta o Giocondo com seu talento, criatividade, sua cabeça branca, no coreto da praça, regendo os componentes da banda, entusiasmando o público do modo como só ele sabia fazer.

Sem a presença do nosso maestro, a banda toca. Mas não encanta.

Os moradores de Passo dos Ausentes são livros vivos, depositários da memória comum. As histórias que cada um traz, as lembranças, os sentimentos, esse acervo é de todos, nada pode ser desperdiçado.

O frio, a garoa, a névoa, a chuva, o vento e a neve não dão trégua. Resta o olhar ao longe através do Contraforte dos Capuchinhos.

O inverno cultiva sentidos extraviados.

Coisas que para outros não têm importância, para nós são essenciais: o rumor do riacho acordando o dia, o som das asas de uma borboleta cruzando o jardim, o canto dos pássaros nos quintais, o ar saturado de oxigênio na mata em volta da cidade, os ramos floridos das buganvílias subindo nos portões, as cartas e retratos antigos no fundo das gavetas.

Em Passo dos Ausentes, as pessoas ruminam tudo o tempo todo. Vasculham o voo das nuvens e das andorinhas azuis, escutam o silêncio das constelações, andam absortas na beira dos penhascos que nos cercam.

Os detalhes das coisas importam. Não estamos à vontade no mundo. Vivemos num tempo mínimo.

Viver nos pesa muito, muito.

Somos uma irrecusável perda sob o sol. Viajantes audazes a navegar contra o mar do esquecimento. Não suportamos mais despedidas.

Quando alguém morre ou vai-se embora, fica um buraco insuportável na paisagem.
 
Os fantasmas costumam encontrar-se na estação de trem abandonada. Ali Juan Niebla, o bandoneonista cego, executa seus concertos todas as terças e quintas, às cinco da tarde, esperando os passageiros do trem que nunca chega.

No banco da gare vazia, com o grosso capote e os óculos escuros, seus dedos deslizam rapidamente, às vezes suavemente, sobre o teclado branco e preto, enquanto movimenta a cabeça para os lados, para trás, para frente. 

Sempre em silêncio, com suas grossas mantas e casacos de lã, os fantasmas sentam perto dos trilhos cobertos de hera,  ouvem o concerto de Niebla. 

O relógio redondo e preto, na entrada da estação, está parado desde a metade do século passado.

Diante da evasão das pessoas em busca de outros sonhos e horizontes, e do avanço do oblívio nas ruas e casas, precisamos urgentemente reconstruir a cidade do afeto, da memória  e do encontro. Será que conseguiremos?

Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.

No austero silêncio das nuvens, essa página de busca-vida.
 
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Histórias de Passo dos Ausentes. Registro na Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Escritório de Direitos Autorais, Rio de Janeiro, nº 663.190.

Texto  revisto, publicado antes  em 26 de julho de 2010.