quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O senhor do tempo e seu labirinto

Jorge Adelar Finatto
 
o crédito da foto será dado quando conhecido o seu autor


De antigo senhor das horas, o meu velho relógio tornou-se vítima do tempo e hoje sofre com longos intervalos de ausência.

É um relógio que me acompanha desde o século passado. É um objeto austero e simples. Não existem outros como ele à venda. É um dos últimos exemplares vivos de sua geração, se não for o último.
 
Registrou com precisão a passagem do tempo durante muitos e muitos anos. Esse mesmo tempo agora volta-se contra ele.
 
O calendário numérico funciona às vezes, e o escrito perdeu-se na bruma das horas. Esquece em que dia da semana estamos, não sabe bem se é segunda, sábado ou domingo, não distingue passado e presente e o futuro simplesmente não existe.

A passagem das horas confunde-lhe o mecanismo e, por vezes, ele pára sem saber o que fazer, como alguém que perdeu a memória, de repente, na esquina de uma cidade estrangeira.
 
Em suma, o relógio que sempre me guiou, na mata sombria dos dias, precisa agora ser guiado. Já não é mais quem era. Mas eu também não sou mais quem fui e nem por isso vou me atirar no lixo.
 
Não tenho coragem de separar-me dele. Jamais o faria e me recuso a falar sequer no assunto. Contudo, sem que ele soubesse, tive outros relógios, mais funcionais e modernos. Nenhum, porém, conseguiu substituí-lo no meu afeto. 
 
Toda vez que abria a gaveta, encontrava-o calado, sem nada reclamar, olhando as paredes internas do cubículo de madeira. Ao perceber minha presença, olhava-me nos olhos como quem se coloca à disposição para o trabalho e a luta. Um companheiro valente e digno.

Resgatei-o do labirinto em que foi viver.
 
Se ele é hoje apenas a lembrança do relógio que foi um dia, por outro lado não posso negar-lhe reconhecimento pelos serviços prestados. Além disso, atravessamos momentos difíceis juntos, vivemos muitas situações complicadas e dolorosas nessa vida, coisas que atormentam o pensamento e queimam o coração. E, às vezes, fomos felizes também.
  
Carregar o tempo nas entranhas, sem medo, como ele sempre fez, segundo a segundo, ano após ano, de forma incansável, num giro interminável e monótono, é ofício dos piores.
 
Mandei-o à oficina algumas vezes, mas não resolveu o problema. Decidi poupá-lo das internações inúteis no hospital dos relógios, pois observei que esse tipo de ambiente o magoa, pelo ar de tristeza com que retorna a casa.
 
Não sou mais escravo do tempo. Eu faço o que quero do meu tempo. (Por favor, raro leitor, não se iluda: essa disponibilidade é tão sedutora quanto terrível.) 
 
Trago o velho relógio no pulso outra vez. Faço-lhe ajustes manuais com esmero e delicadeza. Quando é necessário, em razão de compromissos e viagens longas, levo um outro, no bolso ou na mala, sem que ele perceba. E assim tocamos a nossa vida.
  
________
Texto revisto, publicado antes em 21 de abril, 2013.
 

3 comentários:

  1. Este texto traz o lúdico, o cômico e o nostálgico. Corro o risco de ser mal interpretada, então preciso dizer: É uma mistura deliciosa. E ainda o invejo, porque tem heranças/lembranças pra tocar. A mim, do passado, apenas algumas fotos compõem a história. Minha herança parece ter se escondido toda na memória. Uma das minhas buscas, hoje, é construir uma casinha para guardar este acervo. Mas é tão complicado lidar com pedreiros e carpinteiros. E ainda tenho que admitir que o resultado desses desacertos, apenas traz à luz o que já existia. Uma loucura. Sempre falo demais. Um abraço.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Marina. Que bom que gostaste da história do meu velho relógio. No fundo, as boas lembranças são talvez a nossa maior riqueza. E as não tão boas o tempo, com seu tempero, ameniza. Construir uma casa é difícil, mas vale sempre a pena. Aproveita este momento. Um abraço.

      Excluir
    2. Obrigada Jorge. Aproveitar o momento é um ótimo conselho. Felizmente me foi indicado um profissional que, mesmo com baixa escolaridade, é um engenheiro na prática. Tiro o chapéu pra ele, tenho aprendido muito. O complicado é que não tinha a menor ideia do que é uma construção, por mais singela que seja. Ainda pretendo escrever um blog sobre a minha saga. Abraço.

      Excluir