terça-feira, 17 de março de 2015

O balão e os girassóis

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto

Uma criatura mortal  não pode dar-se ao luxo de perder tempo com coisas que não valem a pena. A areia não pára de escorrer na ampulheta. Cada dia pode ser o último.

Não se deve repetir velhos erros. Foi por isso que, tempos atrás, desisti de dar a volta ao mundo num balão ao lado de Nefelindo Acquaviva, inventor e construtor de objetos voadores em Passo dos Ausentes. Sou um sobrevivente nesse tipo de voo e não quero arriscar mais.

Há duas semanas, contudo, repeti a besteira e quase morri.
 
Entrei outra vez num balão a pedido de Nefelindo. Ele foi tão insistente e eu tão fraco que, para não contrariar o louco amigo, não soube dizer não. E lá me fui ao ar, mais uma vez, num cesto instável, a bordo daquela estrovenga.
 
Estávamos a mil metros de altura e tudo parecia bem. Até que veio um forte vento do Contraforte dos Capuchinhos e começou a nos arrastar e sacudir. Eu pressenti ali o fim dos meus dias. Não os de Nefelindo, que já sofreu mais de quarenta quedas e está aí muito bem, obrigado.

Com a ventania, sentei-me no fundo do cesto e rezei. Me arrependi dos pecados, dos dissabores que causei, das vezes em que não fui melhor com meu semelhante, das vaidades e dos tantos enganos.

Enquanto me apressava em acertar as contas com o Eterno, o balão começou a rodopiar e afundar como uma rolha solta num tanque de lavar roupa que se esvazia. Naquele tormento perdi meus óculos de fundo de garrafa. De repente comecei a ver umas cabeças amarelas me olhando na boca do balão enquanto o aerostato se arrastava e batia em coisas que pareciam cordas.

Nefelindo gritava e ria (sim, ria às gargalhadas como um louco em surto), ao mesmo tempo em que tentava manusear os instrumentos de direção do equipamento. Momentos antes de o balão bater contra o solo, ele despencou de cabeça pela borda. Só vi as pernas desaparecendo no ar, seguindo o resto do corpo.

photo: jfinatto

O baque do balão no chão foi forte. A muito custo saí me arrastando do cesto emborcado. Quando enfim abri os olhos, o que vi foi um amarelo radiante inundando o ar.

Nefelindo apareceu como por milagre na minha frente e me ajudou a levantar. Não sei como, mas estava vivo, cheio de folhas amarelas pela roupa:

- Uma experiência inolvidável, meu amigo, um voo inesquecível. Tudo como havia previsto,  inclusive com a perigosa travessia do Vento Roncador de março. Um momento soberbo. Essa máquina é uma conquista da ciência aeronáutica, meu caro. Toma lá os teus óculos, te apruma enquanto faço algumas anotações.

Os meus óculos estavam com os aros retorcidos, mas as lentes permaneciam intactas. Então Nefelindo retirou do bolso do casacão de aviador (que lhe desce até os tornozelos) o Moleskine vermelho. Livrou-se do capacete de couro da Primeira Guerra Mundial (de um seu avô). A abundante cabeleira negra escorreu até os ombros. Sentou-se encostado no que sobrou do balão e começou a escrever e resmungar coisas.

- Um grande acontecimento, uma aventura impressionante -, conjecturava alisando o grosso bigode virado pra cima nas pontas. Mostrava uma energia difícil de entender num homem de 70 anos.

A queda vertiginosa sobre uma plantação de girassóis, no Vale do olhar, com a mão de Deus nos amparando, foi o que restou daquele passeio. E o maluco se vangloriando. Sobrevivemos porque Deus quis.

Só mais tarde, um pouco mais calmo, percebi a beleza daquele lugar. Estávamos cercados de girassóis dentro de um quadro de Van Gogh.

- Um cara na sua idade, tendo levado já tantas sacudidas na vida, não devia permitir-se essas loucuras ao lado de um sujeito perigoso como Nefelindo Acquaviva - disse com preocupação meu Anjo da Guarda.

Um Jeep foi nos buscar. Quando cheguei em casa, às cinco da manhã, com uma dor latejante espalhada pelo corpo, atirei-me no sofá do escritório, enrolei-me na manta e pedi ao meu Anjo da Guarda, entre envergonhado e exausto,  não me acordasse antes da Páscoa...

Um girassol não faz amarelo sozinho.