segunda-feira, 13 de julho de 2015

Não esqueça de visitar um amigo morto

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto
 
Deixem-me caminhar
até que tropece e desapareça
na neve
                                   Matsuo Bashô*
 
A viagem ao mundo das formas e cores só me é possível através do óculos. Pra mim, a maior invenção de todos os tempos. Depois do guarda-chuva, claro, e do rádio elétrico.
 
Estou numa fase em que, sem óculos, sentar ao lado da janela é um desperdício e viajar de trem perde o encanto. Só divulgo vultos e uma neblina densa.

Aproveitei o dia pra caminhar em direção ao Contraforte dos Capuchinhos, a fim de visitar meu amigo Claudionor, o Anacoreta, em sua caverna/observatório de estrelas incrustada na montanha.

Durante o percurso por estradas a pique e oblíquas encostas, dormi uma noite na Volta da Espera, que fica na colina do moinho abandonado. Existe ali uma pequena cabana para descanso dos viajantes.

Logo que cheguei acendi o fogo campeiro para aquecer o álgido ambiente forrado por paredes de basalto azulado. Fiz um bom café passado na água de uma sonora fonte que existe nas cercanias da cabana.

O cheiro inefável do café tomou conta. Degustei a celestial bebida na caneca de alumínio, com pão aquecido e margarina da colônia. Está bem, havia um quarto de bolo de fubá que trouxe de casa.

Depois acendi o lampião portátil e terminei a noite lendo O gosto solitário do orvalho, de Matsuo Bashô (1644-1694). Universal poeta japonês de mínimos versos!

Um vento glacial soprou a noite inteira. O vento sul que traz nos foles invisíveis acordes de bandoneón. Sim, é o gelado vento que vem da Patagônia nessa época e se aninha nos Campos de Cima do Esquecimento.

Acordei muito cedo e me fui em viagem por entre galhos secos e folhas espalhadas. O dia nublado. A mochila nas costas e, ao ombro, o velho bornal com luneta, calepino e óculos reserva.

O belo mundo aparecia diante de mim outra vez. Segui em frente, contornando os penhascos do caminho pela estrada de terra, sob o sol frio, à beira de verdes abismos com córregos ao fundo. 

No caminho colhi margaridas cor-de-rosa e lírios azuis clarinhos de inverno para fazer um agrado ao solitário Claudionor. Pressentindo a minha chegada, ele foi me esperar na estrada. Ficou tão contente com a minha presença que me ocorreu visitar meu amigo mais seguido.

Não esqueça de visitar um amigo morto no inverno.

O inverno é uma bela estação para estar com amigos.

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O gosto solitário do orvalho, Matsuo Bashô. Editora Assírio e Alvim, Lisboa, fevereiro de 1986. Tradução de Jorge de Sousa Braga.