domingo, 26 de junho de 2016

Só, pero no mucho

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 
Eu caminhava pela rua na noite de verão. Era numa praia do sul*, soprava uma leve brisa do mar. Muita gente nas ruas, casais de mãos dadas, casas com amplas varandas, pessoas conversando em cadeiras preguiçosas. Eu ia só, dando uma volta no quarteirão. De repente senti um solidão danada em meio a toda aquela beleza. Me deu um nó na garganta. Não sabia o motivo, afinal tudo estava bem.
 
Tive a viva impressão de estar só no universo, mesmo estando cercado de pessoas, num lugar de descanso e convivência. Havia uma paz sólida diante do mar. E eu numa solidão cósmica. Mas não era uma solidão triste. A vontade de chorar que eu sentia não era por estar sozinho. Mas por participar, de alguma maneira, da vida. Simplesmente isso.

Eu pertencia àquele grão de pólen chamado Terra, perdido na bruma de estrelas, com seus seres, suas histórias, seus destinos. Aí pensei nos poetas, músicos e em todos esses que fazem de sua solidão um hino de amor à vida para que outros dela possam participar com mais encanto e verdade. Sim, eu estava vivo.
 
A sensação de pertencer à raça humana me enchia de felicidade. As pessoas com suas diferenças, seus dramas, seus sonhos, seus defeitos, suas culpas, seus mortos, suas incríveis qualidades, suas mãos dadas, sua incontornável solidão.

Então segui caminhando pela rua e depois outra e mais outra e outra. Até que desapareci na paisagem. Feliz, sufocando de felicidade, cheio de gratidão por ser um a mais no cenário, andando numa noite de verão.
 
Infinitamente só e acompanhado, irmão das estrelas, dos que conversam nas varandas, dos que andam de mãos dadas, dos que caminham sozinhos pelas ruas, irmão de todos os seres que respiram no mundo. Parte de tudo isso, membro da grande família das coisas criadas. 
__________ 
 

quinta-feira, 23 de junho de 2016

A felicidade do outro

Jorge Finatto

photo: jfinatto

É impossível ser feliz sozinho.
                                        Antonio Carlos Jobim, na canção Wave 
 
Num café li a seguinte frase, numa placa pendurada na parede (transcrevo de memória): "Torço muito pela felicidade dos outros, porque gente feliz não enche o saco". Não havia menção do nome do autor. De qualquer maneira, vale a pena pensar nisso.

Estou inteiramente de acordo. Sempre quero ver gente feliz por perto. É a melhor coisa. O Maestro Tom Jobim disse tudo no seu verso: É impossível ser feliz sozinho.
 
Quanto mais gente feliz está ao nosso redor, melhor é a vida. A felicidade é um negócio que se espalha, como corrente elétrica pelas lâmpadas da casa escura. A pior coisa é viver perto de pessoas infelizes, sem esperança, negativas e sem alegria. Uma nuvem negra as acompanha. É um fardo difícil de suportar.

Mas quem não tem seu dia infeliz ou seus momentos de tristeza e preocupação? O importante é não deixar que esses sentimentos sejam predominantes. Sentir um pouco de inveja da felicidade alheia é até normal, quando não é demais. Mas não leva a lugar nenhum. A chance de realizar coisas, e ser mais, vivendo perto de pessoas batalhadoras e otimistas é muito maior.

Felicidade pra todos já. Esse é o grande lema. Sem  esquecer as lições de dois filósofos do cotidiano brasileiros. O cantor e compositor Odair José ensinou: "Felicidade não existe; o que existe na vida são momentos felizes". E a atriz Tônia Carrero declarou, quando perguntada se era feliz: "Sou feliz algumas vezes durante o dia". Isto que é sabedoria, não é mesmo?

Fazer algo pela felicidade do outro, no dia a dia, é condição essencial para viver melhor e para um planeta mais feliz. Isso poder ser feito de várias maneiras, a começar por executar com esmero e dedicação o nosso trabalho. É o que faz rodarem para frente as rodas dessa velha carroça a que chamamos mundo.
 

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Caderno de inéditos de Van Gogh

Jorge Finatto

A casa amarela (Arles), Van Gogh, Museu Van Gogh, Amsterdam

A grande notícia da última semana foi a descoberta de um caderno com desenhos inéditos do pintor holandês Vincent Van Gogh (1853 - 1890). O anúncio foi feito há poucos dias pela editora francesa Éditions du Seuil.
 
Encontrado recentemente, a editora não precisou o número de desenhos existente no carnet. Assegurou, no entanto, que sua autenticidade foi verificada por especialistas.

O  conteúdo será publicado em novembro, em vários países, com o título de Vincent Van Gogh, Le brouillard d’Arles, carnet retrouvé (Vincent Van Gogh, A névoa de Arles, caderno reencontrado).
 
Bernard Comment, responsável pela publicação, asseverou que ninguém, além do proprietário, da editora e dele próprio, tinha conhecimento da existência desse material. "É espantoso, fulgurante", declarou à AFP.
 
Morto na miséria aos 37 anos, em Auvers-sur-Oise (França), em 1890, Van Gogh é um dos pintores mais importantes de todos os tempos.  Portrait du Dr. Gachet (1890) atingiu 82,5 milhões de dólares num leilão da Christie’s de Nova Iorque em 1990; em maio do ano passado, L’Allée des Alyscamps foi adquirida por 66 milhões de dólares num outro leilão.

Van Gogh criou uma obra original e maravilhosa, oposto de sua existência repleta de crises psíquicas, afetivas e materiais. A solidão foi o pano de fundo da vida deste artista genial e incompreendido, que legou à humanidade um patrimônio espiritual sem igual na história da pintura.

Sabe-se lá as maravilhas que haverá neste caderno, não só em desenhos como em anotações. Van Gogh escrevia com raro talento e profundidade, conforme se vê de suas numerosas cartas ao irmão Theo.

Para os que amam sua pintura e admiram o ser humano que foi, como eu, a descoberta do caderno tem valor inestimável e é motivo de grande emoção.

_______
Post com base em informação publicada pelo jornal Público de Portugal:

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Provisoriamente bruma

Jorge Finatto

photo: jfinatto


A hora mais deserta é a madrugada, quando Alberto Bruma das Horas só ouve a respiração das coisas e todas as pálpebras se fecharam, menos as dele.
 
Sentado no telhado, sentado no corredor, sentado no quarto (do lado da janela), sentado embaixo da claraboia, sentado no banco da estação de trem, sentado no escritório (tão perto das estantes que ouve o rumor das palavras).
 
Está provisoriamente longe dos livros (ele que sempre amou o cheiro do papel, a textura das capas e das folhas). 
 
Sofre a nostalgia da claridade perdida. Uma vaga luminosidade o habita. Não pode fotografar o mundo como antes. As folhas, as árvores, os caminhos de terra, as flores, as montanhas, os vales, os córregos: bruma.

O muro de taipa dorme na tarde fria e silenciosa de junho. Ocres e azuis renascentistas. Outono. Tudo tão distante.
 
Em meio à névoa, ele respira jasmins, camélias, orquídeas e magnólias do jardim da casa interiorana.

Ouve a conversa dos passarinhos, cantando, voando num lugar que mais parece uma pintura de Raffaello Sanzio. As nuvens brancas como algodão num profundo azul.

As pinhas arredondam nos pinheiros. De certa forma, está vendo outra vez.

O belo mundo das coisas entra pelos olhos da alma.
 

sábado, 11 de junho de 2016

Café dos Ausentes

Jorge Finatto

photo: jfinatto

Os habitantes dos Campos de Cima do Esquecimento sabem que só se vive uma vez e por isso padecem severas solitudes nesse mundo. A ideia da transitoriedade da vida se faz sentir especialmente no inverno. Tempo de dispersa solidão.
 
Passo dos Ausentes, nossa velha aldeia, tem 600 e poucas almas que penam na grelha da existência. Montanhas e brumas fizeram de nós o que somos: esse jeito calado, desconfiado, sempre ao desamparo.
 
É fácil reconhecer um ausentino na multidão. Basta olhar o abandono estampado na cara: é a marca indelével. Mas estamos aí, viventes desse mundo de Deus, sobreviventes de um tempo que se esfuma impiedosamente.

O frio polar dos últimos dias torna rara a presença humana fora das casas. A temperatura média, durante o dia, tem sido de -6 ºC. À noite desce para álgidos -12 ºC, -15 ºC. O Vale do Olhar, submerso no nevoeiro de algodão, é bonito de se admirar no Belvederezinho da Ausência, a dois mil metros de altitude. No local três troncos de pinheiro fazem as vezes de banco para os visitantes. Todo dia 15 de cada mês os Capuchinhos do Perpétuo Amanhecer ali se reúnem para ver o sol nascer.

Em silêncio e de pé, com os capelos sobre a cabeça e seus hábitos brancos enlaçados com corda na cintura, observam o vale. Depois que o sol se ergue, retiram-se em fila. Atravessam a cidade tão silenciosamente que ninguém ouve seus passos. Somem na estrada de chão batido em direção ao convento no Contraforte dos Capuchinhos.
 
Antes de começar a falar sozinho, no ermo invernal, é melhor sair de casa e ir ao encontro dos amigos, no Café dos Ausentes, na antiga estação de trem. Nas terças-feiras Juan Niebla faz ali um concerto com seu bandoneón argentino. No cardápio, músicas de Piazzolla, Francis Poulenc, Villa-Lobos e Joaquín Rodrigo, entre outros.

Nos sábados, o programa é "Conversa na Estação", bate-papo de Niebla com Don Sigofredo de Alcantis e quem mais quiser. O tema do próximo encontro será, conforme cartaz fixado na porta do café:

"O dia em que o filósofo espanhol Miguel de Unamuno desafiou a ditadura incipiente do general Franco diante de cerca de 300 soldados armados, no salão de atos da Universidade de Salamanca, da qual era reitor, durante a cerimônia de abertura do ano acadêmico, em 12 de outubro de 1936, ao proferir o célebre discurso Vencereis, mas não convencereis. De como escapou da morte certa graças à intervenção de Carmen Franco, mulher do ditador, que o retirou do local e o levou para casa dele, onde permaneceu em prisão domiciliar e perdeu suas funções".*

Nessas alturas austrais, a palavra e a música nos aproximam e nos tornam conviventes.

Solidão é quando a madeira da casa começa a estalar e ranger por causa do frio e da umidade, como um velho barco rasgando as ondas do mar.

___________

*Don Miguel de Unamuno:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/02/visita-don-miguel-de-unamuno.html
 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

A hora do beija-flor

Jorge Finatto
 
beija-flor com névoa. photo: j.finatto
 
Observando com atenção, há um beija-flor na ponta do ramo da magnólia. Ele está pousado no galho pensador, os olhos semicerrados, pensando na sua vidinha. Um momento de pausa no seu dia. Ninguém é de ferro.

Há de ter lá os seus compromissos o beija-flor, uma casa pra voltar, filhos pra criar, contas a pagar, preocupações de quem vive neste mundo difícil.

Mas nesse momento ele precisa ficar sozinho e em silêncio. Precisa disso pra saber quem ele é. Porque, às vezes, na dura faina da sobrevivência, a gente esquece quem é.

A nossa face perde-se na multidão. Um estranho passa a viver através de nós.
 
Na maior parte da vida cumprimos deveres, tarefas, horários, saímos e chegamos apressados, dormimos sonos interrompidos por relógios e pesadelos, sonhamos um sonho alheio, corremos todo o tempo até a exaustão, e agradecemos por não perder o emprego nem levar um tiro.

Austeras solidões nos habitam. Rígidos papéis nos aguardam todos os dias, implacáveis, inadiáveis.

O mundo espera que ponhamos a máscara de granito ao nascer e não a retiremos nunca mais. Haja Deus!
 
No caso do beija-flor, querem que ele seja sempre e eternamente a mesma ave descrita pelos estudiosos nos tratados: apodiforme, penas pequenas, úmero robusto e cúbito curto, que se alimenta do néctar das flores e de insetos minúsculos.

Igual a milhões de outros beija-flores que vivem no planeta, também conhecidos por nomes estranhos como binga, chupa-flor, chupa-mel, cuitelo, guainumbi, pica-flor. E por aí.

O beija-flor personagem deste texto tem vida interior, seus próprios sonhos e pensamentos, não quer ser igual a nenhum outro existente no mundo.

No fundo, é um poeta o nosso beija-flor. Passa o dia procurando quintais, praças e jardins, não só para alimentar-se, mas para fugir dos predadores e da loucura das pessoas, e para ter um momentozinho de contemplação.

Sim, a nossa pequena ave interioriza-se para poder melhor observar a natureza e os seres, senti-los, talvez escrever alguma coisa.
 
Agora, calado e enovelado em si mesmo, no repousante galho da magnólia, o que o beija-flor quer é ficar só, distante, tentando reunir os fragmentos, reconstruir-se com o que sobrou (se é que ainda existem asas e cores suficientes do pássaro que um dia ele foi), longe dos olhares intrujões, das mesquinharias cotidianas e do fotógrafo abelhudo.
________________

Heráclito e o espelho:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/02/heraclito-e-o-espelho.html
Texto revisto, publicado antes em 27 de fevereiro, 2013.