sábado, 13 de maio de 2017

O vício dos livros

Jorge Finatto
 
Italo Svevo. fonte: Wikipédia


O HOMEM É UM ANIMAL de óculos. O pensamento (aqui livremente transcrito) é do escritor italiano Italo Svevo (1861- 1928) e está na última página do livro A consciência de Zeno*, sua obra-prima. 
 
Svevo escreveu-o após um período de 20 anos sem nada produzir, frustrado diante da falta de reconhecimento de seus primeiros trabalhos. Estimulado por seu professor de inglês em Trieste, ninguém menos do que o escritor irlandês James Joyce, que se impressionou com seu talento literário, retomou a escritura traduzindo Freud para o italiano  e construindo este romance que foi publicado em 1923.
 
Em suas páginas, Svevo questiona o jogo de poder  na sociedade, o progresso e seus artefatos que muitas vezes põem tudo a perder.
 
O autor faz uma abordagem dos impulsos inconscientes que movem os personagens, em conformidade com a psicanálise de Freud em desenvolvimento na época (pela qual Svevo tinha grande interesse). Com humor, sensibilidade e sutileza, trabalha com a figura do anti-herói, um homem que passa a vida tentando parar de fumar e não consegue, enroscado em dilemas familiares, afetivos e psicológicos. Zeno produz um relato escrito de suas memórias, buscando autoconhecimento, tratamento e cura, conforme recomendação de seu psicanalista. Mostra-se cético em relação à análise para si, mas não chega a abjurá-la. O resultado desse trabalho é surpreendente.
 
Eu comprei A consciência de Zeno (em rica tradução de Ivo Barroso) em janeiro de 1984 (tinha o costume de datar os livros), numa banca de jornais. Era no tempo em que a Editora Abril publicava uma coleção de clássicos nacionais e estrangeiros. As edições eram excelentes: capa dura, papel de qualidade, preços acessíveis. Os autores (e tradutores) eram naturalmente muito bons. 
 
De sorte que até um cara pobre como eu, que vivia na dura lida da sobrevivência, podia com algum sacrifício comprar um volume por mês e assim iniciar uma pequena e intrépida biblioteca.

Como animal de óculos que tinha respeito e afeição pelos livros, minha autoestima se revigorava a cada obra adquirida. Os livros significavam consolo e beleza numa realidade violenta e sufocante como a brasileira. Nada mudou.
 
Tenho grande dificuldade de me desfazer de livros, mesmo daqueles pelos quais já não tenho tanto interesse. Talvez porque cada um deles está inserido na minha história e teve, a seu tempo, um sentido.

No dia em que eu morrer provavelmente eles vão acabar num alfarrabista qualquer, porque as casas já não têm espaço para livros. Os tempos são de nanotecnologia e é possível acumular várias bibliotecas num singelo leitor eletrônico.
 
A filha Clara diz ter medo que meu escritório desabe qualquer hora, comigo dentro dele, por causa do peso dos livros e quinquilharias. Acho que isso não vai acontecer pois coloquei novas estantes no andar debaixo, transferindo para elas parte do peso. A família não gosta desta estratégia de acumulador compulsivo (com razão). Estou me esforçando pra mudar isso, mas não é fácil.
 
Do mesmo modo que Zeno Cosini não conseguiu abandonar o cigarro, eu não consigo abandonar meus livros. Meu desapego das coisas materiais não chegou até eles. Em todo caso, tranqüilizei a todos: se o escritório vier abaixo, não se perderá grande coisa. Exceto pelos livros, claro.
 
_________
 
*A consciência de Zeno. Italo Svevo. Tradução de Ivo Barroso. Abril Cultural, São Paulo, 1984.
 

4 comentários:

  1. Amigo! Quanto tempo não passava por aqui. Feliz quando vi luz na janela. Ao ler sua última postagem, vasculhei entre meus guardados. E achei um verso pra te deixar de presente.


    Quero uma casa cheia de poesia.
    Estante com muitos braços,
    Para abraçar a arte e a emoção.
    E livros, de papel, que as provoquem!

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    Respostas
    1. Que belos versos! São bem-vindos à minha casa de papel! A janela estará sempre com a luz acesa pra receber amigos como tu, Marina. Um abraço.

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  2. por instantes/olhar amigos/na estante/ e atender ao seu silencioso chamado//em seleta companhia /a solidão/é ficção//abrem-se/as janelas de dentro// Ricardo Mainieri

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  3. DOS LIVROS

    por instantes
    olhar amigos
    na estante

    e atender
    ao seu silencioso
    chamado

    a solidão é ficção
    quando em seleta
    companhia

    abre-se um livro

    iluminam-se as janelas
    de dentro

    Ricardo Mainieri

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