quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Obelix e a Bachiana nº 5

Jorge Adelar Finatto


A arte é também um modo de conhecer o mundo sem sair de casa.

Através da convivência com os bens culturais visitamos lugares estranhos, distantes, a começar pelo mais desconhecido de todos: a alma humana.

Há cidades que têm fundações mais sólidas na cultura do que nos alicerces de suas vestustas construções.

Paris é uma cidade espiritual. Habita a nossa memória afetiva mesmo que nunca tenhamos ido lá. Muito tempo antes de conhecê-la, eu já transitava por suas ruas, frequentava seus cafés, salões, navegava nos barcos do Sena, através das páginas de seus escritores e poetas. Conheci o íntimo da cidade do espírito e das luzes nas obras de gente como Balzac, Victor Hugo, Rimbaud, Rosseau, Anatole France, Jacques Prévert, Alexandre Dumas, Verlaine, Baudelaire, Montesquieu, Foucault, Sartre, Voltaire. Também seus pintores abriram portas na minha sensibilidade: Van Gogh, Renoir, Cézanne, Seurat, Monet, Picasso, Modigliani, Chagall e tantos outros.

Aquele foi um dia de viagem. Tinha chegado há poucas horas da Itália. Estava cansado e feliz por retornar ao Quartier Latin. Saí do hotel ao lado da Praça da Sorbonne, na frente da velha universidade. Desci a pé o Boulevard Saint-Michel, quase vazio àquela hora da noite, em direção à catedral de Notre-Dame. Na esquina das ruas Galant e Petit Pont, encontrei o pequeno e acolhedor restaurante Aux Trois Maillet. Enquanto olhava o cardápio, duas mulheres acercaram-se do piano. Uma pianista e uma cantora lírica, esta com traços orientais. O homem que aparentava ser dono ou responsável pelo estabelecimento também era de origem oriental. Todos falavam a língua de Édith Piaf com desenvoltura.

As artistas iniciaram, então, um belo recital. O repertório era encantador. Para quem, como eu, vinha exausto, ouvi-las naquela noite de sábado era um alento.

Alfonsina y el mar

Paulo Fabris
Médico e escritor, Porto Alegre




Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui foram, segundo o maestro Júlio Medaglia, os representantes maiores daquilo que se convencionou chamar latinidade. Os dois cantavam com clareza, simplicidade, exatidão, transformando todas as canções em hinos sinfônicos, folclóricos, coletivos. Quem não lembra de Gracias a la vida, Volver a los 17 e Alfonsina y el mar?

Alfonsina, por sua vez, foi uma personagem real e única: nasceu na Suíça, filha de pais ítalo-argentinos, mas com apenas 10 anos de idade vivenciou o fracasso econômico, a doença e a morte do pai e daí em diante todas as dificuldades que levaram a que abreviasse a sua infância; teve então que trabalhar como costureira e operária, até que conseguiu ser aprovada em concurso para professora rural.

Mais tarde fugiu da província com a companhia teatral de José Tallavi, engravidou e teve seu único filho em Buenos Aires. Depois viajou pela Europa, conheceu artistas de vanguarda, escreveu, apaixonou-se e sofreu as dores de muitos amores. Estudiosos da literatura a comparam a Gabriela Mistral, poeta chilena e primeira latino-americana a receber o Nobel de Literatura (em 1945).

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

As amargas, não


Alvaro Moreyra





Agora é tempo de voltar. Para onde? Naturalmente para o céu, onde os anjos, irmãos remotos, que não desceram à terra, estão com a mesma infância e as mesmas asas. Eu não levo as asas com que vim. Desmanchei-as pela estrada. Levo as penas que sobraram. No percurso às avessas, encontro “um certo reino à esquina do planeta”. Dele recebi as primeiras imaginações. Descanso junto das sombras que me formaram assim, uma espécie de exilado. Se eu quisesse confessar do que fui construído, teria que dizer: de alguns poetas de Portugal e de alguns jesuítas de todo o mundo. O resto foi ornato. Bastante me pintaram. Bastante me rebocaram. Fiquei intacto sobre os velhos alicerces, no mesmo pé direito, com o estilo primitivo, de janelas abertas para a luz e para o ar.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Navegador de barco de papel

Jorge Adelar Finatto





O pequeno barco feito com folha do caderno escolar levanta âncora no bolso do homem sério e triste.

Um homem circunspecto, com tantos casos para decidir.

Quem o vê saindo assim para o trabalho, de manhã cedo, terno, gravata e pasta, não imagina o que leva no coração.

Olha o mundo através das grossas lentes dos óculos, carrega perplexidades e sonhos que ninguém percebe.

O barco de papel desliza entre as vagas do dia pesado e cinza.

O navegador sonha a fuga do real, ao avistar o Guaíba da janela do gabinete.

A cidade vive dentro do rio uma existência invertida. No fundo das águas habitam seres harmoniosos, os gestos são calmos, existe esperança.

O navegador planeja o exílio do mar de conflitos e sofrimentos em que mergulha todos os dias.

No fim da tarde, caminha até a beira do rio, retira o barco do bolso, solta-o na água. Larga a pasta, tira a gravata, o casaco, os sapatos, empurra a embarcação e salta para dentro.

Sobre Maria João Pires


José Saramago


Maria João Pires não teve muita sorte com o país em que nasceu. Sessenta anos de carreira (e que extraordinária carreira a sua) justificariam uma homenagem de âmbito nacional capaz de expressar a nossa gratidão por pisarmos o mesmo chão e respirarmos o mesmo ar. Não será assim, pelos vistos, ainda que não lhe venham a faltar na terra portuguesa outras manifestações de admiração e respeito. Foi em casa de uns amigos que a ouvi pela primeira vez, quando ela não passava de uma adolescente que, com o seu frágil corpo, mal parecia haver saído da infância, e que me fez temer se os braços e as mãos lhe chegariam para enfrentar-se ao gigantesco teclado. O piano familiar, vertical, talvez não estivesse em perfeito estado de afinação, mas as primeiras notas saltaram límpidas, cristalinas, dando-me a sensação, não de serem a mera consequência do choque dos martelos com as cordas, mas de haverem brotado directamente dos dedos da própria pianista. Foi o meu baptismo na arte de Maria João Pires. Depois, ao longo dos anos, sempre que ela, já viajante emérita, aparecia por Lisboa a dar os seus recitais, eu lá estava, rogando às potestades celestes que a protegessem do mau-olhado, de um simples sopro de ar que a perturbasse. Talvez por efeito das minhas petições e do crédito que tenho no céu, todos os concertos e recitais de Maria João Pires a que assisti chegaram felizmente ao seu termo. Desta vez, por razões de distância e também de saúde, não poderei estar presente, dar palmas e beijar as suas mãos tão cheias de música, de humanidade, de beleza. Por tudo o que me fez ouvir e sentir, Maria João, obrigado.


Eunice Muñoz lê o texto "Sobre Maria João Pires":

http://caderno.josesaramago.org/wp-content/uploads/2009/11/maria_joao_pires2.mp3

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O Caderno de Saramago. Texto de 09/12/2009

http://caderno.josesaramago.org/.

Fundação José Saramago

http://www.josesaramago.org/

A grafia é a de Portugal.

ermo. Devez, por razões de distância e também de saúde, não poderei estar presente, dar palmas e beijar as suas mãos tão cheias de música, de humanidade, de beleza. Por tudo o que me fez ouvir e sentir, Maria Jo

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Celebro a vida que virá



Jorge Adelar Finatto





Un petit espoir très féroce:
c’est moi!
Robert Lalonde


Ainda não nasci
sequer faço parte da paisagem
escuto uns gritos do outro lado: não estou

a sombra é apenas o começo
do previsível caminho
que vai dar na aurora

ainda não nasci
no entanto, é para breve

celebro a vida que virá
rompendo a escuridão
explodindo em alegria
como a primavera depois do inverno

sei onde isso terminará:
flor no extremo do ramo
beleza enchendo o vazio

faço do silêncio
um grande bosque
onde borboletas passeiam
pássaros inventam a claridade
com seu canto

imagina uma faísca que, súbito, paira no ar
uma palavra procurando um oco de boca
uma pequena luz que cresce: sou eu


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Foto: Jorge Finatto
Poema do livro O Fazedor de Auroras,Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Dois poemas de Heitor Saldanha


 capa de A Hora Evarista



Hoje enquanto tiver dinheiro
                                            beberei
Depois
           entregarei ao garçom
                                  meu relógio de pulso
                                    meus carpins de nylon
meus óculos de tartaruga (que nome bonito)
                         minha caneta tinteiro
e continuarei bebendo
                                  bebendo
                                  sem literatura
                                          sem poema
                                                  sem nada.
Só.
Como se o mundo começasse agora.
Estou nesses conscientes estados de alma
em que não posso me salvar
                                    e nem salvá-la.


& &  &


ANDAMENTO

De que estarei me despedindo hoje?
Há em mim uma clara ressonância de
                                                     despedida.
Mas não devo saber,
                              nem é preciso saber.
Creio que vim
                     pra dizer um dia
                                        na cara do mundo:
hoje estou me despedindo.
E as criaturas boas do meu sangue
                        abririam a boca
que lhes cortasse o ímpeto inexpresso.
Claro que estou me despedindo.
                Hoje sou mais criança do que nunca.

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Heitor Saldanha (Cruz Alta 1910 - Porto Alegre 1986).
Poemas extraídos do livro A Hora Evarista, Instituto Estadual do Livro, Editora Movimento, Porto Alegre, 1974.


Depoimento do escritor José Louzeiro


Eis-nos frente a frente a um senhor poeta.
Um dos mais importantes que temos: Heitor Saldanha. Extremamente meticuloso e profundamente retraído, vemos Heitor Saldanha circunscrito na área daqueles poucos que desconfiam do que fazem e, por maiores que sejam os elogios ouvidos, preferem o aprofundamento no trabalho.
                        
                                    José Louzeiro, Jornal do Escritor, Rio de Janeiro, 1969.