domingo, 17 de janeiro de 2010

O retorno dos peixinhos

Jorge Adelar Finatto




Os peixinhos estão de volta. Estavam em férias coletivas.

Regressam ao blog com saudades. Aproveitaram o período de descanso para um breve giro. Viram coisas, andaram pelas ruas das cidades com a chuva, o sol e o vento, aprenderam, procuraram ouvir o máximo possível (eles sempre ouvem muito mais do que falam).

Os peixinhos voltam animados.

Tudo de bom tem o Brasil, dizem eles. Aqui não existe um povo só: todos os povos nos habitam.

Somos o resumo, a mátria (como diz o senhor Veloso) do mundo.

Mas precisamos melhorar muito o lado humano.

É preciso tratar as pessoas como gente no país dos pássaros e das palmeiras.

Entre os dez principais problemas que enfrentamos, os dez primeiros estão relacionados com a corrupção. Depois vem o resto. Isso tem a ver com criação, formação, valores, limites.

Eu aprendi desde muito menino que a regra número um da vida é: se eu me respeito, tenho que respeitar os outros. Eu sou o outro do outro.

Isso não depende de pós-doutorado, e é mais importante do que qualquer título.

Viver, apesar de tudo, é sempre bom, dizem os peixinhos.
E navegar é uma maravilha.
Vamos com o rio.

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Foto: Fragata Sarmiento, Puerto Madero, Buenos Aires. Jorge Finatto
jfinatto@terra.com.br



sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Mario Benedetti

Jorge Adelar Finatto

Mario Benedetti

Não tive a ventura de conhecer pessoalmente Mario Benedetti. Mas pude, como muitas pessoas pelo mundo, travar conhecimento com sua obra. Lê-lo desde a adolescência, em livros comprados com grande sacrifício em sebos de Porto Alegre, era tê-lo como companheiro, caminhando na paisagem gris da cidade.

A morte de Mario Benedetti, aos 88 anos, no domingo, 17 de maio de 2009, em Montevideo, significou uma perda para os que amam a literatura feita com emoção, razão e compromisso. Sentem muito os que veem a poesia como revelação e transcendência. Sobretudo aqueles que não separam a beleza estética de uma ética do respeito ao ser humano.

Os atos de viver e de criar, em poetas como Mario Benedetti, são inseparáveis.

A arte que não busca na vida a sua razão e as suas origens está perdida.

O desaparecimento do poeta deixou o mundo um pouco mais sombrio.

A luz que escorria de seus textos alumiou generosamente a vida de muita gente, nos lugares mais distantes do seu Uruguai (nasceu em Paso de los Toros, em 14 de setembro de 1920).

A força da palavra de Mario Benedetti haverá de sobreviver à extinção física do autor, e continuará a distribuir encanto e consolo.

Os que o conheceram no refúgio da amizade, e mesmo aqueles que apenas o encontraram ocasionalmente, falam de sua bondade no trato pessoal, de sua capacidade de ouvir o outro (aptidão infelizmente quase desaparecida), do bom humor, do calor humano, da revolta contra as ditaduras, da gentileza.

Gentileza, essa outra palavra no rumo do exílio.

Caminhei com Mario Benedetti em diferentes estações da vida, na beira do Guaíba e em bairros como Menino Deus, Centro, Cidade Baixa, Moinhos de Vento, Ipanema. Nos invernos, frequentamos as mesas de cafés noturnos. Partilhamos longas conversas, e a inefável meia taça com pão e manteiga. Amizade espiritual, é certo, mas nem por isso menos verdadeira. Essa que reúne pessoas que nunca se viram em torno de um texto, pedaço de vida pulsante.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Obelix e a Bachiana nº 5

Jorge Adelar Finatto


A arte é também um modo de conhecer o mundo sem sair de casa.

Através da convivência com os bens culturais visitamos lugares estranhos, distantes, a começar pelo mais desconhecido de todos: a alma humana.

Há cidades que têm fundações mais sólidas na cultura do que nos alicerces de suas vestustas construções.

Paris é uma cidade espiritual. Habita a nossa memória afetiva mesmo que nunca tenhamos ido lá. Muito tempo antes de conhecê-la, eu já transitava por suas ruas, frequentava seus cafés, salões, navegava nos barcos do Sena, através das páginas de seus escritores e poetas. Conheci o íntimo da cidade do espírito e das luzes nas obras de gente como Balzac, Victor Hugo, Rimbaud, Rosseau, Anatole France, Jacques Prévert, Alexandre Dumas, Verlaine, Baudelaire, Montesquieu, Foucault, Sartre, Voltaire. Também seus pintores abriram portas na minha sensibilidade: Van Gogh, Renoir, Cézanne, Seurat, Monet, Picasso, Modigliani, Chagall e tantos outros.

Aquele foi um dia de viagem. Tinha chegado há poucas horas da Itália. Estava cansado e feliz por retornar ao Quartier Latin. Saí do hotel ao lado da Praça da Sorbonne, na frente da velha universidade. Desci a pé o Boulevard Saint-Michel, quase vazio àquela hora da noite, em direção à catedral de Notre-Dame. Na esquina das ruas Galant e Petit Pont, encontrei o pequeno e acolhedor restaurante Aux Trois Maillet. Enquanto olhava o cardápio, duas mulheres acercaram-se do piano. Uma pianista e uma cantora lírica, esta com traços orientais. O homem que aparentava ser dono ou responsável pelo estabelecimento também era de origem oriental. Todos falavam a língua de Édith Piaf com desenvoltura.

As artistas iniciaram, então, um belo recital. O repertório era encantador. Para quem, como eu, vinha exausto, ouvi-las naquela noite de sábado era um alento.

Alfonsina y el mar

Paulo Fabris
Médico e escritor, Porto Alegre




Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui foram, segundo o maestro Júlio Medaglia, os representantes maiores daquilo que se convencionou chamar latinidade. Os dois cantavam com clareza, simplicidade, exatidão, transformando todas as canções em hinos sinfônicos, folclóricos, coletivos. Quem não lembra de Gracias a la vida, Volver a los 17 e Alfonsina y el mar?

Alfonsina, por sua vez, foi uma personagem real e única: nasceu na Suíça, filha de pais ítalo-argentinos, mas com apenas 10 anos de idade vivenciou o fracasso econômico, a doença e a morte do pai e daí em diante todas as dificuldades que levaram a que abreviasse a sua infância; teve então que trabalhar como costureira e operária, até que conseguiu ser aprovada em concurso para professora rural.

Mais tarde fugiu da província com a companhia teatral de José Tallavi, engravidou e teve seu único filho em Buenos Aires. Depois viajou pela Europa, conheceu artistas de vanguarda, escreveu, apaixonou-se e sofreu as dores de muitos amores. Estudiosos da literatura a comparam a Gabriela Mistral, poeta chilena e primeira latino-americana a receber o Nobel de Literatura (em 1945).

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

As amargas, não


Alvaro Moreyra





Agora é tempo de voltar. Para onde? Naturalmente para o céu, onde os anjos, irmãos remotos, que não desceram à terra, estão com a mesma infância e as mesmas asas. Eu não levo as asas com que vim. Desmanchei-as pela estrada. Levo as penas que sobraram. No percurso às avessas, encontro “um certo reino à esquina do planeta”. Dele recebi as primeiras imaginações. Descanso junto das sombras que me formaram assim, uma espécie de exilado. Se eu quisesse confessar do que fui construído, teria que dizer: de alguns poetas de Portugal e de alguns jesuítas de todo o mundo. O resto foi ornato. Bastante me pintaram. Bastante me rebocaram. Fiquei intacto sobre os velhos alicerces, no mesmo pé direito, com o estilo primitivo, de janelas abertas para a luz e para o ar.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Navegador de barco de papel

Jorge Adelar Finatto





O pequeno barco feito com folha do caderno escolar levanta âncora no bolso do homem sério e triste.

Um homem circunspecto, com tantos casos para decidir.

Quem o vê saindo assim para o trabalho, de manhã cedo, terno, gravata e pasta, não imagina o que leva no coração.

Olha o mundo através das grossas lentes dos óculos, carrega perplexidades e sonhos que ninguém percebe.

O barco de papel desliza entre as vagas do dia pesado e cinza.

O navegador sonha a fuga do real, ao avistar o Guaíba da janela do gabinete.

A cidade vive dentro do rio uma existência invertida. No fundo das águas habitam seres harmoniosos, os gestos são calmos, existe esperança.

O navegador planeja o exílio do mar de conflitos e sofrimentos em que mergulha todos os dias.

No fim da tarde, caminha até a beira do rio, retira o barco do bolso, solta-o na água. Larga a pasta, tira a gravata, o casaco, os sapatos, empurra a embarcação e salta para dentro.

Sobre Maria João Pires


José Saramago


Maria João Pires não teve muita sorte com o país em que nasceu. Sessenta anos de carreira (e que extraordinária carreira a sua) justificariam uma homenagem de âmbito nacional capaz de expressar a nossa gratidão por pisarmos o mesmo chão e respirarmos o mesmo ar. Não será assim, pelos vistos, ainda que não lhe venham a faltar na terra portuguesa outras manifestações de admiração e respeito. Foi em casa de uns amigos que a ouvi pela primeira vez, quando ela não passava de uma adolescente que, com o seu frágil corpo, mal parecia haver saído da infância, e que me fez temer se os braços e as mãos lhe chegariam para enfrentar-se ao gigantesco teclado. O piano familiar, vertical, talvez não estivesse em perfeito estado de afinação, mas as primeiras notas saltaram límpidas, cristalinas, dando-me a sensação, não de serem a mera consequência do choque dos martelos com as cordas, mas de haverem brotado directamente dos dedos da própria pianista. Foi o meu baptismo na arte de Maria João Pires. Depois, ao longo dos anos, sempre que ela, já viajante emérita, aparecia por Lisboa a dar os seus recitais, eu lá estava, rogando às potestades celestes que a protegessem do mau-olhado, de um simples sopro de ar que a perturbasse. Talvez por efeito das minhas petições e do crédito que tenho no céu, todos os concertos e recitais de Maria João Pires a que assisti chegaram felizmente ao seu termo. Desta vez, por razões de distância e também de saúde, não poderei estar presente, dar palmas e beijar as suas mãos tão cheias de música, de humanidade, de beleza. Por tudo o que me fez ouvir e sentir, Maria João, obrigado.


Eunice Muñoz lê o texto "Sobre Maria João Pires":

http://caderno.josesaramago.org/wp-content/uploads/2009/11/maria_joao_pires2.mp3

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O Caderno de Saramago. Texto de 09/12/2009

http://caderno.josesaramago.org/.

Fundação José Saramago

http://www.josesaramago.org/

A grafia é a de Portugal.

ermo. Devez, por razões de distância e também de saúde, não poderei estar presente, dar palmas e beijar as suas mãos tão cheias de música, de humanidade, de beleza. Por tudo o que me fez ouvir e sentir, Maria Jo