domingo, 14 de fevereiro de 2010

Nem leis, nem justiça

José Saramago

Em Portugal, na aldeia medieval de Monsaraz, há um fresco alegórico dos finais do século XV que representa o Bom Juiz e o Mau Juiz, o primeiro com uma expressão grave e digna no rosto e segurando na mão a recta vara da justiça, o segundo com duas caras e a vara da justiça quebrada. Por não se sabe que razões, estas pinturas estiveram escondidas por um tabique de tijolos durante séculos e só em 1958 puderam ver a luz do dia e ser apreciadas pelos amantes da arte e da justiça. Da justiça, digo bem, porque a lição cívica que essas antigas figuras nos transmitem é clara e ilustrativa. Há juízes bons e justos a quem se agradece que existam, há outros que, proclamando-se a si mesmos justos, de bons pouco têm, e, finalmente, não são só injustos como, por outras palavras, à luz dos mais simples critérios éticos, não são boa gente. Nunca houve uma idade de ouro para a justiça.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Os lírios famintos

Jorge Adelar Finatto


Existe um ser cada vez mais raro na face do universo.

Astrônomos passam as noites em claro, mirando os telescópios para o desconhecido, na incansável busca.

No momento em que traço essas linhas, inúmeras expedições científicas partem pelo cosmo à procura dele.

É quase tão belo como a estrela da manhã. É mais luminoso que a aurora boreal. É mais precioso que o mais raro diamante.

Por causa dele, blogueiros do mundo inteiro invadem as noites oferecendo seus serviços. Impressionantes editores perdem o sono a sua menor lembrança.

O ser em questão - esse misterioso - é o senhor da lista dos mais vendidos, o sonho dos famélicos e maltrapilhos fazedores de livros. Por ele, Cervantes e Thomas Mann foram às vias de fato, Dom Quixote e Hans Castorp romperam relações.

Macunaíma, Anjo Malaquias e Urutu Branco não trocam mais e-mails. É o início do fim dos tempos, ou quase isso.

Os cafés literários perderam o sentido sem a poderosa presença do desaparecido.

As livrarias estão repletas de musas e personagens desempregados. Seria cômico, não fosse o fim de uma era.

Onde andará aquele que é a razão do meu trabalho?, perguntam-se miríades de escritores e poetas, na fria solidão.

A Academia Sueca devia criar o Prêmio Nobel de Leitura, em homenagem a ele, o inefável.

As noites de autógrafos, hoje, só são bem-sucedidas quando é ele quem assina os livros, enquanto os autores esperam a vez na infinita fila.

Não vereis dele mais que o fugidio vulto esgueirando-se no labirinto dos blogs e soturnas bibliotecas.

No entardecer de ontem, cerca de 150 bardos - entre maus, razoáveis e bons - cometeram suicídio no cais de Porto Alegre. Sob o olhar aterrorizado das mães e gritos desesperados das namoradas, os suicidas foram ao fundo do rio com grossos volumes amarrados ao pescoço.

Mais de mil caravelas estão partindo nessa hora de Lisboa em busca de um rastro do indizível em alto mar.

O impensável está acontecendo.

Escritores enlouquecidos batem-se em sangrentos duelos nas praças e ruas da cidade.

As últimas notícias dão conta de que lírios famintos estão atacando e devorando escritores. Invadem seus locais de trabalho e, com requintes de crueldade, cometem o bárbaro crime. Aproveitam-se da solidão literária das vítimas, que começa no ato de criar e se estende até o texto sem leitor, e as destroçam.

Só restam folhas brancas, embebidas em sangue, espalhadas no chão.

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Foto: Jorge Finatto

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Roberto Saviano, a morte em vida e a sonhada primavera

Jorge Adelar Finatto




O escritor italiano Roberto Saviano afirma que não sabe se está meio morto ou meio vivo.

O fato é que não é mais dono de sua vida. Passa as 24h do dia sob rigorosa proteção policial. Qualquer movimento que faz depende de um cuidadoso detalhamento de segurança.

Para tomar um cappuccino ou comprar uma simples escova de dentes, são necessários complicados arranjos sobre escolha de lugar, formas de chegar e sair, horários, etc. Para não ser morto, muda-se constantemente de endereço.

O drama começou desde que Roberto Saviano publicou o livro Gomorra¹, no ano de 2006, pela editora Mondadori. Nele conta as histórias e a maneira de atuar da Camorra, a máfia da região da Campânia, na Itália, onde está localizada Nápoles, cidade em que nasceu em 1979. Segundo dados do chefe dos carabinieri de Nápoles, general Gaetano Maruccia, responsável pela segurança do escritor, a Camorra tem cerca de 80 clãs e mais de 3.000 integrantes armados, além de uma grande rede de colaboradores.

Os mafiosos não aceitaram a indelicadeza do jovem autor em revelar acontecimentos, esquemas de funcionamento e nomes de integrantes da organização criminosa. Através de ameaças, os Casaleses - clã da Camorra do povoado onde ele cresceu, Casal di Principe - comunicaram-lhe que foi sentenciado à morte.

A máfia não perdoou a divulgação de suas atividades. Não tolerou o fato de a obra tornar-se um êxito editorial poucas vezes visto na Itália e nos países para os quais foi traduzida. Mais de dois milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. Um filme foi feito com base no livro. Dirigido por Matteo Garrone, ganhou o Grande Prêmio de Cannes em 2008.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

A junta do motor

José Saramago

Desde há mais de sessenta anos que eu deveria saber conduzir um automóvel. Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas máquinas de trabalho e de passeio, desmontava e montava motores, limpava carburadores, afinava válvulas, investigava diferenciais e caixas de mudanças, instalava calços de travões, remendava câmaras de ar furadas, enfim, sob a precária protecção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que podia das nódoas de óleo, efectuei com razoável eficiência quase todas as operações por que é obrigado a passar um automóvel ou um camião a partir do momento em que entra numa oficina para recuperar a saúde, tanto a mecânica como a eléctrica. Só faltava que me sentasse um dia atrás do volante a fim de receber do instrutor as lições práticas que deveriam culminar no exame e na sonhada aprovação que me permitiria ingressar na ordem social cada vez mais numerosa dos automobilistas encartados. Contudo, esse dia maravilhoso nunca chegou.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Enquanto a manhã não vem

Jorge Adelar Finatto

Escrevo no tarde da noite.

Confesso que pouco sei sobre este tempo e seus soturnos habitantes. Sou parte do drama.

Sei o que sinto. E sentindo me dou conta que está ficando cada vez mais difícil sentir a realidade.

Faz poucos dias, em Porto Alegre, um menino com cerca de 10 anos foi morto dentro de casa com 34 facadas, num bairro pobre da cidade. Os assassinos seriam dois assaltantes, o caso está sendo investigado.

O menino estava sozinho enquanto a mãe trabalhava como doméstica.

Não sei o que fazer com isso. Estou mergulhado na escuridão que nos cerca.

Que sociedade é esta que gera monstros assim?

Que tipo de ser humano é capaz de cometer um crime dessa natureza?

Que justiça será capaz de reparar crimes como esse?

Quem devolverá a essa mãe o sentido de viver?

Que sentimento, ou falta de, faz com que o caso seja esquecido dias depois e ninguém mais fale no menino, na sua mãe, na casa destruída?

Quem se ocupará dessa dor depois que os jornais não tocarem mais no assunto?

O pouco que sei me diz que não foram apenas o menino e sua mãe que perderam algo irreparável.

A humanidade toda perdeu.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Ilhas e taperas

Jorge Adelar Finatto

photo: Eduardo Tavares. Veleiro em Porto Alegre


Um dia desses saí a navegar pelo Guaíba no meu barco de papel.
Às vezes se chama Sonhador, outras, Solidão.
No itinerário, desembarquei em algumas ilhas.
Confesso me assustei com as taperas que nelas encontrei.
Tapera, do tupi, aldeia extinta.
Habitação em ruína, lugar abandonado.
Filipo, o papagaio que me acompanha, costuma dizer tapera é em nós que ela existe.
Nos nossos gestos vazios, nas nossas omissões, na impotência de mudar a vida.
De tão abandonadas, as ilhas se transformam em território de fantasmas.
Cada um de nós é uma ilha nessas águas tão fundas do viver.
Quando olho em volta da minha ilha, encontro outras ilhas. Muitas ilhas.
Apesar da quantidade e da proximidade, não formamos  um arquipélago.
Existimos isoladamente.
Os habitantes das ilhas querem falar e ser ouvidos.
Raros, contudo, dispõem-se a escutar.
Esse o flagelo que assola o mapa das ilhas.
Habitamos taperas modernas, com computador, blogue, máquina de lavar, tv a cabo, aparelhos de som, ar-condicionado, mil coisas.
Em nosso íntimo, continuamos homens e mulheres das cavernas, com poucos amigos. Solitários, primitivos.
Lutamos para sobreviver, saímos à caça todas as manhãs, disputamos ferozmente espaços no  mercado de trabalho, no mercado das paixões.
Desconfiamos quando nos mostram os dentes ao sorrir.
Dores e medos são curtidos no recesso como se não existisse mais ninguém no bairro.
As nossas moradias, tugúrios onde nos escondemos. Planejamos a fuga para um lugar que não sabemos se existe, mas deve ser melhor.

Olho o movimento dos barcos na entrada do cais.
Ouço o ruído seco do vento na vela branca.
Uma gaivota atravessa o rio.
O entardecer aprofunda o exílio.
Não conseguimos formar um arquipélago.
O Guaíba embala a solidão das ilhas e taperas.

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Foto: Eduardo Tavares. Veleiro em Porto Alegre.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Henrique do Valle

Jorge Adelar Finatto




A última vez que o vi foi na Praça Dom Feliciano.

Era uma dessas manhãs mágicas de Porto Alegre. Céu azul claro, vento leve, a luz âmbar escorrendo entre as árvores. Devia ser maio.

Aquele lugar, no início do século XX, tinha o nome de Praça da Misericórdia. Estava na frente, do outro lado da rua, do grande edifício da Santa Casa, como ainda hoje. Dali se podia avistar o Guaíba e os barcos passando ao fundo. Era o local de encontro do Grupo dos Sete, formado por jovens poetas simbolistas, entre os quais figuravam Alvaro Moreyra e Felipe D´Oliveira.

Naquele dia, meu amigo poeta estava acompanhado de uma linda mulher. Parecia feliz, em paz com a vida. Saí do encontro contente ao perceber nele uma celebração nova diante da existência, uma maior paciência em relação à difícil realidade cultural, humana e política daquele final dos anos setenta.

Pouco antes de morrer, em 1981, aos 22 anos de idade*, Henrique do Valle me confiou alguns poemas. “Espero que aproveites estes textos”, escreveu no envelope. Eu não estava em casa. Lembro que chovia muito naquela tarde. Na época, eu organizava uma revista literária com poetas de vários cantos do Brasil. Quando encontrei o recado, lamentei o desencontro. Queria muito conversar com ele.

Eis um dos poemas daquele envelope encantado:


Te chamei porque queria que guardasses
meus peixes e flores
agora que vou viajar.

Conhecerei novas terras, outras pessoas
e isso me enche de tanta alegria
que nem sei como expressar.

Prometo que te trarei presentes
e que te contarei tim tim por tim tim
tudo que passei.

Mas até eu voltar, dá uma força,
cuida bem dos meus peixes e flores.