quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

As intermitências da primavera

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás, azul e rosa o coração, tocou doces músicas no som do carro e do apartamento. Tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.

Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.

Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer a ele que não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem viver juntos.

Teve relacionamentos, depois, que não duraram.

Sente-se um morto-vivo sem a mulher que o acolheu na solidão de náufrago. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar as coisas, procurar sentidos. Uma amiga disse-lhe que ele era muito certinho. A vida não era.

Um dia ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais. 

A família dele, no passado, foi unida, mas agora vive dividida, os irmãos quase não convivem. A mãe, que em vida teceu com dedos de cristal os frágeis laços do afeto familiar, partiu antes do tempo. Ninguém a substituiu na difícil arte de evitar e, sobretudo, colar cacos. Os laços se partiram.

Ele voltou a viver na ilha depois da morte da companheira. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os amigos transformaram-se em meros conhecidos, foram se casando, criando filhos, separando, mudando de bairro, de cidade, de país. O seu mundo reduziu-se ao apartamento do bairro Bela Vista, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados.

O lugar onde vive - a remota ilha -  só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar de casa àquele deserto. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.

As hortênsias acendem as manhãs, iluminam a casa na escuridão.

A janela é seu ponto de referência no planeta.

Dali pode ver a praça e as pessoas, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.

De qualquer parte do universo um observador atento pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está ele na janela.

No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado na vida.

O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.

A solidão o faz acariciar um felino invisível, na frente da televisão, até adormecer.

Se fez tratamento sobre esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho no mundo, sem saber o que fazer com as mãos na presença dos outros.

O sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas memórias, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é diversão e esquecimento, pra ele pode ser vertigem.

A primavera chegou com um cesto florido de lembranças.

As inconstâncias do clima, dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.

A praça passa vazia. A vida vista da janela perde o colorido.

Se ao menos ele tivesse um gato de verdade. Mas não sabe o que faria diante do olhar do bicho ao ver o dono tão desamparado pela casa e pela vida.

Os gatos percebem essas coisas, ela disse.

- Um dia desses vou sair lá fora, sentir o sol no corpo, ver as pessoas de perto. Ainda saio da janela-, ele pensa.

Com o gato no colo, ele adormece no sofá e, às vezes, até sonha.

Uma outra mulher. Nem precisava ser o grande amor. Um terno sentimento, um querer bem. Uma pessoa pra dividir a conversa, a palavra, dormir abraçado, ver um filme, ler um livro em silêncio, lavar a louça, caminhar na praça.

Uma mulher que queira ficar a seu lado, no fim da tarde, tomando chimarrão.

As intermitências da primavera fazem o coração girar louco na ventania.

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Foto: Jorge Finatto

jfinatto@terra.com.br

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

As urgentes evasões

Jorge Adelar Finatto


A necessidade de evasão da realidade é tão antiga quanto a presença do ser humano na Terra. Ultimamente, diante de tantas tragédias, medos e angústias, quem não pensa em tirar umas férias da realidade e viajar para uma ilha de sol e paz longe da loucura?

Essas ilhas estão cada vez mais distantes.

O problema do cotidiano é que tem realidade demais, e muito poucas janelas para a harmonia.

Pretender mudar a vida é uma forma de evasão de um mundo que já não serve, em busca de outro, que não conhecemos muito bem, mas deve ser melhor e mais humano.

Muda-se a realidade mudando a própria vida.

A existência só é suportável na medida em que podemos transformá-la.

Essa página a ser escrita é o que pode nos salvar em meio à miséria humana em que vivemos.

Por que a necessidade de mudar? Porque há injustiça demais, atrocidades e violência demais, catástrofes demais, corrupção demais, sofrimento demais. As regras postas na velha maneira de fazer política e viver em sociedade não permitem a chegada de dias melhores.

Um sistema iníquo esmaga os sonhos de pessoas que querem viver honestamente.

A cena brasileira cansa, exaspera, tritura a paciência. Condutas de homens públicos envergonham e fazem corar as estátuas nas praças.

O resto do mundo não é muito diferente.

As coisas boas acontecem tão lentamente que é como se não acontecessem.

O noticiário é patético.

A esperança? É um dever para todos, principalmente para os mais jovens que não podem naufragar no desespero.

Precisamos urgentemente abrir a janela para o sol entrar.

Tem gente do bem lutando para construir dias mais claros, com menos crianças nas ruas, o coração mais aberto ao outro.

Resta acreditar na luta cotidiana, que começa com a gentileza no trato com os semelhantes, na recusa terminante a qualquer forma de violência como meio de resolução de conflitos, no respeito a todos os seres, no repúdio à indiferença diante do quadro que se apresenta.

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Foto: Jorge Finatto

jfinatto@terra.com.br

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Nem leis, nem justiça

José Saramago

Em Portugal, na aldeia medieval de Monsaraz, há um fresco alegórico dos finais do século XV que representa o Bom Juiz e o Mau Juiz, o primeiro com uma expressão grave e digna no rosto e segurando na mão a recta vara da justiça, o segundo com duas caras e a vara da justiça quebrada. Por não se sabe que razões, estas pinturas estiveram escondidas por um tabique de tijolos durante séculos e só em 1958 puderam ver a luz do dia e ser apreciadas pelos amantes da arte e da justiça. Da justiça, digo bem, porque a lição cívica que essas antigas figuras nos transmitem é clara e ilustrativa. Há juízes bons e justos a quem se agradece que existam, há outros que, proclamando-se a si mesmos justos, de bons pouco têm, e, finalmente, não são só injustos como, por outras palavras, à luz dos mais simples critérios éticos, não são boa gente. Nunca houve uma idade de ouro para a justiça.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Os lírios famintos

Jorge Adelar Finatto


Existe um ser cada vez mais raro na face do universo.

Astrônomos passam as noites em claro, mirando os telescópios para o desconhecido, na incansável busca.

No momento em que traço essas linhas, inúmeras expedições científicas partem pelo cosmo à procura dele.

É quase tão belo como a estrela da manhã. É mais luminoso que a aurora boreal. É mais precioso que o mais raro diamante.

Por causa dele, blogueiros do mundo inteiro invadem as noites oferecendo seus serviços. Impressionantes editores perdem o sono a sua menor lembrança.

O ser em questão - esse misterioso - é o senhor da lista dos mais vendidos, o sonho dos famélicos e maltrapilhos fazedores de livros. Por ele, Cervantes e Thomas Mann foram às vias de fato, Dom Quixote e Hans Castorp romperam relações.

Macunaíma, Anjo Malaquias e Urutu Branco não trocam mais e-mails. É o início do fim dos tempos, ou quase isso.

Os cafés literários perderam o sentido sem a poderosa presença do desaparecido.

As livrarias estão repletas de musas e personagens desempregados. Seria cômico, não fosse o fim de uma era.

Onde andará aquele que é a razão do meu trabalho?, perguntam-se miríades de escritores e poetas, na fria solidão.

A Academia Sueca devia criar o Prêmio Nobel de Leitura, em homenagem a ele, o inefável.

As noites de autógrafos, hoje, só são bem-sucedidas quando é ele quem assina os livros, enquanto os autores esperam a vez na infinita fila.

Não vereis dele mais que o fugidio vulto esgueirando-se no labirinto dos blogs e soturnas bibliotecas.

No entardecer de ontem, cerca de 150 bardos - entre maus, razoáveis e bons - cometeram suicídio no cais de Porto Alegre. Sob o olhar aterrorizado das mães e gritos desesperados das namoradas, os suicidas foram ao fundo do rio com grossos volumes amarrados ao pescoço.

Mais de mil caravelas estão partindo nessa hora de Lisboa em busca de um rastro do indizível em alto mar.

O impensável está acontecendo.

Escritores enlouquecidos batem-se em sangrentos duelos nas praças e ruas da cidade.

As últimas notícias dão conta de que lírios famintos estão atacando e devorando escritores. Invadem seus locais de trabalho e, com requintes de crueldade, cometem o bárbaro crime. Aproveitam-se da solidão literária das vítimas, que começa no ato de criar e se estende até o texto sem leitor, e as destroçam.

Só restam folhas brancas, embebidas em sangue, espalhadas no chão.

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Foto: Jorge Finatto

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Roberto Saviano, a morte em vida e a sonhada primavera

Jorge Adelar Finatto




O escritor italiano Roberto Saviano afirma que não sabe se está meio morto ou meio vivo.

O fato é que não é mais dono de sua vida. Passa as 24h do dia sob rigorosa proteção policial. Qualquer movimento que faz depende de um cuidadoso detalhamento de segurança.

Para tomar um cappuccino ou comprar uma simples escova de dentes, são necessários complicados arranjos sobre escolha de lugar, formas de chegar e sair, horários, etc. Para não ser morto, muda-se constantemente de endereço.

O drama começou desde que Roberto Saviano publicou o livro Gomorra¹, no ano de 2006, pela editora Mondadori. Nele conta as histórias e a maneira de atuar da Camorra, a máfia da região da Campânia, na Itália, onde está localizada Nápoles, cidade em que nasceu em 1979. Segundo dados do chefe dos carabinieri de Nápoles, general Gaetano Maruccia, responsável pela segurança do escritor, a Camorra tem cerca de 80 clãs e mais de 3.000 integrantes armados, além de uma grande rede de colaboradores.

Os mafiosos não aceitaram a indelicadeza do jovem autor em revelar acontecimentos, esquemas de funcionamento e nomes de integrantes da organização criminosa. Através de ameaças, os Casaleses - clã da Camorra do povoado onde ele cresceu, Casal di Principe - comunicaram-lhe que foi sentenciado à morte.

A máfia não perdoou a divulgação de suas atividades. Não tolerou o fato de a obra tornar-se um êxito editorial poucas vezes visto na Itália e nos países para os quais foi traduzida. Mais de dois milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. Um filme foi feito com base no livro. Dirigido por Matteo Garrone, ganhou o Grande Prêmio de Cannes em 2008.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

A junta do motor

José Saramago

Desde há mais de sessenta anos que eu deveria saber conduzir um automóvel. Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas máquinas de trabalho e de passeio, desmontava e montava motores, limpava carburadores, afinava válvulas, investigava diferenciais e caixas de mudanças, instalava calços de travões, remendava câmaras de ar furadas, enfim, sob a precária protecção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que podia das nódoas de óleo, efectuei com razoável eficiência quase todas as operações por que é obrigado a passar um automóvel ou um camião a partir do momento em que entra numa oficina para recuperar a saúde, tanto a mecânica como a eléctrica. Só faltava que me sentasse um dia atrás do volante a fim de receber do instrutor as lições práticas que deveriam culminar no exame e na sonhada aprovação que me permitiria ingressar na ordem social cada vez mais numerosa dos automobilistas encartados. Contudo, esse dia maravilhoso nunca chegou.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Enquanto a manhã não vem

Jorge Adelar Finatto

Escrevo no tarde da noite.

Confesso que pouco sei sobre este tempo e seus soturnos habitantes. Sou parte do drama.

Sei o que sinto. E sentindo me dou conta que está ficando cada vez mais difícil sentir a realidade.

Faz poucos dias, em Porto Alegre, um menino com cerca de 10 anos foi morto dentro de casa com 34 facadas, num bairro pobre da cidade. Os assassinos seriam dois assaltantes, o caso está sendo investigado.

O menino estava sozinho enquanto a mãe trabalhava como doméstica.

Não sei o que fazer com isso. Estou mergulhado na escuridão que nos cerca.

Que sociedade é esta que gera monstros assim?

Que tipo de ser humano é capaz de cometer um crime dessa natureza?

Que justiça será capaz de reparar crimes como esse?

Quem devolverá a essa mãe o sentido de viver?

Que sentimento, ou falta de, faz com que o caso seja esquecido dias depois e ninguém mais fale no menino, na sua mãe, na casa destruída?

Quem se ocupará dessa dor depois que os jornais não tocarem mais no assunto?

O pouco que sei me diz que não foram apenas o menino e sua mãe que perderam algo irreparável.

A humanidade toda perdeu.