domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Caderno 2, nova obra de Saramago

Jorge Adelar Finatto

Está sendo lançado (ainda não tenho informação de data) o novo livro de José Saramago, O Caderno 2, com textos por ele publicados no blog O Caderno de Saramago, que mantém no site da Fundação José Saramago.
 
Tem prefácio de Umberto Eco e reúne os posts que o autor escreveu entre setembro de 2008 e novembro de 2009. Até onde sei,  Saramago é o único Prêmio Nobel de Literatura a manter um blog na internet. Embora já não publique com a mesma frequência de antes, o blog continua sendo referência importamte para quem gosta de literatura.
 
Sou freguês do Caderno desde que surgiu. É um desses raros lugares na internet onde podemos encontrar sensibilidade, inteligência e talento a serviço do humanismo. Vale muito a pena.

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O Caderno de Saramago 

http://caderno.josesaramago.org/.

Fundação José Saramago

http://www.josesaramago.org/

Dois meses

Jorge Adelar Finatto


Amanhã, 22 de fevereiro, o blog completa dois meses de vida. É muito pouco tempo. Mas o suficiente para perceber que há pessoas interessadas em partilhar a palavra e a emoção. Aos amigos que têm visitado esta página o nosso obrigado. Estamos abertos, dispostos a conversar. Queremos mais claridade.

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Foto: J.Finatto

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O nome bonito dos barcos

Jorge Adelar Finatto


O Guaíba e os barcos habitam a alma do menino.
Tinha seis anos quando conheceu o rio.
Trazia no coração a saudade dos pinheiros,
o som do Arroio Tega, os abismos entre as montanhas.
Diante do menino, no dia que chegou a Porto Alegre,
o rio azul, imenso, com sede de mar.
Olhou para as águas e suas ilhas em silêncio.
Como estivesse só e perdido
fez um acordo com o rio:
nunca mais esqueceriam um do outro.
A escuridão daquele tempo os fez irmãos.
O longo e côncavo apito dos navios
era a música daqueles dias.
O cais recebia muitas embarcações.
Algumas grandes, com bandeiras de terras distantes.
O menino percebeu que os navios eram como as pessoas.
Sempre chegando e partindo.
Tentou aprender com eles a lição de ir embora sem se despedaçar.
Nunca conseguiu.
Um pedaço dele ficou em cada despedida.
Perdeu a conta dos estilhaços em que se partiu.
O menino saiu pelo mundo com um mapa rasgado nas mãos.
Tornou-se marinheiro de barco de papel.
Como um lírio plantado na escarpa, ficou só
exposto à chuva e ao vento.
Virou uma espécie de fantasma de si mesmo.
O coração do menino navega
no córrego perdido
entre os plátanos.
Se um barco flutua no ar
nos contrafortes da dor
se acaso um lírio
cai na correnteza
chamai pelo irmão rio
gritai o nome bonito dos barcos
para o menino reencontrar a aurora.

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Foto: J. Finatto. Velho barco no Guaíba com gaivota.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

As intermitências da primavera

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás, azul e rosa o coração, tocou doces músicas no som do carro e do apartamento. Tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.

Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.

Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer a ele que não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem viver juntos.

Teve relacionamentos, depois, que não duraram.

Sente-se um morto-vivo sem a mulher que o acolheu na solidão de náufrago. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar as coisas, procurar sentidos. Uma amiga disse-lhe que ele era muito certinho. A vida não era.

Um dia ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais. 

A família dele, no passado, foi unida, mas agora vive dividida, os irmãos quase não convivem. A mãe, que em vida teceu com dedos de cristal os frágeis laços do afeto familiar, partiu antes do tempo. Ninguém a substituiu na difícil arte de evitar e, sobretudo, colar cacos. Os laços se partiram.

Ele voltou a viver na ilha depois da morte da companheira. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os amigos transformaram-se em meros conhecidos, foram se casando, criando filhos, separando, mudando de bairro, de cidade, de país. O seu mundo reduziu-se ao apartamento do bairro Bela Vista, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados.

O lugar onde vive - a remota ilha -  só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar de casa àquele deserto. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.

As hortênsias acendem as manhãs, iluminam a casa na escuridão.

A janela é seu ponto de referência no planeta.

Dali pode ver a praça e as pessoas, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.

De qualquer parte do universo um observador atento pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está ele na janela.

No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado na vida.

O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.

A solidão o faz acariciar um felino invisível, na frente da televisão, até adormecer.

Se fez tratamento sobre esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho no mundo, sem saber o que fazer com as mãos na presença dos outros.

O sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas memórias, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é diversão e esquecimento, pra ele pode ser vertigem.

A primavera chegou com um cesto florido de lembranças.

As inconstâncias do clima, dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.

A praça passa vazia. A vida vista da janela perde o colorido.

Se ao menos ele tivesse um gato de verdade. Mas não sabe o que faria diante do olhar do bicho ao ver o dono tão desamparado pela casa e pela vida.

Os gatos percebem essas coisas, ela disse.

- Um dia desses vou sair lá fora, sentir o sol no corpo, ver as pessoas de perto. Ainda saio da janela-, ele pensa.

Com o gato no colo, ele adormece no sofá e, às vezes, até sonha.

Uma outra mulher. Nem precisava ser o grande amor. Um terno sentimento, um querer bem. Uma pessoa pra dividir a conversa, a palavra, dormir abraçado, ver um filme, ler um livro em silêncio, lavar a louça, caminhar na praça.

Uma mulher que queira ficar a seu lado, no fim da tarde, tomando chimarrão.

As intermitências da primavera fazem o coração girar louco na ventania.

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Foto: Jorge Finatto

jfinatto@terra.com.br

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

As urgentes evasões

Jorge Adelar Finatto


A necessidade de evasão da realidade é tão antiga quanto a presença do ser humano na Terra. Ultimamente, diante de tantas tragédias, medos e angústias, quem não pensa em tirar umas férias da realidade e viajar para uma ilha de sol e paz longe da loucura?

Essas ilhas estão cada vez mais distantes.

O problema do cotidiano é que tem realidade demais, e muito poucas janelas para a harmonia.

Pretender mudar a vida é uma forma de evasão de um mundo que já não serve, em busca de outro, que não conhecemos muito bem, mas deve ser melhor e mais humano.

Muda-se a realidade mudando a própria vida.

A existência só é suportável na medida em que podemos transformá-la.

Essa página a ser escrita é o que pode nos salvar em meio à miséria humana em que vivemos.

Por que a necessidade de mudar? Porque há injustiça demais, atrocidades e violência demais, catástrofes demais, corrupção demais, sofrimento demais. As regras postas na velha maneira de fazer política e viver em sociedade não permitem a chegada de dias melhores.

Um sistema iníquo esmaga os sonhos de pessoas que querem viver honestamente.

A cena brasileira cansa, exaspera, tritura a paciência. Condutas de homens públicos envergonham e fazem corar as estátuas nas praças.

O resto do mundo não é muito diferente.

As coisas boas acontecem tão lentamente que é como se não acontecessem.

O noticiário é patético.

A esperança? É um dever para todos, principalmente para os mais jovens que não podem naufragar no desespero.

Precisamos urgentemente abrir a janela para o sol entrar.

Tem gente do bem lutando para construir dias mais claros, com menos crianças nas ruas, o coração mais aberto ao outro.

Resta acreditar na luta cotidiana, que começa com a gentileza no trato com os semelhantes, na recusa terminante a qualquer forma de violência como meio de resolução de conflitos, no respeito a todos os seres, no repúdio à indiferença diante do quadro que se apresenta.

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Foto: Jorge Finatto

jfinatto@terra.com.br

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Nem leis, nem justiça

José Saramago

Em Portugal, na aldeia medieval de Monsaraz, há um fresco alegórico dos finais do século XV que representa o Bom Juiz e o Mau Juiz, o primeiro com uma expressão grave e digna no rosto e segurando na mão a recta vara da justiça, o segundo com duas caras e a vara da justiça quebrada. Por não se sabe que razões, estas pinturas estiveram escondidas por um tabique de tijolos durante séculos e só em 1958 puderam ver a luz do dia e ser apreciadas pelos amantes da arte e da justiça. Da justiça, digo bem, porque a lição cívica que essas antigas figuras nos transmitem é clara e ilustrativa. Há juízes bons e justos a quem se agradece que existam, há outros que, proclamando-se a si mesmos justos, de bons pouco têm, e, finalmente, não são só injustos como, por outras palavras, à luz dos mais simples critérios éticos, não são boa gente. Nunca houve uma idade de ouro para a justiça.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Os lírios famintos

Jorge Adelar Finatto


Existe um ser cada vez mais raro na face do universo.

Astrônomos passam as noites em claro, mirando os telescópios para o desconhecido, na incansável busca.

No momento em que traço essas linhas, inúmeras expedições científicas partem pelo cosmo à procura dele.

É quase tão belo como a estrela da manhã. É mais luminoso que a aurora boreal. É mais precioso que o mais raro diamante.

Por causa dele, blogueiros do mundo inteiro invadem as noites oferecendo seus serviços. Impressionantes editores perdem o sono a sua menor lembrança.

O ser em questão - esse misterioso - é o senhor da lista dos mais vendidos, o sonho dos famélicos e maltrapilhos fazedores de livros. Por ele, Cervantes e Thomas Mann foram às vias de fato, Dom Quixote e Hans Castorp romperam relações.

Macunaíma, Anjo Malaquias e Urutu Branco não trocam mais e-mails. É o início do fim dos tempos, ou quase isso.

Os cafés literários perderam o sentido sem a poderosa presença do desaparecido.

As livrarias estão repletas de musas e personagens desempregados. Seria cômico, não fosse o fim de uma era.

Onde andará aquele que é a razão do meu trabalho?, perguntam-se miríades de escritores e poetas, na fria solidão.

A Academia Sueca devia criar o Prêmio Nobel de Leitura, em homenagem a ele, o inefável.

As noites de autógrafos, hoje, só são bem-sucedidas quando é ele quem assina os livros, enquanto os autores esperam a vez na infinita fila.

Não vereis dele mais que o fugidio vulto esgueirando-se no labirinto dos blogs e soturnas bibliotecas.

No entardecer de ontem, cerca de 150 bardos - entre maus, razoáveis e bons - cometeram suicídio no cais de Porto Alegre. Sob o olhar aterrorizado das mães e gritos desesperados das namoradas, os suicidas foram ao fundo do rio com grossos volumes amarrados ao pescoço.

Mais de mil caravelas estão partindo nessa hora de Lisboa em busca de um rastro do indizível em alto mar.

O impensável está acontecendo.

Escritores enlouquecidos batem-se em sangrentos duelos nas praças e ruas da cidade.

As últimas notícias dão conta de que lírios famintos estão atacando e devorando escritores. Invadem seus locais de trabalho e, com requintes de crueldade, cometem o bárbaro crime. Aproveitam-se da solidão literária das vítimas, que começa no ato de criar e se estende até o texto sem leitor, e as destroçam.

Só restam folhas brancas, embebidas em sangue, espalhadas no chão.

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Foto: Jorge Finatto