quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A força do amanhecer

Jorge Adelar Finatto

Desde o século passado, eu mesmo cuido dos meus sapatos.

Limpo, escovo, guardo. Ontem, num shopping de Porto Alegre, quebrei essa rotina. Dois jovens, um rapaz e uma moça, com cerca de vinte e cinco anos cada um, trabalhavam engraxando e dando brilho nos calçados. Sentei-me numa das cadeiras. Perguntei se havia outros trabalhando ali com eles. Me disseram que sim, duas mulheres e três homens revezavam-se durante os turnos. Indaguei ainda se estudavam. Resposta: sim, eram universitários.

A jovem que me atendeu era estudante de engenharia. O colega ao lado dela estudava computação. Eu fiquei impressionado com o exemplo deles. Estão ralando, trabalhando duro. Têm projetos de vida, lutam todos os dias para alcançar seus objetivos e, pelo que percebi, nada os deterá.

Eu também trabalhei em ofícios humildes, aprendi muito e me orgulho disso. Sei que todo trabalho humano é socialmente importante e digno do maior respeito. Tem quem prefira roubar os outros. Fazem qualquer negócio para alcançar dinheiro e poder. 

Aqueles jovens do shopping reforçam minha crença de que existe um outro Brasil, o das pessoas honestas, que acreditam no bem e numa vida melhor através do estudo e do trabalho. Gente que não aparece todo dia no noticiário, mas que está aí, viva, firme, fazendo o moinho do país girar.

Não duvido do poder da maldade. Mas acredito, acima de tudo, na força invencível da dignidade, da esperança ativa que constrói o amanhecer.


terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Visão

Jorge Adelar Finatto





Eu olho as velas brancas
dos barcos que cruzam
as águas escuras do rio

Sentado no banco do parque
eu observo o indescritível
declínio da tarde
sobre o Guaíba

Aqui embaixo do eucalipto
o sangue escorrendo nas veias
os pés firmes na terra
eu acompanho o lento movimento
das águas e do planeta

Estou condenado ao continente
ao monótono traçado das ruas
à intromissão do tédio e do medo

Mas o rio é um caminho
onde a emoção navega

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Um Fernando Pessoa

Jorge Adelar Finatto

Os que amam a obra de Fernando Pessoa - aqui no Brasil esse amor é imenso e antigo - poderão receber notícias, novidades editoriais, entrevistas e informações preciosas sobre o grande poeta português no site Um Fernando Pessoa, de Portugal. Trata-se de espaço qualificado e com grande variedade de assuntos.

Eu disse poeta português? Seria melhor dizer poeta do mundo inteiro. Pessoa é filho da língua portuguesa, mas seu coração e seu verso batem fundo no peito de todos os homens e mulheres. Nunca o conheceremos de todo, será sempre um mistério. Por isso pessoanos de todo o universo nos encantamos e emocionamos a cada nova descoberta do poeta infinito.

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Visite:
http://www.umfernandopessoa.com/

O homem e os moinhos de vento

Jorge Adelar Finatto



O homem anda pela rua na tarde de julho. Uma alameda acolhedora no bairro Moinhos de Vento. A temperatura por volta dos 9°. A luz fria do sol de inverno atravessa a copa das árvores, derrama-se na calçada. Nos cafés, os frequentadores conversam enrolados em casacos de lã e echarpes coloridos.

Ele escuta o súbito e belo canto de um pássaro. Quer ver a ave entre os ramos, mas não consegue.

O nosso personagem experimenta, enquanto caminha, um bem-estar físico e espiritual que gostaria que nunca mais acabasse.

Estou vivo, eis tudo, pensa ele.

Existe vida depois do câncer, disse-lhe o médico, quando conversaram sobre as possíveis saídas.

Ele luta para expulsar o medo que insiste em rondá-lo feito trilha sonora de filme de terror. Esse medo recorrente que vem para lembrá-lo que algo ruim pode acontecer nessa tarde perfeita, como um vaso de gerânios ou uma marquise desabar na sua cabeça em plena rua.

Convence a si mesmo que é possível aproveitar o breve encanto de um simples passeio, sem o temor de um desastre iminente.

- O senhor tem alguma dúvida, algo que queira esclarecer nesse momento, antes de iniciarmos o tratamento? - perguntou-lhe o oncologista no dia do diagnóstico.

- Sim, doutor, acho que sim… Será que eu posso tomar um cafezinho depois que sair daqui? - foi a única reação, soltando o nó da gravata, suando a frio, sem conseguir pensar direito, como se estivesse andando no fundo do mar entre os restos de um naufrágio.

Enquanto sorve o café na mesinha de mármore, sob o que resta das folhas de um plátano, percebe que a vida é um milagre, apesar de tudo. Existe magia suficiente no fato de estar vivo, nos detalhes das coisas, nas pessoas que, em geral, são amáveis. Nunca tinha pensado nisso. Seria uma pena interromper a viagem existencial.

O homem que se sentia eterno até três meses atrás agora agarra-se a cada migalha de esperança, a qualquer possibilidade de continuar vivo.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Caderno 2, nova obra de Saramago

Jorge Adelar Finatto

Está sendo lançado (ainda não tenho informação de data) o novo livro de José Saramago, O Caderno 2, com textos por ele publicados no blog O Caderno de Saramago, que mantém no site da Fundação José Saramago.
 
Tem prefácio de Umberto Eco e reúne os posts que o autor escreveu entre setembro de 2008 e novembro de 2009. Até onde sei,  Saramago é o único Prêmio Nobel de Literatura a manter um blog na internet. Embora já não publique com a mesma frequência de antes, o blog continua sendo referência importamte para quem gosta de literatura.
 
Sou freguês do Caderno desde que surgiu. É um desses raros lugares na internet onde podemos encontrar sensibilidade, inteligência e talento a serviço do humanismo. Vale muito a pena.

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O Caderno de Saramago 

http://caderno.josesaramago.org/.

Fundação José Saramago

http://www.josesaramago.org/

Dois meses

Jorge Adelar Finatto


Amanhã, 22 de fevereiro, o blog completa dois meses de vida. É muito pouco tempo. Mas o suficiente para perceber que há pessoas interessadas em partilhar a palavra e a emoção. Aos amigos que têm visitado esta página o nosso obrigado. Estamos abertos, dispostos a conversar. Queremos mais claridade.

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Foto: J.Finatto

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O nome bonito dos barcos

Jorge Adelar Finatto


O Guaíba e os barcos habitam a alma do menino.
Tinha seis anos quando conheceu o rio.
Trazia no coração a saudade dos pinheiros,
o som do Arroio Tega, os abismos entre as montanhas.
Diante do menino, no dia que chegou a Porto Alegre,
o rio azul, imenso, com sede de mar.
Olhou para as águas e suas ilhas em silêncio.
Como estivesse só e perdido
fez um acordo com o rio:
nunca mais esqueceriam um do outro.
A escuridão daquele tempo os fez irmãos.
O longo e côncavo apito dos navios
era a música daqueles dias.
O cais recebia muitas embarcações.
Algumas grandes, com bandeiras de terras distantes.
O menino percebeu que os navios eram como as pessoas.
Sempre chegando e partindo.
Tentou aprender com eles a lição de ir embora sem se despedaçar.
Nunca conseguiu.
Um pedaço dele ficou em cada despedida.
Perdeu a conta dos estilhaços em que se partiu.
O menino saiu pelo mundo com um mapa rasgado nas mãos.
Tornou-se marinheiro de barco de papel.
Como um lírio plantado na escarpa, ficou só
exposto à chuva e ao vento.
Virou uma espécie de fantasma de si mesmo.
O coração do menino navega
no córrego perdido
entre os plátanos.
Se um barco flutua no ar
nos contrafortes da dor
se acaso um lírio
cai na correnteza
chamai pelo irmão rio
gritai o nome bonito dos barcos
para o menino reencontrar a aurora.

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Foto: J. Finatto. Velho barco no Guaíba com gaivota.