quinta-feira, 25 de março de 2010

Calle de los suspiros

Jorge Adelar Finatto


De não ver os olhos estão vazios.

De não escutar os ouvidos estão surdos.

Um dia encontrei no mapa aquela cidade ao sul.
Nela havia uma rua chamada Calle de los Suspiros.
Um lugar que nasceu num tempo muito velho.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.

Os fantasmas ocupam as casas coloniais.

Quem mora na rua dos suspiros?
A moça na janela olha as buganvílias.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.

A luz das luminárias é amarelo calmo.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado na alma do tempo.

Os ventos se reúnem na calle antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.

Neste lugar, todos sofrem pra dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.

A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam.

A rua dos suspiros habita um retrato no oblívio.

Quem chora a essa hora na calle deserta?


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Foto: J. Finatto
Imagem de Colonia del Sacramento, Uruguai.

terça-feira, 23 de março de 2010

A volta do barco de papel

Jorge Adelar Finatto


 
Saí a navegar no meu barco de papel pra esquecer o mundo.

Eu, quando quero dar férias à realidade, entro no barco colorido e parto em viagem pelo Guaíba.

Dessa vez reforcei a embarcação. Tomei uma folha de papel mais resistente à intempérie, fixei melhor as dobras. Levantei mais a vela. Na parte interna, coloquei utensílios mais leves.

Um forte vento sul, porém, apanhou o barco no meio do rio. Agitou as águas de tal modo que as ondas começaram a jogar o barco pra cima. O pior era a queda livre na volta. O corpo ficou todo dolorido.

Pra piorar a situação, desabou uma tempestade.

Frágil, o barquinho foi se desmanchando. A vela foi a primeira peça a ruir.

Filipo, o papagaio que me acompanha nas navegações, achou que daquela não escaparíamos.

- Vamos morrer, capitán!

- Tenha fé, nobre Filipo -, disse-lhe eu. Não desanimemos numa hora dessas, amigo. As nuvens más haverão de dissipar-se.

O peixinho Moisés, nosso companheiro de aventuras, nadava aflito ao lado do pequeno veleiro.

Quando o barquinho, enfim, se transformou numa pasta branca de papel, eu respirei fundo antes de afundar no Guaíba.

Mas não era dia de morrer.

A ventania, na sua fúria, nos empurrara pra perto da margem.

Ao cair no rio, a água bateu na altura da cintura. Filipo, que estava encolhido e agarrado no meu esquerdo ombro, gritou animado:

- Conseguimos, capitán!

Moisés respirou aliviado, deu um salto de felicidade e voltou para o interior do rio.

A navegação em barco de papel é uma arte.

Como toda arte, tem sua ciência e seus segredos.

O que é preciso pra navegar desse jeito? Bem pouca coisa.

Uma folha branca, lápis de cor, imaginação e um coração quase feliz

 
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Imagem e foto: J. Finatto

segunda-feira, 22 de março de 2010

Apontamentos sobre os direitos das vítimas no Brasil

Jorge Adelar Finatto


A vítima, no Brasil, é aquela pessoa a quem coisas ruins acontecem ou por culpa dela ou por força do destino. Está mal na foto ao contrário dos que ainda não caíram e que se julgam protegidos no interior de uma cápsula indevassável que receberam ao nascer.

A vítima tem direito de saber que dificilmente será tratada como merece pelo Estado e pela sociedade, porque há poucos recursos disponíveis para dar-lhe a necessária atenção. O tempo é curto e a vida continua. No caso, a vida dos outros.

A vítima tem direito de ficar só com seu sofrimento.
 
A vítima tem o inalienável direito de respeitar, até o fim de seus dias, os direitos humanos de seu carrasco.

A vítima tem direito de ser informada que os presídios estão superlotados, não há mais vagas para quem comete crimes.

A vítima, real ou potencial, tem direito de viver aprisionada dentro de si e de sua casa, enquanto os criminosos andam soltos, sabendo que, agora ou num futuro próximo, farão outras vítimas.

A vítima tem direito de entender que aquilo que levou uma vida inteira para construir pode ser destruído em poucos segundos por alguém que não está nem aí para ela e sua família.

A vítima tem todo o direito de fazer um resumo do que lhe aconteceu, desde que evite maiores detalhes e, principalmente, controle sua emoção, porque as pessoas em geral, e autoridades em particular, têm um milhão de coisas para fazer e se chateiam com relatos emocionais. Às vezes, prefere-se acreditar que os fatos não aconteceram bem assim, ou são peças de ficção.

A vítima tem o indiscutível direito de carregar na alma o insuportável sentimento de invasão, impotência, fragilidade e tristeza pelo que passou.

A vítima tem direito de levar sozinha seu trauma pelo resto da vida, com poucos, raros seres humanos para dividir a angústia da violação sofrida.

A vítima tem também o direito de permanecer em silêncio para não importunar a indiferença dos outros.
 
A vítima tem direito de ouvir que seu caso não é o único e que, por isso, deve ter muita paciência. Dramas como o seu acontecem todos os dias. É melhor poupar-se de falar contra a ineficiência dos públicos poderes.

A vítima tem o irrestrito direito de ser informada que o principal direito humano que lhe assiste é o recato na dor.
 

Um claro outono

Jorge Adelar Finatto


Este é o primeiro outono do blog. O Fazedor de Auroras completa hoje três meses de vida. Um tempo muito pequeno, quase nada. Mas não deixa de ser um acontecimento pra quem não tinha ideia de permanência no ambiente virtual. De qualquer forma, tem sido uma boa experiência. Muito agradeço a quem tem visitado esta página da biblioteca infinita da internet. Observo que o blog é receptivo a críticas, sugestões e manifestações em geral. Um claro outono pra todos nós é o que eu espero!

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jfinatto@terra.com.br

domingo, 21 de março de 2010

Refúgio

Jorge Adelar Finatto


Tudo tão frágil na vida
o mundo inteiro cabe num abraço

Medos povoam a insônia
a chuva lá fora é a infância
com seus tesouros submersos
no navio sem leme nem capitão
do tempo

Melhor me refugiar no teu corpo
fingir que tudo está tranquilo
arranjado e bom
como no útero

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21 de março - Dia Mundial da Poesia
Poema do livro O Fazedor de Auroras, J.Finatto. Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1.990.

sábado, 20 de março de 2010

Jogos Olímpicos de 2.016

Jorge Adelar Finatto


O cartão-postal vai brilhar intensamente outra vez, será um grande espetáculo visual para o mundo, o Rio é mesmo deslumbrante, o povo é acolhedor. Depois, tudo se apaga e volta a ser como antes, só que pior, porque dinheiro grosso foi gasto sem critério e sem sentido, perdendo-se uma grande oportunidade.

O amigo leitor está no justo descanso do fim de semana.

Desembarcou na ilha-refúgio de dois dias quase sem fôlego. A rude lida da sobrevivência leva ao limite nossa paciência e capacidade de resistência.

Tudo que se quer, nessa hora, é estar perto das pessoas amadas. E um bom descanso, no sofá ou na velha cadeira de balanço, um livro, uma revista.

Não deve o cronista importunar esse santo repouso. Os temas tratados hão de ter alguma leveza, trazer um pouco de ar fresco.

Contudo, quero hoje falar de um assunto que me atormenta e que gostaria de compartilhar.

Trata-se dos Jogos Olímpicos de 2.016.

Penso que a sociedade brasileira, você, eu, todos nós deveríamos ter sido consultados sobre a realização dos Jogos no Rio de Janeiro. Motivo principal: a extraordinária soma de dinheiro público que será utilizada no evento. Fala-se algo em torno de R$ 30 bilhões. Muito provavelmente será bem acima disso, como costuma acontecer.

A cidade maravilhosa foi escolhida sede da Olimpíada em Copenhague, na Dinamarca, no dia 02 de outubro de 2009, vencendo as concorrentes Madri, Tóquio e Chicago. Mas terá sido mesmo uma vitória ou, antes, um alívio para as cidades preteridas, porque não terão de gastar essa babilônia em meio a uma das piores crises econômicas que o mundo já conheceu ?

sexta-feira, 19 de março de 2010

Três poemas

Jorge Adelar Finatto

VERDE

Das minhas cinzas faço um verde
nesse verde nasce um menino
eu sou o menino que acompanha este menino

somos filhos da fome do dia
como os potros que morreram cedo
nossos irmãos

na nossa rua nenhum deus mora
eis porque choramos quando o dia acaba
ou brilhamos como duas adagas ao sol

nossa canção
a invasão dos dias
nossa matéria
o que está na sombra e não tem nome




EVOCAÇÃO DE RILKE

Quem tomará a minha mão
na noite de vermes
quando o asco me derruba
feito cão pela esquina

quem de coração amigo
chegará para beber a gota
de ternura estrangulada

quem me chamará de irmão
na dor imensa
quando o medo me acerta
com suas espadas de fogo




TODO VIVENTE CARREGA

Todo vivente carrega
seu fardo de solidão
nas entranhas
cheiros rudes no corpo
primaveras esquecidas
na caduquice da memória

se eu prossigo
no caminho
não se iludam
é pura teimosia

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Poemas do livro Claridade, de Jorge Finatto. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1983.
Ilustrações: Maria Izabel Carbunck Schissi