sexta-feira, 30 de abril de 2010

Poética

Jorge Adelar Finatto


Ninguém lê meus poemas
sequer a família
com meus versos se amola

os outros têm afazeres diversos
toda hora

recebo o poema
como um ser
que apareceu
na minha porta
nesse dia

eu escrevo para uma sala vazia

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

Foto: J. Finatto. Colonia del Sacramento, Uruguai.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Os voláteis de Passo dos Ausentes

Jorge Adelar Finatto


A invisibilidade não é um dom de quem habita Passo dos Ausentes.

É antes a falta de luz nos olhos de quem não nos vê e não nos sente.

Às vezes venho para o escritório muito cedo, como hoje, antes mesmo de amanhecer. A água esquenta no fogão a lenha. Passo o café e subo. Entre a mesa de trabalho e os livros, fico  isolado do mundo por uma escada de madeira a pique.

Olhar os longes, os campos, as araucárias, é prazer reservado às auroras em que a neblina dá trégua. Os dias de sol amarelo e transparência azul são raros.

Os horizontes são provisórios e despencam sobre rigorosos penhascos.

O telescópio tem pouca serventia nessas alturas do escritório, fica parado num canto, embora as janelas olhem em todas as direções.

O silêncio da manhã é uma sala de concertos vazia. Ouvir os ruídos emergentes da casa na medida em que o dia avança, sons da madeira fabricados pelo movimento dos passos, é ainda habitar a harmonia.

Um dia desses aconteceu de entrar pela janela do escritório, junto com o ar frio do outono, uma nuvem. Era tão branca e densa que desapareci. Não vi mais nada. Esperei duas horas até  se dissipar. Enquanto isso, fiquei sentado no sofá sem enxergar o próprio corpo.

Pensei que tinha chegado a hora das despedidas. Um sofrimento pra quem não fez nada de importante na vida. Mas não. A nuvem foi embora e eu continuo aqui, me equilibrando entre a cruz e a caldeirinha.
 

Pra quem não sabe, Passo dos Ausentes fica a 1.800 metros acima do nível do mar e possui condições meteorológicas muito particulares. Como o Estado não reconhece juridicamente este lugar como cidade, apesar dos nossos inúmeros pedidos nesse sentido, não estamos no mapa do Rio Grande do Sul.

Em suma, não existimos. Somos seres invisíveis. Não somos vistos nem lembrados. As pessoas não sobem até aqui. O trem parou de funcionar no início dos anos cinquenta do século passado. A estrada de chão é insegura, íngreme, contorna a risco os paredões de basalto. Os mais jovens vão embora cedo, tentam a vida noutro lugar.

Somos poucos.

As cidades dos Campos de Cima da Serra ficam, em média, de oitocentos a mil metros abaixo de Passo dos Ausentes.

Quanto a nós, vivemos nos Campos de Cima do Esquecimento.

Fizeram uma brincadeira (só pode ser isso) estranha no início  do Contraforte dos Capuchinhos, que é onde a estrada deriva numa inclinação ascendente de 45º na nossa direção. Puseram no local uma placa, em forma de seta, com a inscrição: Valhacouto de Fantasmas. Não entendemos.

Além de invisíveis, também nos acusam de voláteis.

As nuvens são nossas testemunhas.

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Fotos:  Eduardo Tavares (ete@terra.com.br)
Imagem dos Campos de Cima da Serra, Rio Grande do Sul. O último livro lançado recentemente pelo Eduardo, Pharol de Santa Martha, é imperdível.


quarta-feira, 28 de abril de 2010

Heitor Saldanha: cem anos do poeta evaristo

Jorge Adelar Finatto


“Há muito tempo numa serra chamada Serra do Caxambu um menino sofreu um acidente, e ao menino estremunhado o pai fez-lhe mijar nas mãos e beber sua própria urina, que, segundo se dizia, era muito bom pra machucado por dentro. A beber pra não morrer é que o menino bebeu. Mas nunca mais se apagou de seu espírito a idéia de que todo aquele que bebe sua própria urina mais cedo ou mais tarde vira um bicho qualquer”. (Trecho do livro inédito Tribino, de Heitor Saldanha.)

Faz cem anos hoje que nasceu o poeta Heitor Saldanha. Veio ao mundo na Serra do Caxambu, em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, em 28 de abril de 1910. A obra poética que publicou em vida é suficiente para assegurar-lhe um lugar único na literatura brasileira. A voz de sua poesia é rara, não existe nada parecido.  Permanece, contudo, desconhecido. É poeta para poetas e iniciados. Não pela dificuldade de compreensão de seus textos. A poesia de Heitor, ao contrário, é das mais abrangentes e abertas ao leitor que conheço. Não encontro explicação para esse silêncio, que se prolonga desde sua morte em 1986.  

Para alcançar o refinamento e a humanidade que saltam de seus versos, mergulhou fundo no trabalho. Atingiu a simplicidade e a beleza não por acaso. Elas são fruto de uma elaboração paciente, meticulosa, alheia aos apelos da exposição imediatista.

Existem autores que vivem para escrever. E existem aqueles que vivem para viver, sendo o verbo a ponte que transforma o vivido em arte. É o caso de Heitor Saldanha.

O poema era para ele uma grande síntese existencial, em que cada palavra e cada verso eram lapidados exaustivamente para que o canto tivessse o tamanho da vida e não a diminuísse.

Uma coletânea de seus livros, intitulada “A Hora Evarista”, foi publicada em 1974 pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul e Editora Movimento, com as obras “A Hora Evarista” (1974), “A Nuvem e a Esfera” (1969), “As Galerias Escuras” (1969) e “A Outra Viagem” (1951).

Recordo com saudade os encontros que tivemos no apartamento dele, na Avenida Coronel Bordini, e na Praça Maurício Cardoso, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre.

Aprendi com Heitor uma importante lição de humildade e compromisso com a vida e a palavra.

Em julho de 1981, fiz uma longa entrevista com ele. Entreguei-lhe as perguntas por escrito. Ele respondeu em alguns dias, escrevendo as respostas em folhas brancas, a letra muito clara escrita com caneta azul. É um documento que guardo com carinho. Espero, um dia, entregá-lo a uma instituição que se disponha a cuidar da memória e da obra do grande poeta.

A entrevista foi publicada aqui no blog, no dia 29 de dezembro de 2009.

Um dia ainda se fará justiça a esse imenso artista da palavra, que nada fica a dever aos principais nomes da poesia em língua portuguesa.

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Imagem: Desenho de Heitor Saldanha feito pelo artista francês Michel Drouillon. Fonte: Fascículo sobre o poeta editado pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1984.

terça-feira, 27 de abril de 2010

O Cavaleiro da Bandana Escarlate

Jorge Adelar Finatto


Vulto na praça. A luz amarela seria poética, não fosse o perigo dos assaltos. Um observador oculto espreita no meio das buganvílias. Quem vem lá? Difícil saber na escuridão. A noite de domingo podia ser romântica. Mas há indivíduos dormindo nos bancos da praça. Dois bêbados mijam sob a pérgula.

A cidade não tem piedade dos seres delicados. Mas há que vencer o mal com o bem. É a hora do menestrel, da capa, da espada e do alaúde. Eis que surge das trevas o Cavaleiro da Bandana Escarlate, montado no seu cavalo branco. Veio galopando desde muito longe. Atravessa a praça cuidando pra não amassar as flores. Um cara passa correndo atrás de outro rua afora, gritando coisas impublicáveis.

O cavaleiro veste a capa de seda preta. A máscara negra não permite descubram-lhe o segredo. Traz o antiquíssimo alaúde a tiracolo. O instrumento pertenceu a um trisavô que veio fugido da Itália e aqui se estabeleceu no ramo dos embutidos.

O cavaleiro passa pro outro lado da rua e estaciona o alvo corcel debaixo do balcão da Meiga Donzela. Dedilha as primeiras notas nas cordas do formoso alaúde. A melodia acorda a musa, que, entre entontecida e furiosa, vai até a janela saber do que se trata. Não acredita no que vê.

O que quereis, ó cavaleiro do alaúde em riste? Acaso não percebeis que são altas horas? Deixai-me dormir, ó  misterioso mascarado. Amanhã é dia de pegar no batente outra vez, voltar pra dureza da vida. Retornai ao vosso castelo de vento, ó romântico senhor, poupai-me. Do contrário, obrigar-me-ei a chamar os homens da lei.

O Cavaleiro da Bandana Escarlate silencia pra não comprometer mais ainda o idílio. Num gesto de rara nobreza, atira uma rosa branca no balcão e parte no trote. Ergue o alaúde na mão esquerda. Na praça, volta-se, empina o cavalo e grita eu retornarei na primavera, ó Estressada Musa.

Alguém abre uma janela próxima e o manda colher caju. Sem perder a altivez, o cavaleiro desaparece na noite. Um bêbado atira uma pedra e quebra a luminária da praça.

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Foto: J.Finatto

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Cálido

Jorge Adelar Finatto



Preciso escrever
o poema
que vai salvar
esse dia

o poema cálido
para atravessar
o tempo difícil
que ainda tenho
pela frente

o poema que vai expulsar
a vontade de morrer
que chega aos poucos
como um gato


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Do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
Foto: J. Finatto

domingo, 25 de abril de 2010

Gonçalo M. Tavares*

José Saramago

A nova geração de romancistas portugueses, refiro-me aos que estão agora entre os 30 e os 40 anos de idade, tem em Gonçalo M. Tavares um dos seus expoentes mais qualificados e originais. Autor de uma obra surpreendentemente extensa, fruto, em grande parte, de um longo e minucioso trabalho fora das vistas do mundo, o autor de O Sr. Valéry, um pequeno livro que esteve durante muitos meses na minha mesa de cabeceira, irrompeu na cena literária portuguesa armado de uma imaginação totalmente incomum e rompendo todos os laços com os dados do imaginário corrente, além de ser dono de uma linguagem muito própria, em que a ousadia vai de braço dado com a vernaculidade, de tal maneira que não será exagero dizer, sem qualquer desprimor para os excelentes romancistas jovens de cujo talento desfrutamos actualmente, que na produção novelesca nacional há um antes e um depois de Gonçalo M. Tavares. Creio que é o melhor elogio que posso fazer-lhe. Vaticinei-lhe o prémio Nobel para daqui a trinta anos, ou mesmo antes, e penso que vou acertar. Só lamento não poder dar-lhe um abraço de felicitações quando isso suceder.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 1º/3/2009.
A grafia é a de Portugal.
http://goncalomtavares.blogspot.com/

sábado, 24 de abril de 2010

Enrolado na manta com um livro na mão

Jorge Adelar Finatto


Há uma espécie de exílio no íntimo das coisas. Um voltar-se para os recônditos aposentos da alma. O vento iniciou seus giros nos caminhos e telhados. Agora o outono chegou. Os últimos dias aqui em Passo dos Ausentes foram de chuva e neblina. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento. A memória é nosso continente. Agora é o tempo do recolhimento. Folhas caindo. A estação das viagens interiores. Fico olhando o mundo lá fora, os plátanos, os pinheiros, as nuvens entre as montanhas. As ruas quase desertas.  A natureza passa por uma busca de harmonia nas entranhas. Há uma força interna em curso. Coisas importantes estão fora de lugar, dentro de nós e no ambiente. As fontes ressequidas. Na entrada da estação de trem abandonada, a alta luminária com luz amarela anuncia que tudo nessa vida é passagem. Homens e mulheres chegam e partem do planeta todos os dias. A viagem imemorial e solitária.  Enquanto as coisas assim se passam, eu me afundo no sofá enrolado na manta com um livro na mão, o Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, o escritor espanhol que nos faz gostar de caminhar pela alameda ensolarada do texto. A leitura é seiva em movimento.

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Foto: J. Finatto