segunda-feira, 17 de maio de 2010

O habitante da casa de pedra


Jorge Adelar Finatto



O homem construiu em torno de si a difícil morada. Pedra por pedra, dia após dia. Era uma casa onde a tristeza e o sofrimento não podiam entrar. Os vizinhos da rua estranharam o tamanho daquela ausência. Como podia alguém se retirar do mundo daquele jeito? A casa foi erguida em paredes de duríssimo basalto. Não tinha porta nem janela. 

Às vezes o homem sentia saudades do mar e dos navios que passavam, à noite, com suas luzes no horizonte. Fazia muito frio na casa de pedra. O frio tomou conta do corpo do homem. Ele vivia os dias enrolado num grosso cobertor que o cobria do pescoço aos pés.

Não se ouviam passos nem vozes na casa de pedra. Nem gritos de alegria, nem choros.

Nos longes onde foi morar, o homem decidiu que não ia mais levantar da cama. Passou a dormir na maior parte dos dias. Raramente saía do escuro quarto. De tanto não sofrer, tinha se livrado da convivência com as pessoas. Ninguém nunca conseguiu entrar na casa.

Uma certa tarde o homem adormeceu e sonhou com o mar. Viu os barcos coloridos na praia. Não havia ninguém na areia. Só as palmeiras  olhando o azul. Ele não conseguia mais recordar nenhum rosto humano. Nem mesmo o seu, uma vez que tinha retirado todos os espelhos da casa.

A paisagem foi se apagando aos poucos, entre reflexos que pareciam o sol entrando nas águas. Naquela tarde o homem adormeceu pela última vez.

A espessa solidão se cumpriu.

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Foto: J.Finatto

domingo, 16 de maio de 2010

Transe

Jorge Adelar Finatto



Nesta noite clandestina de maio
não há solidão: é o vento
nem memória: é vento
o dia de amanhã (ainda não existe): vento

não vem o fim
não vem o sono
nem a esperança de quem perdeu:
vento

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Do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Foto: J.Finatto

sábado, 15 de maio de 2010

Com Garzón*

José Saramago

As lágrimas do Juiz Garzón hoje são as minhas lágrimas. Há anos, a um meio-dia, tomei conhecimento de uma notícia que foi uma das maiores alegrias da minha vida: a acusação a Pinochet. Este meio-dia recebi outra notícia, esta das mais tristes e desesperançadas: que quem se atreveu com os ditadores foi afastado da magistratura pelos seus pares. Ou melhor dito, por juízes que nunca processaram Pinochet nem ouviram as vítimas do franquismo.

Garzón é o exemplo de que o camponês de Florença não tinha razão quando, em plena Idade Média, fez dobrar os sinos a finados porque, dizia, a justiça havia morrido. Com Garzón sabíamos que as leis e o seu espírito estavam vivos porque as víamos actuar. Com o afastamento de Garzón os sinos, depois do repique a glória que farão os falangistas, os implicados no caso Gürtell, os narcotraficantes, os terroristas e os nostálgicos das ditaduras, voltarão a dobrar a finados, porque a justiça e o estado de direito não avançaram, nem terão ganho em transparência e quem não avança, retrocede. Dobrarão a finados, sim, mas milhões de pessoas sabem reconhecer o cadáver, que não é o de Garzón, esclarecido, respeitado e querido em todo o mundo, mas o daqueles que, com todo o tipo de argúcias, não querem uma sociedade com memória, sã, livre e valente.

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No se entiende

El Poder Judicial suspende a Baltasar Garzón

por investigar los crímenes del franquismo

http://www.elpais.com/articulo/espana/Poder/Judicial/suspende/Baltasar/Garzon/investigar/crimenes/franquismo/elpepuesp/20100514elpepunac_4/Tes

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"Afronto el proceso con la tranquilidad de saber que soy inocente"

Baltasar Garzón

"No se afrontan las situaciones complejas con optimismo, sino con tranquilidad, con la tranquilidad que da saber que soy inocente de lo que se me acusa. Como hombre respetuoso con la ley, sólo me queda asumir la decisión de mañana ejerciendo mi defensa para que quede absolutamente clara cuál es la situación".

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 *Publicado com autorização da Fundação José Saramago

http://www.josesaramago.org/

Texto divulgado no site da Fundação em 14/05/2010.

A grafia é a de Portugal.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Un certain regard

Jorge Adelar Finatto


Um certo olhar. Tudo se resume ao modo como se olha a vida. E há infinitas maneiras de senti-la. Me perdoem os betas, os alfas, os ipsilones, gamas e zetas. Mas acho que o grande ora-veja da vida são  os filhos. Os filhos com seu afeto, sua doce presença, suas tosses e febres, seus medos do escuro, seus pesadelos, seus passos, alegrias e risadas. Os filhos que nos dão a chance de viver uma outra infância. Eles reinventam o mundo, não o sério, pesado e triste que enfrentamos todos os dias. Mas um outro, onde ainda existe calor humano, esperança, onde as células boas se reproduzem infinitamente, ao contrário das más, que desistem e desaparecem diante da beleza da vida. Se alguém está em dúvida: filhos. Biológicos, adotivos, pouco importa. Todos nascem no mesmo coração.

Em suma: as mulheres são os seres mais bonitos que Deus pôs no universo. Depois dos filhos, claro. O resto são nuvens e literatura.

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Foto: J.Finatto. Passo dos Ausentes. Vale do Olhar.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A fala do Arlequim

Jorge Adelar Finatto


Querer eu quero, e o querer é tudo. Cumpro os regulamentos do invisível. De silêncio em silêncio, as difíceis passagens. Eu sinto no calado. Os comedimentos.  A pessoa sonhada tem certos jeitos. De não se deixar ver, nem tocar, nem sentir, nem sonhar. Os caprichos do ser amado. As magnólias me doem no inverno de tão belas. Eu lírico. Os tormentos do amador. A musa é do tipo nem aí. Nem sabe de mim. Arlequim ao relento eu sou. Os rigores da lira. Vivo no austero. Sinto no meu segredo. Amador. Ela não me vê. Eu a vejo. A musa é só o motivo. Eu sou o seu adamastor. O que dorme no banco da praça. O que mora dentro do casaco e da manta. O do chapéu ridículo. O que fala algaravias no café. O que não suporta gritos. O que senta no cais a olhar as faluas. Caminho nos meus penhascos.  Ruínas são coisas que habitam o íntimo da pessoa. O que se fala e o outro não entende. Um diz aurora, a musa entende anoitecer. As palavras, tonterias. Sentimento é o ora veja da vida. Cultivo distância, alimento paciência. O ser sonhado tem certos olhares.  A musa vive num jardim secreto que eu mesmo inventei.   A trança de linho desce pelo muro escarpado do castelo. Eu romântico. A vida gira nos esconsos. Os trapos coloridos do meu coração dançam no vento. Amador, amador.

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Foto: J.Finatto. Cena veneziana.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

As origens do Nazismo

Jorge Adelar Finatto


O Nazismo foi uma das maiores atrocidades da história humana. Conhecer suas origens e o tipo de comportamento que o gerou é fundamental para reconhecer seus sinais e evitar que a experiência se repita. O filme A Fita Branca (Das Weisse Band), dirigido e concebido por Michael Haneke, reúne numa mesma história os diferentes elementos que podem nos fazer entender um pouco da gênese deste monstruoso episódio.

Premiado com a Palma de Ouro em Cannes em 2009, e recebendo duas indicações ao Oscar em 2010, nas categorias de melhor filme estrangeiro e fotografia, A Fita Branca se passa num lugarejo da Alemanha, às vésperas da eclosão da Primeira Guerra Mundial. A comunidade é formada por camponeses, por um Barão que emprega em suas terras a maioria das pessoas do lugar, e por figuras como uma parteira, um médico, um professor, um líder religioso e jovens adolescentes.

O ambiente se caracteriza por comportamentos extremamente rígidos e pela frieza e indiferença em relação ao outro, e nesse processo personagens como o líder religioso exercem importante papel. Estranhos acontecimentos começam a ocorrer, rompendo a rotina da pacata (na aparência) aldeia, e esses comportamentos começam a ser revelados em diversos níveis.

O filme é inquietante e nos leva a pensar e repensar sobre as diversas formas de violência contra o ser humano. Encontramos a dureza do autoritarismo em suas manifestações na família, nos relacionamentos do dia a dia, na política, na escola, na religião, no trabalho, e nos defrontamos com padrões morais socialmente tolerados, alguns aparentemente inocentes, mas profundamente cruéis. Um ambiente favorável à barbárie.

Trata-se de obra que proporciona várias leituras. O excelente trabalho foi produzido em preto-e-branco, com 144 minutos de duração, que passam rapidamente.

(Assisti no Instituto NT, em Porto Alegre, rua Marquês do Pombal, 1111 (sem estacionamento). É um casarão antigo transformado em centro de cinema e de cultura. O café é um dos pontos altos desse novo espaço, oferecendo uma boa variedade de aromas e composições de sabor.) 

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Foto: Reuters, divulgação do filme.

Inversos, novo livro de Ana Luísa Amaral

Jorge Adelar Finatto



Nessa terça-feira, 11 de maio,  na cidade do Porto, em Portugal, haverá o lançamento de Inversos,  novo livro de poemas de Ana Luísa Amaral. A edição  é da Publicações Dom Quixote. O evento ocorrerá na Biblioteca Almeida Garret, às 18h30min, e  a apresentação da obra será feita por Maria Irene Ramalho. Haverá leitura de textos por Paulo Eduardo Carvalho e pela própria autora. O convite é feito pela Câmara Municipal do Porto e pela editora.
 

Ana Luísa Amaral figura entre os principais nomes da literatura portuguesa da atuallidade, com uma obra reconhecida pelo público e pela crítica. Além de poeta talentosa e premiada, leciona Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Universidade do Porto. Neste blog publicamos uma interessante entrevista com a autora, em 02 de março passado. Nela Ana Luísa nos dá uma bela ideia de literatura e de seu trabalho, e nos alimenta com seu conhecimento e sua inspiração.


Impedido pela neblina de sair de Passo dos Ausentes, não poderei fazer a travessia do Atlântico a fim de estar presente no lançamento. Os que puderem comparecer serão recompensados pelos ensolarados versos do livro, que reúne a obra poética de Ana Luísa.

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Foto: Ana Luísa Amaral.

Entrevista com Ana Luísa Amaral:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/03/o-tempo-de-construir-palavra.html