sexta-feira, 28 de maio de 2010

O coração do outono

Jorge Adelar Finatto 
 

As invisíveis presenças habitam o outono.
Estão nas fotografias, estão nos pensamentos, estão nas velhas cartas, estão nas cadeiras vazias ao redor do silêncio. 
Estão nos livros que respiram sobre a mesa.
A bruma arrasta o branco vestido de tule pelas ruas esquecidas de Passo dos Ausentes.
Outono é um cartão postal que alguém mandou do oblívio.

O sol olha entre a névoa. O vento sopra nos cabelos, nos telhados oblíquos.
 
O tempo agora é viver cada dia.

As folhas caem em silêncio.

Estou habitado de vozes e ausências. 


O pássaro tece o voo acima do vazio. O arrepio de estar vivo atravessa o coração. A palavra cresce sobre os territórios da sombra, como a luz de maio. Um sopro na escuridão.

 

A claridade depois se espalha.
Vamos com o lume que avança pela noite do mundo.
A face de dor esculpida no tempo.
Precisamos reinventar o amor.

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Fotos: J. Finatto

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Eu comecei a sair da mina

Jorge Adelar Finatto




Eu comecei a sair da mina
com meus ferros retorcidos
meus tocos de vela apagados
meu alforje vazio

fazia lá fora um dia solar
desses de não se perder
eu vi um rosto bom
o jeito sereno de um homem
que me ajudou a respirar
                                          me abraçou
me desamarrou as mãos


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.Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.
.Esse poema, escrito há trinta anos, pertence ao Dr. Valdo, ilustre médico, cujo sobrenome, para minha tristeza, esqueci. O alçapão do tempo e da memória, contudo, não apagou o afeto e a gratidão.
.Foto: J. Finatto

terça-feira, 25 de maio de 2010

Eugénio de Andrade

Jorge Adelar Finatto


Na vida ter talento só não basta, é preciso trabalhar muito para chegar a algum resultado. Muitos talentos se perdem, nas mais diversas atividades, por falta de entrega e persistência.

Existe um poeta pouco conhecido no Brasil, que é dos grandes que temos na língua portuguesa: Eugénio de Andrade. Nasceu em 19 de janeiro de 1923, em Póvoa de Atalaia, centro de Portugal, e morreu em 13 de junho de 2005, na cidade do Porto, onde hoje existe a fundação que leva seu nome.

Lê-se pouca poesia no Brasil e no mundo, de modo geral. Os tempos são duros. A poesia é o gênero literário que pede um leitor sensível, atento à beleza da palavra e da composição no seu grau mais elevado de elaboração (o poema), e, sobretudo, um leitor dotado de espiritualidade.

Um brutamontes dificilmente terá afeto pela poesia.

Eugénio de Andrade é um belo poeta. Lida com o poema de forma rigorosa e, ao mesmo tempo, com notável simplicidade. A simplicidade que só os mestres alcançam como resultado da dedicação exaustiva e obstinada ao trabalho.

Na vida, ter talento só não basta, é preciso trabalhar muito para chegar a algum resultado. Muitos talentos se perdem, nas mais diversas atividades, por falta de entrega e persistência.

A poesia de Eugénio de Andrade nos traz encanto e esperança. Como nestes dois poemas.

O SORRISO
 
Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

VER CLARO

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obcura.
O leitor é que tem às vezes, 
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

A obra do poeta é rara. Para melhor conhecê-la  é interessante uma  visita ao site da Fundação Eugénio de Andrade¹ e, claro, a leitura de seus livros. Entre nós, onde Eugénio, infelizmente, é quase desconhecido, existe a antologia Poemas de Eugénio de Andrade², que oferece uma boa visão do conjunto de sua obra.

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¹Fotos e poemas de Eugénio de Andrade reproduzidos do site da Fundação Eugénio de Andrade:
² Poemas de Eugénio de Andrade, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Adolf Heichmann *

José Saramago

No princípio da década de 60, quando trabalhava numa editorial de Lisboa, publiquei um livro com o título de Seis milhões de mortos em que era relatada a acção de Adolf Eichmann como principal executor da operação de extermínio de judeus (seis milhões foram) levada a cabo de modo sistemático, quase científico, nos campos de concentração nazis. Crítico como tenho sido sempre dos abusos e repressões exercidos por Israel sobre o povo palestino, o meu principal argumento dessa condenação foi e continua a ser de ordem moral: os inenarráveis sofrimentos infligidos aos judeus ao longo da História e, em particular, no quadro da chamada “solução final”, deveriam ser para os israelitas de hoje (dos últimos sessenta anos para maior exactidão) a melhor das razões para não imitarem na terra palestina os seus carrascos. Do que Israel necessita realmente é de uma revolução moral. Firme nesta convicção nunca neguei o Holocausto, somente me permiti estender essa noção aos vexames, às humilhações, às violências de todo o tipo a que o povo palestino tem estado submetido. É o meu direito e os factos se têm encarregado de me dar razão.

Sou um escritor livre que se exprime tão livremente quanto a organização do mundo que temos lho permite. Não disponho de tanta informação sobre este assunto como aquela que está ao alcance do papa e da Igreja Católica em geral, o que conheço destas matérias desde o princípio dos anos 60 me basta. Parece-me portanto altamente reprovável o comportamento ambíguo do Vaticano em toda esta questão dos bispos de obediência Lefebvre, primeiro excomungados e agora limpos de pecado por decisão papal. Ratzinger nunca foi pessoa das minhas simpatias intelectuais. Vejo-o como alguém que se esforça por disfarçar e ocultar o que efectivamente pensa. Em membros da Igreja não é procedimento raro, mas a um papa até um ateu como eu tem o direito de exigir frontalidade, coerência e consciência crítica. E auto-crítica.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 05/02/2009.
A grafia é a de Portugal.

sábado, 22 de maio de 2010

A lágrima

Jorge Adelar Finatto




As percas. O irremediável na vida da pessoa. Os olhos pretos, pretos, acesos. Os negros cabelos caíam nos ombros. No então eu habitava o calabouço. Agonia em mim acostumada. As esperas. Ela surgiu um dia no abrigo, as carinhas nossas. Vestia casaco azul-marinho, lenço branco no pescoço. Quando vi aquela iluminação, meu coração saltou saltos. Pensei no vazio de mim: o que, a estrela da minha vida, essa? Não esqueço. A Encantada. Os olhos dela me encontraram. Escolheu a minha frágil escondida criatura. Havia muitos outros habitantes do calabouço aguardando amanhecer. No limbo, esperando a face do milagre. Os esquecidos. A Encantada me pegou nos braços. O meu filho, disse. Passei a ser o amoroso. Os baldos. Meu coração cavalo cego na alegria. Quem me via, falava: esse tal, o príncipe. O escolhido. A Encantada inaugurou minha vida. A estrela. Eu príncipe. Ela disse: menino agora é meu filho no rigor da lei, pessoa da minha alma. Tive outro menino, falou ela, olhando o esmo. Do meu sangue próprio. Perdi nos prelúdios, tinha quatro anos. As percas. As esfumações. Cresci com esse invisível irmão. O finado. O sempre lembrado. Às vezes eu conversava com ele. A mãe era sozinha no mundo. A mãe tinha os momentos. As lonjuras.  Carregava o menino morto no coração. Caminhava no outro mundo com seus desaparecidos. A mãe tinha  segredos guardados. Ninguém entrava ali. Ai de quem. O meu filho, dizia. A mãe fazia eu dormir no colo, na frente do fogão a lenha, até os oito anos. O príncipe. A mãe levava o filho vivo passear na praça. O mundo conhecesse o amoroso. A solitária da Rua São João e seu menino vivo. Eu tive, depois perdi.  O coração da mãe tinha umas ausências, sustos, sufocos. Um dia estranhei aquele sono esquecido de acordar. Fui no quarto. Ela deitada. O rosto lindo inclinado. Os olhos pretos, pretos, abertos. Havia uma lágrima transparente. Eu me vi dentro daquela lágrima. A boca parecia rir um pouquinho. Tinha eu doze anos. O escolhido. Peguei na mão da Encantada. Fiquei dois dias sentado no chão ao lado dela, esperando ela retornar. A mão muito fria. A testa que beijei, gelada. A mãe não regressou. Os silêncios. Disse no dentro do fundo do coração: vou junto. Aqui não fico mais. A vida não vale, acabou. Odiei ter renascido. O escolhido. Ódio, ódios envenenados senti. Um vizinho, vizinhos forçaram a porta, sobejaram pela casa. Os espantos. Me tiraram de lá, no forçado. Eu gritei deveras os gritos. Me deixem, me deixem. O pobre, diziam, o pobre príncipe. Nos retratos a nossa vida em família: a mãe, o sempre lembrado e eu. Sobrevivi a mim mesmo. Sou uma ausência caminhando na névoa. O frio, frios dentro em mim.

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Foto: J. Finatto

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Pessoa Revisitado

Jorge Adelar Finatto

A Casa Fernando Pessoa está realizando, desde 20 de maio, exposição de pinturas e desenhos que têm o poeta Fernando Pessoa como tema. As obras são de vários artistas e pertencem ao acervo da CFP, com belos trabalhos como este acima.

A CFP se situa na Rua Coelho da Rocha, nº 16, no bairro Campo de Ourique, em Lisboa. Nela o  grande poeta viveu entre 1920 e 1935, ano de sua morte.*


Para conhecer melhor a CFP, visite as páginas:

http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/

http://www.mundopessoa.blogs.sapo.pt/


Vale a pena.

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* Mais informações no post O Barbeiro de Fernando Pessoa, publicado neste blog em 15.04.2010.

Valsas Brasileiras

Jorge Adelar Finatto
 

Descobri há pouco tempo o cd Valsas Brasileiras, de Marco Pereira (foto). Foi um achado. Não conhecia o trabalho deste grande violonista. Trata-se de um violão límpido, harmonioso, sofisticado, sentimental. Marco Pereira nos põe em contato com sua arte que está à altura da melhor tradição dos virtuosos do instrumento em nosso país.

O disco apresenta um repertório apurado de valsas populares.

O artista nasceu em São Paulo, onde iniciou seus estudos musicais. Depois viveu e estudou durante cinco anos na França. Naquele país obteve o título de Mestre em Violão pela Université Musicale Internationale de Paris, defendendo tese sobre a música de Heitor Villa-Lobos (outro grande amoroso do instrumento), no Departamento de Musicologia da Universidade de Paris-Sorbonne.

Na volta ao Brasil, fixou residência no Rio de Janeiro.

Além de virtuoso, é compositor. Tem vários discos gravados, apresenta-se no mundo inteiro. 

Gravou com importantes músicos, Tom Jobim, Paulinho da Viola e Roberto Carlos, entre tantos.

É professor adjunto no Departamento de Composição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Conhecer a obra de Marco Pereira é um belo encontro com o violão e com o melhor da música.

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site do artista: