quarta-feira, 9 de junho de 2010

A fala de Pedrolino

Jorge Adelar Finatto


Pertenço à ordem dos amorosos sem camélia. Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os quase.  Os que saíram cedo da festa.

A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é  um lugar de barbaridades.  Dor, dores.

Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu. O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O que eu fui.

Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar. Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão. Bailei no ar como folha de plátano, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama. Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim.

As iluminações. Passamos a frequentar a Praça da Ausência, nas tardes amarelas daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três noites.

Alberta meu sentimento. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o em algum lugar secreto, bem no fundo de mim. Aqueles eram dias de ora-veja.

A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar. Não canto outros amores, que não tive, e, se os tivesse, silenciaria.

Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim. Arlequim e seus guizos, sua palavra sem valia, seu alaúde. Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse. Bazófias. 

Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Explorador de musas, ladrão de amores. Blasona. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros, até o corpo de violino que nunca toquei. Eu sonhador.  Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei. 

Quem me visse, a face esculpida da dor.  Veio o inverno. Invernos. O vero solitário da rua triste. O que olha a vida da janela. O que quase foi feliz. O sem camélia.

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Imagem: Pierrô (Gilles). Autor: Antoine Watteau (1684-1721). Museu do Louvre, Paris. Fonte: Wikipédia.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Ferreira Gullar, Prêmio Camões 2010

Jorge Adelar Finatto


A atribuição do Prêmio Camões 2010 a Ferreira Gullar , em Lisboa, em 31 de maio passado, é o justo reconhecimento ao talento e, sobretudo, ao trabalho de uma vida deste poeta brasileiro. Gullar trouxe para a poesia uma visão de mundo rente à experiência do cotidiano, aos dramas, lutas e esperanças do homem comum. De certa forma, atualizou o verso dando-lhe a face do tempo, com sua linguagem altamente elaborada e, ao mesmo tempo, despojada.

Ferreira Gullar, 79 anos, nascido em São Luís, estado do Maranhão, teve a coragem e a lucidez de trazer ao seu canto vozes que até  então estavam caladas. Disse-nos coisas que, antes dele, viviam na sombra. Não fosse por sua arte e seu esforço esse mundo esquecido permaneceria  submerso. 

O Poema Sujo, livro que lançou em 1976, quando ainda vivia no exílio em Buenos Aires, durante a ditadura brasileira, justificaria, por si só, a  entrega desta e de outras honrarias. Se algum valor existe em premiações literárias, sempre discutíveis e tão exteriores ao ofício do escritor, é esse de, às vezes, lembrar com justiça daqueles que emprestaram voz a quem não a tem.

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Foto: Ferreira Gullar. Fonte: site oficial do poeta:

http://literal.terra.com.br/ferreira_gullar/

O Prêmio Camões foi instituído pelos governos de Portugal e Brasil e, desde 1989, vem sendo outorgado a escritores de língua portuguesa.

sábado, 5 de junho de 2010

Maestro Antonio Brasileiro, entre o Guaíba e Ipanema

Jorge Adelar Finatto


O coração do homem que nunca mais voltará resiste em silêncio. O navio avança nas águas do Guaíba em direção à Lagoa dos Patos. Jorge Jobim perde de vista o contorno de Porto Alegre. A figura melancólica recorta-se na memória da tarde de inverno. O grande mar de água doce remete Porto Alegre ao Atlântico. O Rio de Janeiro é o destino.

O tempo voa longe. No dia do futuro, alguém abre a gaveta. A claridade ilumina velhos papéis do homem que partiu. Eis ali o poeta e sua palavra.

O menino Antonio Carlos teve que reinventar o pai que perdeu aos oito anos. Acariciou suas mãos ausentes ao piano, nas antigas manhãs da casa de Ipanema.

O piano cantou a canção paterna: a nostalgia do sul, a saudade da família, dos amigos, o amor que se perdeu. Era preciso calar o esquecimento.

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Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim nasceu em 25 de janeiro de 1927 no Rio de Janeiro, filho de Nilza Brasileiro de Almeida Jobim, carioca, professora, e de Jorge de Oliveira Jobim, gaúcho de São Gabriel, poeta, bacharel em Direito que teve passagem pela carreira diplomática. Morreu em 8 de dezembro de 1994, nos Estados Unidos, para onde viajara a fim de se operar.

O pequeno Tom veio com os pais a Porto Alegre, onde Nilza e Jorge haviam se casado, para conhecer a família Jobim. Por pouco não ficaram morando nas margens do Guaíba. Porém, falou mais alto o desejo de Nilza de morar no Rio, onde estavam seus familiares. No meio materno foi criado o menino Tom-Tom, apelido dado pela única irmã, Helena Jobim.

A grande perda: Jorge morre aos 47 anos incompletos, deixando os dois filhos em tenra idade.

O guri criou-se entre as montanhas e o mar do Rio de Janeiro. Os longos passeios pela mata e pela praia, as pescarias, o contato com bichos e plantas fizeram nascer o interesse pelas coisas da natureza. Tornou-se não apenas seu profundo conhecedor como defensor.

Entre os professores que teve, está o alemão naturalizado brasileiro Hans-Joachim Koellreutter, que lhe ensinou a transposição das fronteiras que separam a música erudita da popular. Alguns mestres que o inspiraram: Debussy, Bach, Stravinsky, Villa-Lobos.

Amoroso das palavras, Tom Jobim foi um leitor dedicado e atento. Cultivou, entre tantos, João Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Nas letras e textos que escreveu, percebe-se o artesão meticuloso do verbo.

A obra de Tom Jobim constrói-se na esfera da genialidade. Soube como poucos aliar talento a muito trabalho. As composições que nos legou transcendem as ensolaradas cercanias de Ipanema: são patrimônio espiritual da humanidade. Águas de março, Garota de Ipanema, Lígia, Dindi, Samba de uma nota só, Chovendo na roseira, Samba do avião são apenas algumas das inesquecíveis canções que integram a produção do compositor.

Um dos criadores da Bossa Nova, o maestro foi também um dos principais nomes da música mundial no século XX.

A descoberta da obra jobiniana nos leva a um mundo de delicadezas e felicidade.

Amanhã, se tudo der certo, encontraremos o amor. Se a abóbada não ceder sobre nossas cabeças, se a Mata Atlântica - que o maestro tanto amou - não virar jardim calcinado, teremos quem sabe tempo para olhar a paisagem e sentir a vida.

Ouviremos, talvez, o canto do sabiá em setembro.

A música de Antonio Brasileiro nos transporta a esse mundo futuro e antecipa-nos a maravilha.

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Foto: capa do disco Urubu, 1975. Fonte: Acervo do Instituto Antonio Carlos Jobim: http://www.jobim.org

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Páginas de velhas revistas

Jorge Adelar Finatto


Tenho uma pequena coleção de revistas que datam do início até a metade do século XX. Alguns dos exemplares já passaram bem dos cem anos de existência. Há títulos como Para Todos, Careta, Fon-Fon, Ilustração Brasileira, O Malho, Revista da Semana. Mais que simples revistas, são documentos de época. Nelas se pode encontrar muito dos costumes, do modo de ser e pensar da sociedade de então. Os conteúdos prestam-se a estudos em áreas como história, sociologia, propaganda, esportes, cultura, comunicação, política e outros.

A qualidade do material com que eram feitas é notável. As capas e páginas de miolo continuam em bom estado. As cores são vivas, parecendo que foram impressas na semana passada.

Tenho especial predileção pela Para Todos, dirigida pelo porto-alegrense Alvaro Moreyra a partir de 1918. Ele também dirigiu a Ilustração Brasileira. O escritor gaúcho apoiou e publicou muitos novos autores, como Carlos Drummond de Andrade (que reconheceu em Alvaro sua maior influência literária, nos anos de formação, entre os escritores brasileiros).
 
Para Todos é um primor gráfico, artístico e literário. As capas eram desenhadas pelo grande caricaturista e artista plástico J. Carlos, também diretor de Para Todos e parceiro de Alvaro durante muitos anos.
Alvaro Moreyra coloca na publicação seu grande talento de escritor e poeta. Era homem sensível, dotado de rica e variada cultura e, acima de tudo, um raro humanista. Para Todos foi um espaço democrático que buscava um enfoque contemporâneo da cultura e das ideias que surgiam a reboque das grandes transformações que o mundo experimentava. Admirado por escritores como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Manuel Bandeira e tantos outros, foi um intelectual exemplar na humildade, na solidariedade e no respeito às pessoas.


Na página de abertura que escrevia em Para Todos, vamos encontrar a mostra de seu texto belo e único. Como neste, publicado na edição de 05 de março de 1927 (mantenho a grafia):

Para que título?

Sempre que eu vou ao cáes despedir-me de alguma amiga ou de algum amigo em viagem para a Europa, outras pessoas que foram lá fazer a mesma coisa têm o costume de atirar palmadas amáveis nas minhas costas e dizer:
- Que vontade de ir também, não?
Eis ahi o que eu chamo um máo costume...


Era um cigarro lindo. Accendi-o. E 
como ia passando um cordão, puz
o cigarro no cinzeiro e fui ouvir a
cantiga que subira pela janella.
Quando voltei, o cigarro, sósinho,
tinha acabado. Restava um esque-
leto de cinza.
Tenho conhecido muita gente as-
sim.

Um autor, deante de uma mulher
que o admira, tem que ser sempre
um autor.
Mas, ás vezes, não sabe de que...

Adão. Que popularidade!...

Quando penso em mim e tiro cá
de dentro as memorias da minha
vida, todas ellas são bonecas e bo-
necos ... Nenhuma paysagem fi-
cou, de tantas por onde passei. A
natureza propriamente dita não me
interessa...

Em certos dias, ao folhear e ler essas revistas, nelas encontro o espírito e o encanto de um tempo que, perdido embora, continua vivo nas suas páginas.

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Fotos das capas das revistas: J. Finatto. A de Alvaro Moreyra foi feita a partir de fotografia do escritor publicada na Para Todos de 19 de março de 1927.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Outono, outonos

Jorge Adelar Finatto







































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Fotos: J. Finatto


segunda-feira, 31 de maio de 2010

O sentido do inefável

Jorge Adelar Finatto


Um pouco sol, um pouco nuvem. Tem dias assim. Intervalo entre sonho e realidade. Uma saudade remota e vaga acende dentro de mim. De que estarei me recordando? Não sei. Há algo que não se revela. Um mundo escondido. Um tempo de borboletas e flores na janela, numa cidade invisível. O sentimento do inefável anda sempre comigo. A melancolia é o sol quando cai atrás da montanha ou nuvem. Talvez venha de outra existência, antes da minha, a obscura lembrança que me acompanha. De um tempo não vivido. Essa memória sem face pode estar, quem sabe, no tempo futuro, nas coisas que estão por acontecer. Que venha, pois, esse mundo novo, com sua luz da manhã,  suas cálidas revelações, sua ventura.

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Foto: J.Finatto

domingo, 30 de maio de 2010

Da impossibilidade deste retrato (2)

José Saramago

Entretanto, o pintor vai pintando o retrato de Fernando Pessoa. Está no princípio, não se sabe ainda que rosto escolheu, o que se pode ver é uma levíssima pincelada de verde, se calhar vai sair daqui um cão dessa cor para pôr em conjunção com um jockey amarelo e um cavalo azul, salvo se o verde for apenas o resultado físico e químico de estar o jockey em cima do cavalo, como é sua profissão e gosto. Mas a grande dúvida do pintor não tem que ver com as cores que há-de empregar, essa dificuldade resolveram-na os impressionistas de uma vez para sempre, só os homens antigos, os de antes, não sabiam que em cada cor as cores estão todas: a grande dúvida do pintor é se há-de ter uma atitude reverente ou irreverente, se pintará esta virgem como S. Lucas pintou a outra, de joelhos, ou se tratará este homem como um triste coitado que realmente foi ridículo a todas as criadas de hotel e escreveu cartas de amor ridículas, e se, assim autorizado pelo próprio, poderá rir-se dele pintando-o. A pincelada verde, por enquanto, é somente a perna do jockey amarelo posta do lado de cá do cavalo azul. Enquanto o maestro não sacudir a batuta, a música não romperá lânguida e triste, nem o homem da loja começará a sorrir entre as memórias da infância do pintor. Há uma espécie de ambiguidade inocente nesta perna verde, capaz de se transformar em verde cão. O pintor deixa-se conduzir pela associação de ideias, para ele, perna e cão tornaram-se em meros heterónimos de verde: coisas bem mais inacreditáveis do que esta têm sido possíveis, não há que admirar. Ninguém sabe o que se passa na cabeça do pintor enquanto pinta. O retrato está feito, vai juntar-se às dez mil representações que o precederam. É uma genuflexão devota, é uma risada de troça, tanto faz, cada uma destas cores, cada um destes traços, sobrepondo-se uns aos outros, aproximam o momento da invisibilidade, aquele negro absoluto que não reflectirá nenhuma luz, sequer a luz fulgurante do sol, que faria então à breve cintilação de um olhar, em frente a apagar-se tão cedo. Entre a reverência e a irreverência, num ponto indeterminável, estará, talvez, o homem que Fernando Pessoa foi. Talvez, porque também isso não é certo. Albert Camus não pensou duas vezes quando escreveu: “Se alguém quiser que o reconheçam, basta que diga quem é”. No geral dos casos, o mais longe a que chega quem a tal aventura ouse propor-se é dizer que nome lhe puseram no registo civil.

Fernando Pessoa, provavelmente, nem tanto. Já não lhe bastava ser ao mesmo tempo Caeiro e Reis, cumulativamente Campos e Soares. Agora que já não é poeta, mas pintor, e vai fazer o seu auto-retrato, que rosto pintará, com que nome assinará o quadro, no canto esquerdo dele, ou direito, porque toda a pintura é espelho, de quê, de quem, para quê? O braço levanta-se, enfim, a mão segura uma pequena haste de madeira, de longe diríamos que é um pincel, mas há motivos para suspeitar: nele não se transporta uma cor verde, ou azul, ou amarela, nenhuma cor se vê, nenhuma tinta. Este é o negro absoluto com que Fernando Pessoa, por suas próprias mãos, se tornará invisível.

Mas os pintores vão continuar pintando.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 23/abril/2009.
A grafia é a de Portugal.