sexta-feira, 11 de junho de 2010

Esplendor americano

Jorge Adelar Finatto


Harvey Pekar ama o jazz e histórias em quadrinhos. Mora em Cleveland, Ohio, nos Estados Unidos. Trabalha como arquivista no hospital da cidade. Abandonou os estudos por falta de paciência e vocação. Leva uma vida monótona e muito solitária, após dois casamentos desfeitos. O apartamento onde vive só não é mais caótico por falta de espaço. Por todo lado, discos, livros e revistas que coleciona.

Tem um amigo que desenha quadrinhos muito bem, Robert Crumb, o mesmo que, anos mais tarde, se tornará uma celebridade internacional no universo dos gibis. Um belo dia, Harvey resolve começar a escrever para quadrinhos. Com uma particularidade: contará as histórias de sua própria existência, falará da vida real. Pessoas de suas relações, família, amigos  e colegas de hospital serão personagens, assim como ele. Robert Crumb, já então famoso, gosta dos textos e faz os primeiros desenhos. Daí nasce a série de revistas American Splendor (Esplendor americano), em 1976, que vira sucesso e se transforma numa publicação cult. O êxito o leva a participar várias vezes do talk show de David Letterman , com o qual  trava diálogos ríspidos em pleno ar.

Pekar, no entanto, diz que, apesar do sucesso, não chega a ganhar o suficiente para largar o emprego de arquivista. Na verdade, não abandonará essa profissão, não apenas pela questão financeira, mas porque aquele ambiente lhe dá sustentação emocional, é uma espécie de âncora. No hospital, estão seus principais amigos. Ali permanece até aposentar-se.

O filme American Splendor (2003), que no Brasil foi lançado com o título de Anti-herói americano, conta essa história (pode ser encontrado em dvd). Além dos atores principais (Paul Giamatti, no papel de Pekar, e Hope Davis, interpretando sua mulher, Joyce Brabner, com quem, enfim,  faz um bom casamento), o próprio Harvey Pekar aparece em várias cenas intercaladas, contando detalhes de sua trajetória, além de figurar como narrador. O filme, escrito e dirigido por Shari Springer Berman e Robert Pulcini, recebeu o Prêmio do Grande Júri do Festival de Filmes Sundance e o Prêmio dos Críticos do Festival de Cannes, ambos em 2003.

Esplendor americano é a visão irônica, às vezes amarga, às vezes perplexa, sempre humana, do homem comum que luta para sobreviver enquanto procura sentidos para a vida, no centro da realidade. Nada tem a ver com o herói clássico, com a imagem idealizada, com o elogio da civilização tecnológica e vencedora. Nos textos de Pekar, os perdedores (losers) - assim considerados dentro de critérios estreitamente vinculados a dinheiro e posição social -, têm voz e vez.

Pekar é um sujeito introspectivo, tímido, deprimido,  obsessivo, desses que ruminam os detalhes do dia-a-dia, buscando compreender um pouco as coisas dentro e fora de si. No seu entender, "a vida comum é bastante complexa". Não faltam humor e esperança, ainda que a realidade seja dura.

Pratica uma espécie de investigação filosófica à flor da pele , dentro do único cenário possível: a vida real. Lá pelas tantas, se vê diante de um câncer, que o leva inicialmente ao desespero, depois ao tratamento e, por fim, à cura, com a inestimável ajuda de sua mulher. Eles formam uma família com a filha adotiva.

Trata-se de um filme brilhante, muito bem construído. Revela  os caminhos de pessoas como nós, que querem encontrar razões de viver, formar uma família, ter amigos e um trabalho, que acreditam que a vida vale a pena, apesar de tudo.

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Foto: Harvey Pekar. Fonte: site The sound of young America.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A fala de Pedrolino

Jorge Adelar Finatto


Pertenço à ordem dos amorosos sem camélia. Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os quase.  Os que saíram cedo da festa.

A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é  um lugar de barbaridades.  Dor, dores.

Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu. O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O que eu fui.

Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar. Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão. Bailei no ar como folha de plátano, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama. Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim.

As iluminações. Passamos a frequentar a Praça da Ausência, nas tardes amarelas daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três noites.

Alberta meu sentimento. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o em algum lugar secreto, bem no fundo de mim. Aqueles eram dias de ora-veja.

A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar. Não canto outros amores, que não tive, e, se os tivesse, silenciaria.

Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim. Arlequim e seus guizos, sua palavra sem valia, seu alaúde. Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse. Bazófias. 

Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Explorador de musas, ladrão de amores. Blasona. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros, até o corpo de violino que nunca toquei. Eu sonhador.  Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei. 

Quem me visse, a face esculpida da dor.  Veio o inverno. Invernos. O vero solitário da rua triste. O que olha a vida da janela. O que quase foi feliz. O sem camélia.

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Imagem: Pierrô (Gilles). Autor: Antoine Watteau (1684-1721). Museu do Louvre, Paris. Fonte: Wikipédia.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Ferreira Gullar, Prêmio Camões 2010

Jorge Adelar Finatto


A atribuição do Prêmio Camões 2010 a Ferreira Gullar , em Lisboa, em 31 de maio passado, é o justo reconhecimento ao talento e, sobretudo, ao trabalho de uma vida deste poeta brasileiro. Gullar trouxe para a poesia uma visão de mundo rente à experiência do cotidiano, aos dramas, lutas e esperanças do homem comum. De certa forma, atualizou o verso dando-lhe a face do tempo, com sua linguagem altamente elaborada e, ao mesmo tempo, despojada.

Ferreira Gullar, 79 anos, nascido em São Luís, estado do Maranhão, teve a coragem e a lucidez de trazer ao seu canto vozes que até  então estavam caladas. Disse-nos coisas que, antes dele, viviam na sombra. Não fosse por sua arte e seu esforço esse mundo esquecido permaneceria  submerso. 

O Poema Sujo, livro que lançou em 1976, quando ainda vivia no exílio em Buenos Aires, durante a ditadura brasileira, justificaria, por si só, a  entrega desta e de outras honrarias. Se algum valor existe em premiações literárias, sempre discutíveis e tão exteriores ao ofício do escritor, é esse de, às vezes, lembrar com justiça daqueles que emprestaram voz a quem não a tem.

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Foto: Ferreira Gullar. Fonte: site oficial do poeta:

http://literal.terra.com.br/ferreira_gullar/

O Prêmio Camões foi instituído pelos governos de Portugal e Brasil e, desde 1989, vem sendo outorgado a escritores de língua portuguesa.

sábado, 5 de junho de 2010

Maestro Antonio Brasileiro, entre o Guaíba e Ipanema

Jorge Adelar Finatto


O coração do homem que nunca mais voltará resiste em silêncio. O navio avança nas águas do Guaíba em direção à Lagoa dos Patos. Jorge Jobim perde de vista o contorno de Porto Alegre. A figura melancólica recorta-se na memória da tarde de inverno. O grande mar de água doce remete Porto Alegre ao Atlântico. O Rio de Janeiro é o destino.

O tempo voa longe. No dia do futuro, alguém abre a gaveta. A claridade ilumina velhos papéis do homem que partiu. Eis ali o poeta e sua palavra.

O menino Antonio Carlos teve que reinventar o pai que perdeu aos oito anos. Acariciou suas mãos ausentes ao piano, nas antigas manhãs da casa de Ipanema.

O piano cantou a canção paterna: a nostalgia do sul, a saudade da família, dos amigos, o amor que se perdeu. Era preciso calar o esquecimento.

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Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim nasceu em 25 de janeiro de 1927 no Rio de Janeiro, filho de Nilza Brasileiro de Almeida Jobim, carioca, professora, e de Jorge de Oliveira Jobim, gaúcho de São Gabriel, poeta, bacharel em Direito que teve passagem pela carreira diplomática. Morreu em 8 de dezembro de 1994, nos Estados Unidos, para onde viajara a fim de se operar.

O pequeno Tom veio com os pais a Porto Alegre, onde Nilza e Jorge haviam se casado, para conhecer a família Jobim. Por pouco não ficaram morando nas margens do Guaíba. Porém, falou mais alto o desejo de Nilza de morar no Rio, onde estavam seus familiares. No meio materno foi criado o menino Tom-Tom, apelido dado pela única irmã, Helena Jobim.

A grande perda: Jorge morre aos 47 anos incompletos, deixando os dois filhos em tenra idade.

O guri criou-se entre as montanhas e o mar do Rio de Janeiro. Os longos passeios pela mata e pela praia, as pescarias, o contato com bichos e plantas fizeram nascer o interesse pelas coisas da natureza. Tornou-se não apenas seu profundo conhecedor como defensor.

Entre os professores que teve, está o alemão naturalizado brasileiro Hans-Joachim Koellreutter, que lhe ensinou a transposição das fronteiras que separam a música erudita da popular. Alguns mestres que o inspiraram: Debussy, Bach, Stravinsky, Villa-Lobos.

Amoroso das palavras, Tom Jobim foi um leitor dedicado e atento. Cultivou, entre tantos, João Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Nas letras e textos que escreveu, percebe-se o artesão meticuloso do verbo.

A obra de Tom Jobim constrói-se na esfera da genialidade. Soube como poucos aliar talento a muito trabalho. As composições que nos legou transcendem as ensolaradas cercanias de Ipanema: são patrimônio espiritual da humanidade. Águas de março, Garota de Ipanema, Lígia, Dindi, Samba de uma nota só, Chovendo na roseira, Samba do avião são apenas algumas das inesquecíveis canções que integram a produção do compositor.

Um dos criadores da Bossa Nova, o maestro foi também um dos principais nomes da música mundial no século XX.

A descoberta da obra jobiniana nos leva a um mundo de delicadezas e felicidade.

Amanhã, se tudo der certo, encontraremos o amor. Se a abóbada não ceder sobre nossas cabeças, se a Mata Atlântica - que o maestro tanto amou - não virar jardim calcinado, teremos quem sabe tempo para olhar a paisagem e sentir a vida.

Ouviremos, talvez, o canto do sabiá em setembro.

A música de Antonio Brasileiro nos transporta a esse mundo futuro e antecipa-nos a maravilha.

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Foto: capa do disco Urubu, 1975. Fonte: Acervo do Instituto Antonio Carlos Jobim: http://www.jobim.org

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Páginas de velhas revistas

Jorge Adelar Finatto


Tenho uma pequena coleção de revistas que datam do início até a metade do século XX. Alguns dos exemplares já passaram bem dos cem anos de existência. Há títulos como Para Todos, Careta, Fon-Fon, Ilustração Brasileira, O Malho, Revista da Semana. Mais que simples revistas, são documentos de época. Nelas se pode encontrar muito dos costumes, do modo de ser e pensar da sociedade de então. Os conteúdos prestam-se a estudos em áreas como história, sociologia, propaganda, esportes, cultura, comunicação, política e outros.

A qualidade do material com que eram feitas é notável. As capas e páginas de miolo continuam em bom estado. As cores são vivas, parecendo que foram impressas na semana passada.

Tenho especial predileção pela Para Todos, dirigida pelo porto-alegrense Alvaro Moreyra a partir de 1918. Ele também dirigiu a Ilustração Brasileira. O escritor gaúcho apoiou e publicou muitos novos autores, como Carlos Drummond de Andrade (que reconheceu em Alvaro sua maior influência literária, nos anos de formação, entre os escritores brasileiros).
 
Para Todos é um primor gráfico, artístico e literário. As capas eram desenhadas pelo grande caricaturista e artista plástico J. Carlos, também diretor de Para Todos e parceiro de Alvaro durante muitos anos.
Alvaro Moreyra coloca na publicação seu grande talento de escritor e poeta. Era homem sensível, dotado de rica e variada cultura e, acima de tudo, um raro humanista. Para Todos foi um espaço democrático que buscava um enfoque contemporâneo da cultura e das ideias que surgiam a reboque das grandes transformações que o mundo experimentava. Admirado por escritores como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Manuel Bandeira e tantos outros, foi um intelectual exemplar na humildade, na solidariedade e no respeito às pessoas.


Na página de abertura que escrevia em Para Todos, vamos encontrar a mostra de seu texto belo e único. Como neste, publicado na edição de 05 de março de 1927 (mantenho a grafia):

Para que título?

Sempre que eu vou ao cáes despedir-me de alguma amiga ou de algum amigo em viagem para a Europa, outras pessoas que foram lá fazer a mesma coisa têm o costume de atirar palmadas amáveis nas minhas costas e dizer:
- Que vontade de ir também, não?
Eis ahi o que eu chamo um máo costume...


Era um cigarro lindo. Accendi-o. E 
como ia passando um cordão, puz
o cigarro no cinzeiro e fui ouvir a
cantiga que subira pela janella.
Quando voltei, o cigarro, sósinho,
tinha acabado. Restava um esque-
leto de cinza.
Tenho conhecido muita gente as-
sim.

Um autor, deante de uma mulher
que o admira, tem que ser sempre
um autor.
Mas, ás vezes, não sabe de que...

Adão. Que popularidade!...

Quando penso em mim e tiro cá
de dentro as memorias da minha
vida, todas ellas são bonecas e bo-
necos ... Nenhuma paysagem fi-
cou, de tantas por onde passei. A
natureza propriamente dita não me
interessa...

Em certos dias, ao folhear e ler essas revistas, nelas encontro o espírito e o encanto de um tempo que, perdido embora, continua vivo nas suas páginas.

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Fotos das capas das revistas: J. Finatto. A de Alvaro Moreyra foi feita a partir de fotografia do escritor publicada na Para Todos de 19 de março de 1927.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Outono, outonos

Jorge Adelar Finatto







































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Fotos: J. Finatto


segunda-feira, 31 de maio de 2010

O sentido do inefável

Jorge Adelar Finatto


Um pouco sol, um pouco nuvem. Tem dias assim. Intervalo entre sonho e realidade. Uma saudade remota e vaga acende dentro de mim. De que estarei me recordando? Não sei. Há algo que não se revela. Um mundo escondido. Um tempo de borboletas e flores na janela, numa cidade invisível. O sentimento do inefável anda sempre comigo. A melancolia é o sol quando cai atrás da montanha ou nuvem. Talvez venha de outra existência, antes da minha, a obscura lembrança que me acompanha. De um tempo não vivido. Essa memória sem face pode estar, quem sabe, no tempo futuro, nas coisas que estão por acontecer. Que venha, pois, esse mundo novo, com sua luz da manhã,  suas cálidas revelações, sua ventura.

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Foto: J.Finatto