segunda-feira, 14 de junho de 2010

Alberta de Montecalvino

Jorge Adelar Finatto


Veneza é o sonho de toda Colombina. Eu passei a vida em Passo dos Ausentes. O que é esse lugar? Um território perdido no vento. A neblina, o frio e a chuva povoam a cidade o ano inteiro. Habito com amargura e ironia esta estação de fim de mundo.

Casei-me aos 16 anos com Dom Alberto de Montecalvino, o Solitário da Biblioteca. Na época ele contava 69 anos. Desde aquele quando, passei a viver neste austero castelo de basalto e vidro. Hoje tenho 70 anos, sou deveras viúva e, às vezes, me perco nos salões da memória. As intermitências.

Daqui de cima, na larga janela da biblioteca, avisto o Contraforte dos Capuchinhos. Gosto muito dessa visão porque por ali é que se vai embora de Passo dos Ausentes. Mas nunca passei naquela estrada. Dom Alberto me pediu que jamais o fizesse. Os medos. Atendi o bom homem. Passaram-se os anos.

O muito amado do meu coração é Pedrolino. Dom Alberto sempre soube, suportou, era como um pai pra mim. O meigo Pedrolino. Amoroso e fiel. Seu amor é casto e resignado. Tem as delicadezas.

Arlequim é o senhor das labaredas. Inconstante e fútil. Nunca vem ao meu coração. Tem meu corpo, jamais minha alma. Com ele muito me rio, é engraçado, leviano. Incapaz de amar alguém além de si mesmo. Não tem sentimento.

O corpo tem fome e a fome seus apetites. Arlequim é malicioso, egoísta, por isso sabe agradar quando quer. Pedrolino é terno, quase um menino, vai direto ao assunto. Não conhece as sutilezas.

Quem pudera reunir, na mesma pessoa, as gratas virtudes. O mundo humano foi bordado imperfeito, eu sei. Tal felicidade ninguém merece.

Ambos os dois, Arlequim, o devasso, e Pedrolino, o amado, são a minha devoção. Cada qual no seu momento. Sou a Senhora da Biblioteca. Viúva mui constante em negras vestes de luto. Os respeitos a Dom Alberto. Tenho a minha idade. Cultivo as devoções, no discreto.

Não me julguem tão depressa. Poupem-me da vossa moral de almanaque. De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses. Eu vivo os enquantos.

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Foto: J.Finatto
Alberta, Colombina

domingo, 13 de junho de 2010

O escultor sem memória e sem nome

Jorge Adelar Finatto


Aqui em Passo dos Ausentes existe um homem que vive na rua, perdeu a memória, não sabe quem é.  Atende por Antônio. Desconhece o lugar onde nasceu, quem eram seus pais, ignora se tem parentes ou amigos. Ele faz esculturas de madeira. As mãos são trêmulas. As roupas, muito velhas, mas vê-se que é caprichoso.

A madeira ele procura em restos de construções, praças e terrenos baldios. Nesse fim de semana de Dia dos Namorados, ele fez algumas imagens de Santo Antônio. O que mais admira no santo? A humildade. O escultor considera essa qualidade a mais importante.

Observando suas obras expostas na calçada, percebe-se que tem inventividade e talento. Seus dedos tecem delicadas formas sobre o pobre material. Eis que, no ar, vão aparecendo os contornos, os volumes, as cavidades. O que antes era lixo agora ganha expressão, sentido, beleza.

O escultor sem nome e sem memória é, em si, um mistério. Um olhar que se abre para uma janela solta no espaço. Ele não tem plano de saúde, casa, salário, família. Seus amigos mais próximos são os pardais nas árvores.

Esse artista não deixa de ser alguém que, apesar de tudo, carrega uma espécie de felicidade. Penso nos fantasmas que, muitas vezes, entram pela nossa casa e tomam assento na nossa vida. Penso no quanto a lucidez pode ser dura e triste. Penso nas vezes em que queremos apenas esquecer. Porque há um peso insuportável nisso tudo, principalmente quando lembramos que somos só um sopro, um descuido, um até breve. Um fragmento na memória desmemoriada do tempo.

Por um momento tive inveja do escultor sem memória e sem nome.

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Foto: J. Finatto.
Da série: visite Passo dos Ausentes antes que acabe.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Esplendor americano

Jorge Adelar Finatto


Harvey Pekar ama o jazz e histórias em quadrinhos. Mora em Cleveland, Ohio, nos Estados Unidos. Trabalha como arquivista no hospital da cidade. Abandonou os estudos por falta de paciência e vocação. Leva uma vida monótona e muito solitária, após dois casamentos desfeitos. O apartamento onde vive só não é mais caótico por falta de espaço. Por todo lado, discos, livros e revistas que coleciona.

Tem um amigo que desenha quadrinhos muito bem, Robert Crumb, o mesmo que, anos mais tarde, se tornará uma celebridade internacional no universo dos gibis. Um belo dia, Harvey resolve começar a escrever para quadrinhos. Com uma particularidade: contará as histórias de sua própria existência, falará da vida real. Pessoas de suas relações, família, amigos  e colegas de hospital serão personagens, assim como ele. Robert Crumb, já então famoso, gosta dos textos e faz os primeiros desenhos. Daí nasce a série de revistas American Splendor (Esplendor americano), em 1976, que vira sucesso e se transforma numa publicação cult. O êxito o leva a participar várias vezes do talk show de David Letterman , com o qual  trava diálogos ríspidos em pleno ar.

Pekar, no entanto, diz que, apesar do sucesso, não chega a ganhar o suficiente para largar o emprego de arquivista. Na verdade, não abandonará essa profissão, não apenas pela questão financeira, mas porque aquele ambiente lhe dá sustentação emocional, é uma espécie de âncora. No hospital, estão seus principais amigos. Ali permanece até aposentar-se.

O filme American Splendor (2003), que no Brasil foi lançado com o título de Anti-herói americano, conta essa história (pode ser encontrado em dvd). Além dos atores principais (Paul Giamatti, no papel de Pekar, e Hope Davis, interpretando sua mulher, Joyce Brabner, com quem, enfim,  faz um bom casamento), o próprio Harvey Pekar aparece em várias cenas intercaladas, contando detalhes de sua trajetória, além de figurar como narrador. O filme, escrito e dirigido por Shari Springer Berman e Robert Pulcini, recebeu o Prêmio do Grande Júri do Festival de Filmes Sundance e o Prêmio dos Críticos do Festival de Cannes, ambos em 2003.

Esplendor americano é a visão irônica, às vezes amarga, às vezes perplexa, sempre humana, do homem comum que luta para sobreviver enquanto procura sentidos para a vida, no centro da realidade. Nada tem a ver com o herói clássico, com a imagem idealizada, com o elogio da civilização tecnológica e vencedora. Nos textos de Pekar, os perdedores (losers) - assim considerados dentro de critérios estreitamente vinculados a dinheiro e posição social -, têm voz e vez.

Pekar é um sujeito introspectivo, tímido, deprimido,  obsessivo, desses que ruminam os detalhes do dia-a-dia, buscando compreender um pouco as coisas dentro e fora de si. No seu entender, "a vida comum é bastante complexa". Não faltam humor e esperança, ainda que a realidade seja dura.

Pratica uma espécie de investigação filosófica à flor da pele , dentro do único cenário possível: a vida real. Lá pelas tantas, se vê diante de um câncer, que o leva inicialmente ao desespero, depois ao tratamento e, por fim, à cura, com a inestimável ajuda de sua mulher. Eles formam uma família com a filha adotiva.

Trata-se de um filme brilhante, muito bem construído. Revela  os caminhos de pessoas como nós, que querem encontrar razões de viver, formar uma família, ter amigos e um trabalho, que acreditam que a vida vale a pena, apesar de tudo.

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Foto: Harvey Pekar. Fonte: site The sound of young America.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A fala de Pedrolino

Jorge Adelar Finatto


Pertenço à ordem dos amorosos sem camélia. Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os quase.  Os que saíram cedo da festa.

A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é  um lugar de barbaridades.  Dor, dores.

Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu. O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O que eu fui.

Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar. Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão. Bailei no ar como folha de plátano, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama. Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim.

As iluminações. Passamos a frequentar a Praça da Ausência, nas tardes amarelas daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três noites.

Alberta meu sentimento. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o em algum lugar secreto, bem no fundo de mim. Aqueles eram dias de ora-veja.

A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar. Não canto outros amores, que não tive, e, se os tivesse, silenciaria.

Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim. Arlequim e seus guizos, sua palavra sem valia, seu alaúde. Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse. Bazófias. 

Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Explorador de musas, ladrão de amores. Blasona. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros, até o corpo de violino que nunca toquei. Eu sonhador.  Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei. 

Quem me visse, a face esculpida da dor.  Veio o inverno. Invernos. O vero solitário da rua triste. O que olha a vida da janela. O que quase foi feliz. O sem camélia.

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Imagem: Pierrô (Gilles). Autor: Antoine Watteau (1684-1721). Museu do Louvre, Paris. Fonte: Wikipédia.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Ferreira Gullar, Prêmio Camões 2010

Jorge Adelar Finatto


A atribuição do Prêmio Camões 2010 a Ferreira Gullar , em Lisboa, em 31 de maio passado, é o justo reconhecimento ao talento e, sobretudo, ao trabalho de uma vida deste poeta brasileiro. Gullar trouxe para a poesia uma visão de mundo rente à experiência do cotidiano, aos dramas, lutas e esperanças do homem comum. De certa forma, atualizou o verso dando-lhe a face do tempo, com sua linguagem altamente elaborada e, ao mesmo tempo, despojada.

Ferreira Gullar, 79 anos, nascido em São Luís, estado do Maranhão, teve a coragem e a lucidez de trazer ao seu canto vozes que até  então estavam caladas. Disse-nos coisas que, antes dele, viviam na sombra. Não fosse por sua arte e seu esforço esse mundo esquecido permaneceria  submerso. 

O Poema Sujo, livro que lançou em 1976, quando ainda vivia no exílio em Buenos Aires, durante a ditadura brasileira, justificaria, por si só, a  entrega desta e de outras honrarias. Se algum valor existe em premiações literárias, sempre discutíveis e tão exteriores ao ofício do escritor, é esse de, às vezes, lembrar com justiça daqueles que emprestaram voz a quem não a tem.

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Foto: Ferreira Gullar. Fonte: site oficial do poeta:

http://literal.terra.com.br/ferreira_gullar/

O Prêmio Camões foi instituído pelos governos de Portugal e Brasil e, desde 1989, vem sendo outorgado a escritores de língua portuguesa.

sábado, 5 de junho de 2010

Maestro Antonio Brasileiro, entre o Guaíba e Ipanema

Jorge Adelar Finatto


O coração do homem que nunca mais voltará resiste em silêncio. O navio avança nas águas do Guaíba em direção à Lagoa dos Patos. Jorge Jobim perde de vista o contorno de Porto Alegre. A figura melancólica recorta-se na memória da tarde de inverno. O grande mar de água doce remete Porto Alegre ao Atlântico. O Rio de Janeiro é o destino.

O tempo voa longe. No dia do futuro, alguém abre a gaveta. A claridade ilumina velhos papéis do homem que partiu. Eis ali o poeta e sua palavra.

O menino Antonio Carlos teve que reinventar o pai que perdeu aos oito anos. Acariciou suas mãos ausentes ao piano, nas antigas manhãs da casa de Ipanema.

O piano cantou a canção paterna: a nostalgia do sul, a saudade da família, dos amigos, o amor que se perdeu. Era preciso calar o esquecimento.

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Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim nasceu em 25 de janeiro de 1927 no Rio de Janeiro, filho de Nilza Brasileiro de Almeida Jobim, carioca, professora, e de Jorge de Oliveira Jobim, gaúcho de São Gabriel, poeta, bacharel em Direito que teve passagem pela carreira diplomática. Morreu em 8 de dezembro de 1994, nos Estados Unidos, para onde viajara a fim de se operar.

O pequeno Tom veio com os pais a Porto Alegre, onde Nilza e Jorge haviam se casado, para conhecer a família Jobim. Por pouco não ficaram morando nas margens do Guaíba. Porém, falou mais alto o desejo de Nilza de morar no Rio, onde estavam seus familiares. No meio materno foi criado o menino Tom-Tom, apelido dado pela única irmã, Helena Jobim.

A grande perda: Jorge morre aos 47 anos incompletos, deixando os dois filhos em tenra idade.

O guri criou-se entre as montanhas e o mar do Rio de Janeiro. Os longos passeios pela mata e pela praia, as pescarias, o contato com bichos e plantas fizeram nascer o interesse pelas coisas da natureza. Tornou-se não apenas seu profundo conhecedor como defensor.

Entre os professores que teve, está o alemão naturalizado brasileiro Hans-Joachim Koellreutter, que lhe ensinou a transposição das fronteiras que separam a música erudita da popular. Alguns mestres que o inspiraram: Debussy, Bach, Stravinsky, Villa-Lobos.

Amoroso das palavras, Tom Jobim foi um leitor dedicado e atento. Cultivou, entre tantos, João Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Nas letras e textos que escreveu, percebe-se o artesão meticuloso do verbo.

A obra de Tom Jobim constrói-se na esfera da genialidade. Soube como poucos aliar talento a muito trabalho. As composições que nos legou transcendem as ensolaradas cercanias de Ipanema: são patrimônio espiritual da humanidade. Águas de março, Garota de Ipanema, Lígia, Dindi, Samba de uma nota só, Chovendo na roseira, Samba do avião são apenas algumas das inesquecíveis canções que integram a produção do compositor.

Um dos criadores da Bossa Nova, o maestro foi também um dos principais nomes da música mundial no século XX.

A descoberta da obra jobiniana nos leva a um mundo de delicadezas e felicidade.

Amanhã, se tudo der certo, encontraremos o amor. Se a abóbada não ceder sobre nossas cabeças, se a Mata Atlântica - que o maestro tanto amou - não virar jardim calcinado, teremos quem sabe tempo para olhar a paisagem e sentir a vida.

Ouviremos, talvez, o canto do sabiá em setembro.

A música de Antonio Brasileiro nos transporta a esse mundo futuro e antecipa-nos a maravilha.

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Foto: capa do disco Urubu, 1975. Fonte: Acervo do Instituto Antonio Carlos Jobim: http://www.jobim.org