domingo, 11 de julho de 2010

Pão*

José Saramago

Terá o digníssimo fiscal de Badalona lido Os Miseráveis de Victor Hugo, ou pertence àquela parte da humanidade que crê que a vida se aprende nos códigos? A pergunta é obviamente retórica e, se a faço, é só para facilitar-me a entrada na matéria. Assim, o leitor ilustrado já ficou a saber que o dito fiscal poderia ser, com inteira justiça, uma das figuras que Victor Hugo plantou no seu livro, a de acusador público. O protagonista da história, Jean Valjean (soa-lhe este nome, senhor fiscal?), foi acusado de ter roubado (e roubou mesmo) um pão, crime que lhe custou quase uma vida de reclusão por via de sucessivas condenações motivadas por repetidas tentativas de fuga, mais logradas umas que outras. Jean Valjean sofria de uma enfermidade que ataca muito a população dos cárceres, a ânsia de liberdade. O livro é enorme, daqueles de que hoje se diz terem páginas a mais, e certamente não interessará ao senhor fiscal que provavelmente já não está em idade de o ler: Os Miseráveis são para ler na juventude, depois disso vem o cinismo e já são poucos os adultos que tenham paciência para interessar-se pela miséria e pelas desventuras de Jean Valjean. Com tudo isto, também pode suceder que eu esteja equivocado: talvez o senhor fiscal tenha lido mesmo Os Miseráveis… Se assim é, permita-me uma pergunta: como foi que ousou (se o verbo lhe parecer demasiado forte use qualquer dos equivalentes) pedir um ano e meio de prisão para o mendigo que em Badalona tentou roubar uma “baguette”, e digo tentou porque só conseguiu levar metade? Como foi? Será porque, em vez de um cérebro, tem no seu crânio, como único mobiliário, um código? Aclare-me, por favor, para que eu comece já a preparar a minha defesa se alguma vez vier a ter pela frente um exemplar da sua espécie.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 1º de fevereiro, 2009.
A grafia é a de Portugal. 

sexta-feira, 9 de julho de 2010

A invasão dos balões misteriosos

Jorge Adelar Finatto
 
 

 
Um balão vermelho singrou os ares de Passo dos Ausentes em junho de 2010. O fato provocou um alegre alvoroço na cidade. Não estamos acostumados com coisas voando por cima das nossas cabeças. Abordei o assunto no texto do dia 25 de junho daquele ano.

Porém, o que antes foi motivo de emoção e espanto, agora é razão de preocupação.

Outros balões, de cores variadas, cruzam nos últimos tempos nosso espaço aéreo, vindos sabe Deus de onde. Demoram-se em voos circulares, sem a menor cerimônia, e depois desaparecem atrás do Contraforte dos Capuchinhos.
 
A aparição misteriosa dos aerostatos começa a causar apreensão, principalmente entre os voláteis, que transitam livremente pelas ruas, habitam as copas de árvores, sótãos, armários e telhados. Eles vivem aqui há trezentos anos sem ser incomodados.  Se descobertos por olhos indiscretos, seus dias entre nós estarão contados.

Palomar Boavista, astrônomo-mor, e Claudionor, o Anacoreta, foram convocados para explicar as possíveis razões das incômodas visitas, em reunião extraordinária da Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Geológica, Astronômica, Teatral e Antropofágica de Passo dos Ausentes, que tem na presidência Don Sigofredo de Alcantis, o filósofo guardião da nossa memória.

Somos uma cidade invisível a 1800 metros de altitude.  Condições atmosféricas intratáveis nos isolam do resto do mundo, desde que por aqui chegaram nossos antepassados, um grupo de índios guaranis e jesuítas que conseguiu fugir e sobreviver à destruição dos Sete Povos das Missões, levada a cabo por espanhóis e portugueses no século XVIII. Aquelas pessoas fundaram Passo dos Ausentes em 1759.

Lugar íngreme, difícil de sair e mais ainda de chegar, está situado no topo de imemoriais montanhas de rude basalto na Serra da Ausência.

O açoite implacável dos ventos nos fustiga o ano inteiro.

Vivemos nos Campos de Cima do Esquecimento. Não estamos no mapa do Rio Grande do Sul. Não existimos oficialmente. Tramita um processo desde o ano de 1805 junto aos órgãos da administração do Estado, no qual pedimos  o reconhecimento da nossa comunidade, com sua história e cultura, e  a inclusão nos mapas.

As respostas sempre foram evasivas. Dizem que não há provas concretas da existência desse lugar e, menos ainda, de que aqui vivem pessoas. Não fosse patético, seria cômico.

Nos tomam por seres imaginários. As duas expedições que vieram nos procurar, em 1936 e 1989, a mando do governo, perderam-se no caminho, desistiram e foram embora. O lugar é quase inacessível devido à acidentada topografia que envolve os paredões. Além das névoas eternas, as chuvas recorrentes e o frio intenso nos separam do mundo.


Claudionor e Palomar, após longa reunião, expuseram à assistência as duas prováveis explicações para os dirigíveis. Com voz grave e pausada, Palomar disse que a primeira hipótese é de que estamos sendo visitados por seres de outro planeta, que consideram Passo dos Ausentes a melhor porta de entrada na Terra, sem chamar atenção.

- A segunda, menos plausível, é que se trata de observadores aéreos do governo para nos localizar. Diante do fracasso das expedições terrestres no século passado, estariam enviando nova equipe para investigar.

Don Sigofredo de Alcantis pediu a palavra. Para ele, a primeira hipótese seria a menos perigosa.

- Se forem seres de outra esfera cósmica, não haverá  dificuldade, porque alguns esquisitos a mais por aqui não vão fazer diferença. Estamos habituados a toda sorte de estranhamento. Mas se for gente do governo querendo nos espionar, aí tudo de ruim pode acontecer. No dia em que o asfalto e a política chegarem a Passo dos Ausentes, será o nosso fim. A invisibilidade ainda é o melhor para nós.


O silêncio que se seguiu fez com que se ouvisse o forte rumor do vento nas folhas das altas palmeiras da Praça da Ausência.  Para espantar o frio e arrepios interiores, Mocita de la Vega serviu aos presentes seu licor de leite com noz-moscada. 

Não nos veem e não nos sentem. Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneom na estação de trem abandonada da cidade, executou Adios Nonino, de Astor Piazzolla. Com tanto sentimento que até mesmo Claudionor, o Anacoreta, não pôde evitar o brilho de uma lágrima.

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Texto publicado em 9 de julho, 2010.
Fotos: J. Finatto

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Mãos que tecem o amanhecer

Jorge Adelar Finatto


A porta de entrada na vida é sempre uma luminosa travessia. A primeira respiração de alguém é a respiração do primeiro homem e da primeira mulher.

A saída da existência é sempre a coisa mais triste.

Existem pessoas que, sendo o que são e vivendo como vivem, nos inspiram e nos dão força para continuar no caminho. É gente que com um gesto de compreensão nos diz que a vida vale a pena. 

Passam o sentimento de que cada ser humano é importante para humanizar o giro das engrenagens dessa obscura geringonça na qual estamos metidos desde a hora em que abrimos os olhos de manhã até o instante em que adormecemos.

O mínimo que deveríamos fazer, nessa escuridão, é dar a mão uns aos outros. Não é isso que acontece. Mas há pessoas que têm o dom de nos mostrar que uma vida assim é possível. Ainda bem que elas existem.

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Foto: J.Finatto

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Poesia de Vinicius de Moraes na internet

Jorge Adelar Finatto


Para os que admiram a obra de Vinicius de Moraes (1913 - 1980) - e não somos poucos neste vasto mundo -, eis que surge uma bela notícia: a sua poesia completa agora está disponível na internet para leitura e o acesso é livre.  O mérito da iniciativa é da Universidade de São Paulo, através da Brasiliana  Digital , e das pessoas que detêm os direitos autorais sobre a obra do poeta, que autorizaram a publicação no meio virtual.

Os quinze livros que tiveram textos e imagens digitalizados reúnem a produção poética do autor e são provenientes da biblioteca do bibliófilo José Mindlin.

A Brasiliana Digital integra o projeto Brasiliana USP, que reúne notável coleção de livros e documentos de e sobre o Brasil . O trabalho, de imenso valor cultural e social, está em permanente construção. A Brasiliana Digital parte da digitalização do acervo de José Mindlin, que ele construiu ao longo de 80 anos e doou, juntamente com sua família, à universidade , e se estende a outros acervos da USP. É uma documentação preciosa que começa a ser colocada na rede mundial de computadores, já contando com vários títulos. O endereço é: www.brasiliana.usp.br.

No dia 09 de julho completam-se 30 anos da morte de Vinicius, um dos grandes poetas da língua portuguesa. Também por isso, vem em boa hora a edição digital de tão importante obra.
 
Cumprimentos à USP e a todas as pessoas envolvidas nessa extraordinária iniciativa.

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Foto: Vinicius de Moraes. Divulgação. Fonte: O Estado de S. Paulo (www.estadao.com.br), edição de 23/6/2010.

sábado, 3 de julho de 2010

Cresce interesse pela poesia de Henrique do Valle

Jorge Adelar Finatto


Tenho recebido mensagens de pessoas interessadas em conhecer a vida e a obra do poeta Henrique do Valle. Na busca de informações, acabam encontrando o post que publiquei sobre Henrique, em 1º de fevereiro passado.

Recomendo a todos a leitura dos livros que ele publicou, editados pela Editora Movimento, de Porto Alegre.

Esse crescente interesse pela obra do Henrique é algo que me deixa muito feliz. Acredito que essa luz crescerá cada vez mais, ocupando o espaço que lhe cabe pela qualidade dos versos que deixou.

Falar da poesia do Henrique é também recordar um ser humano muito especial, que vivia numa outra dimensão, à margem da sociedade materialista. Não sei como explicar. A obra que ele escreveu até os 21 ou 22 anos, idade em que morreu, é mesmo impressionante. 

Guardo os textos que ele  deixou comigo no envelope antes de partir, no qual creio existem diversos inéditos. Tínhamos quase a mesma idade.   Atravessamos juntos a chuva e o frio do inverno de Porto Alegre. Às vezes acabamos em algum barzinho perdido, bebendo alguma coisa e conversando. Mas era talvez no silêncio onde mais nos encontrávamos.
 
O Henrique esteve no mundo por breve tempo, e o que deixou escrito veio de uma experiência que não cabia no curto tempo que ele viveu.
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Foto: Henrique do Valle. Fonte: contracapa do livro Do Lado de Fora, Editora Movimento, Porto Alegre, 1981.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

De mal en peor

Jorge Adelar Finatto

"Cuando Dios hizo la luz, 
 yo ya debía
 tres meses."

Um dos encantos na vida de quem sai a caminhar pelas ruas das cidades que visita é descobrir a maneira de ver  o mundo dos habitantes do lugar através de coisas como as inscrições feitas nos muros e paredes. Os famosos grafites. Em Porto Alegre, no mais das vezes, nada mais são do que poluição visual lançada no cenário urbano, agressivos, grotescos, sem sentido. Nem sempre é assim. Em Montevidéu, por exemplo, é diferente. É comum encontrarmos na capital do Uruguai inscrições com algum teor de filosofia, política, crítica social, poesia e até humor, como a que se vê acima.

Fundação José Saramago propõe Baltasar Garzón para Prêmio Nobel da Paz

 


Por estar envolvido na defesa dos Direitos Humanos e por nunca ter baixado a cabeça diante de nenhum estratagema e de nenhum poder, porque acreditou na justiça universal para as vítimas, em qualquer continente e em qualquer país.

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Notícia publicada ontem, 1º de julho, pela Fundação José Saramago em seu site:

http://www.josesaramago.org/

Foto: Baltasar Garzón e José Saramago, Lisboa, dezembro de 2008. Arquivo da FJS.