sábado, 24 de julho de 2010

Um mundo muito perigoso

Jorge Adelar Finatto

Deus andava por perto quando aconteceu. O cenário era de grande desolação em Canela, no amanhecer da quinta-feira, 22/7. Na noite anterior, em torno de 21h, um tornado, ciclone ou fenômeno parecido (o nome ainda é objeto de discussão pelos técnicos) se abateu sobre certas áreas da cidade. Durou entre um e dois minutos. O resultado foi devastador. Pinheiros, caneleiras e diversas outras árvores de grande porte, algumas centenárias, foram arrancadas do chão pela raiz, como se fossem pequenas plantas. Telhas, chaminés, calhas, letreiros, galhos, vasos e objetos de todo tipo foram arremessados pelo ar como cisco. Várias casas foram destruídas, postes de iluminação caíram. Nunca  tinha visto algo assim. Felizmente, não houve mortos.  Fiquei impressionado com a capacidade de reconstrução das pessoas. Homens e mulheres trabalharam duro. Em 24 horas muitas  das casas estavam sendo reerguidas e a paisagem de devastação começava a  desaparecer. O espírito de solidariedade tomou conta da região, havendo doação de alimentos, materiais de construção,  móveis, roupas, cobertores (o frio é intenso), e acolhimento a desabrigados. As cidades vizinhas, como Gramado, estão ajudando.

As pessoas com quem falo atribuem o fato às agressões contra o ambiente. Ninguém tem dúvida. O que mais será preciso, quantos desastres mais no mundo, para que governos, empresas e sociedades mudem o rumo da conversa e passem a administrar a economia para a vida e não para a morte?  O egoísmo e o consumo levados a extremos tornaram o mundo um lugar muito triste e perigoso. Precisamos urgentemente voltar a ser seres humanos, cidadãos razoáveis, ao invés de consumidores.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Camélias brancas

Jorge Adelar Finatto



Caminho numa praça cheia de silêncio e camélias brancas. O som do vento é um remorso percorrendo a cidade. A branca passagem do nevoeiro pelas ruas de Passo dos Ausentes. Sobre a mesa, há  um vaso com flores de inverno. Por isso, quando retorno pra casa, penduro o chapéu e o bornal ao lado da porta.  Porque há dias de procurar flores na neblina.

Seis são as cadeiras em volta da mesa.  Cinco são os fantasmas em volta de mim. O relógio não cessa de fazer seus giros. As horas caem  silenciosas no chão como as camélias na praça. A frágil e fugidia beleza.


Quem salvará das geleiras e dos ventos eternos os nossos corações? O frio excessivo faz ranger as paredes de madeira.  Sob o grosso cobertor da solidão, fecho os olhos na cadeira de balanço. Caminho nos pátios e sótãos do oblívio. Quatro vezes saí de madrugada até a esquina para encontrar os camaradas. Eles tinham partido. Quatro noites sentei perto da janela pra respirar melhor. Quatro noites passei em claro esperando amanhecer.


Onde estão os postais da primavera  para iluminar o inverno? Onde foi que enterraram aquelas manhãs?  Não quero afundar com as coisas que desapareceram.

O vento canta na trompa de nácar do búzio.

Caminho entre as camélias brancas caídas no chão da praça.

Invento claridades.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A matéria de que somos feitos

Jorge Adelar Finatto

A fragilidade da vida humana é comovente. A biblioteca nos dá a ilusão do infinito. A matéria de que são feitos os livros é mais duradoura do que aquela de que são feitas as pessoas. Tenho na minha pequena biblioteca alguns livros com mais de cem anos. Estão vivos como quando nasceram, já amarelecidos pelo tempo, mas cumprem a função para a qual foram criados. Há livros com vários séculos nas bibliotecas do mundo. Não conheço e nem ouvi falar de gente que tenha vivido 150 anos, com exceção de certos relatos escritos, como na Bíblia. Os livros e suas histórias são, perto de nós, sempiternos. A leitura nos dá um sentimento de participação na eternidade. Raskólnikov viverá para sempre nas páginas de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. Fernando Pessoa morreu aos 47 anos em Lisboa, em 1935, mas os poemas que escreveu durarão até o fim (improvável) dos tempos. O gênero humano é eterno, mas o indivíduo é mortal. A doce ilusão dos livros é parecida com aquele olhar através da janela do avião nos minutos que antecedem o pouso no país distante. Quando estamos em movimento, sobrevoando palavras ou cidades, a vida está acontecendo e nada de ruim poderá nos suceder.
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terça-feira, 20 de julho de 2010

Fernando Ribeiro

Jorge Adelar Finatto


Existem artistas que vivem encobertos por uma espessa e injusta nuvem de esquecimento. Isso acontece em todas as artes, da música à literatura. O mercado de arte é regido por valores comerciais e costuma ser perverso com quem não se adapta às suas demandas. A qualidade nem sempre é a referência mais importante. Há exceções, sim. 

Contudo, o criador que fica quieto no seu canto, trabalhando sério, procurando fazer o seu melhor, distante de estratégias de marketing, tem grande chance de permanecer à margem, esquecido. Fico pensando quantos Van Goghs andaram pelo mundo sem ser notados. Quantos Villa-Lobos, quantas Coras Coralinas (essa que deu outra face à poesia em língua portuguesa e continua pouco conhecida).

Me lembro, também, de Fernando Ribeiro, excelente músico e compositor, que alcançou algum reconhecimento na década de 1970 em Porto Alegre. Dono de uma voz cálida e de um violão contido e harmonioso, fez belas parcerias com o letrista Arnaldo Sisson. Está muito esquecido. Seu disco Em Mar Aberto (1976) é uma obra de grande qualidade que precisa ser reeditada. Fernando morreu aos 56 anos, em 2006, ainda jovem para os padrões de hoje.

Penso nos que estão nascendo agora e nos que virão depois. A memória cultural não pode perder-se. É preciso levar adiante essas informações e registros. A isto chamamos tradição: a passagem do bastão pelos que nasceram antes aos que vêm logo adiante.

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Foto: capa do disco Em Mar Aberto, EMI, Fernando Ribeiro, 1976.

Um velho relógio

Jorge Adelar Finatto

Uma amiga olhou o meu relógio de pulso e comentou: lindo esse Cartier. Esclareci logo que não, não era um Cartier. Era apenas o meu velho e bom relógio, comprado por cerca de cem reais, ou cinquenta euros, numa loja aqui mesmo de Porto Alegre, em duas prestações, há alguns anos. Notei que minha declaração causou um certo desalento. O que vou fazer se não frequento o mundo das coisas caras? Não tenho interesse, nem vocação e nem recursos pra isso. Prefiro as coisas raras, como um bom livro, uma boa conversa, uma boa amizade, dessas que não se contam em moeda, mas em afeto, apreço.

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O meu velho relógio atravessou comigo longas noites no deserto. Juntos caminhamos em belas tardes de outono. Já nos perdemos no mar, num pequeno barco a vela. Temos visto coisas duras nesse mundo. Gente boa que não para de morrer e gente ruim que morre de velha. Cinzentas criaturas carregam pedra no lugar da alma. 

Meu relógio e eu temos em comum a urgência de viver  o tempo das pequenas coisas.  As revelações do farelo.

sábado, 17 de julho de 2010

Presença

Jorge Adelar Finatto



Me tens aqui lutando
com secas palavras
para iluminar a treva
que nos reúne
em torno do lume
do poema

me tens aqui solidário
beirando a primavera
beirando os trintanos
com raros bens materiais
e nenhum privilégio
de credo ou classe

às vezes louco
às vezes patético
com poucos seres humanos
pra repartir
alguma coisa

me tens aqui poeta
num país injusto e sofrido
caminhando à beira de um rio

a sujeira flutua nas águas
os pobres equilibram-se
em perigosas palafitas

me tens aqui poeta lírico
cada dia mais lúcido

como a primavera
eu invado de repente
a sala adormecida
o coração desabitado

não tenho uma saída
para os dramas
que andam por aí
sequer possuo soluções
plausíveis
para os atrapalhos
cotidianos

o que posso oferecer
e ora ofereço
é essa canção discreta
para dissipar a sombra

um braçada de flores
no inverno

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

Foto: J. Finatto

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Não escrevemos o primeiro verso

Jorge Adelar Finatto


Não escrevemos o primeiro verso
há tudo por ser dito
mas sou teimoso
insisto no jogo

quando desanimares pensa em mim
que não abandonei as ferramentas
que não dei um verso para a eternidade

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Poema do livro Claridade. Edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento. Porto Alegre, 1983.

Foto: J. Finatto