quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Memória na câmara escura (2)

Frederico Vasconcelos


O Hermeto e o Sivuca (conheci pessoalmente o último) são dois gigantes. O que me impressiona em ambos é o fato de terem, em comum, nascido em região pobre, do Nordeste, ambos na infância sem condições de ter um instrumento ou um rádio. Salvo erro meu, os dois ouviam música a partir da janela do vizinho. Não sei de onde vinha tanta musicalidade. Meu pai fazia um bico como discotecário da Rádio Jornal do Comércio, no Recife, nos finais de semana. Eu ia com ele. Conheci figuras incríveis, como Luiz Gonzaga, Sílvio Caldas, Bob Nelson, entre outros. Sivuca entrava, pedia para papai colocar um disco. Ele ouvia, não tirava o instrumento da mala. Em seguida, entrava no auditório e tocava melhor do que o original. Toco piano - também amador - mas na juventude dei canjas em boates, restaurantes e "inferninhos" no Recife, locais que nós frequentávamos para ver e ouvir os profissionais, tentar "copiar" alguma coisa. É meu segundo teclado, como costumo dizer. Lembro-me de ter ouvido o Hermeto, com seu trio, numa das idas ao Recife, acompanhando uma cantora famosa. Detalhe: naquela época, ele tinha cabelo bem curto...


Toquei com um grupo de estudantes num baile (final de rodeio, lá chamavam de "vaquejada") na terra natal de Sivuca, na Paraíba. A noite toda, um homem simples, talvez um peão, ficou ao lado do piano, calado, desconfiado, vendo tudo que eu fazia. Cismado, como dizem lá. Pois bem, num intervalo, com forte sotaque, ele perguntou: "Você conhece Sivuca?". Respondi: "Conheço, para mim é o maior músico do mundo". O homem abriu um sorriso e até hoje não sei o que ele quis dizer com o seguinte comentário: "Ainda bem que você pensa assim..."

A Rádio Jornal do Comércio, no Recife, era uma potência, na época (muitos anos depois, já em São Paulo, comprei um rádio de ondas curtas, Zenith, e o manual indicava apenas duas rádios brasileiras: a Tupi, de SP, e a Rádio Jornal do Comercio, do Recife). O grupo Pessoa de Queiroz, usineiros, investiu na formação de uma orquestra, "importando" músicos e instrumentos da Europa. Pois bem, trouxeram um órgão eletrônico e ninguém sabia tocar. Sivuca começou a mexer no instrumento, à tarde. À noite, inaugurou o órgão no programa de auditório.

Eu vi essa cena: Sivuca dando "dicas" a um flautista da orquestra da TV, sobre como explorar melhor a embocadura...

Generoso, ele me viu "batucando" no piano do estúdio. Disse-me que eu deveria estudar.

Optei pelo jornalismo. O outro teclado.

Há mais de um ano, tenho aulas semanais com Cláudio Soares,  excelente professor de piano. Como leio mal e porcamente, e toco mais de ouvido, fazemos "rearranjos" de músicas de jazz e MPB. Como não tenho mais tempo para me dedicar à leitura, e ele é compreensivo e talentoso, eu fico a maior parte do tempo no teclado. E ele escreve - e reescreve - as pautas.

Semanas atrás, perdi no metrô um caderno com um ano de arranjos. Ainda bem que ele copiou a maior parte das peças.

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Este texto de Frederico Vasconcelos, como o anterior (post de  31 de julho), resulta de uma troca de e-mails  entre mim  e o jornalista. Entendendo que essas histórias, pelo  valor cultural  e pela forma como são contadas pelo autor, devem chegar a outras pessoas, pedi autorização para publicá-las. De forma generosa, Frederico concordou, esclarecendo que não pretende fazer história com episódios e observações pessoais. Estou certo de que os leitores sentirão o mesmo encanto  que sinto quando leio esses  belos relatos. J. Finatto

Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
E-mail: fvasconc@folhasp.com.br
Fotos: Hermeto Pascoal (www.hermetopascoal.com.br) e Sivuca (www.sivuca.com.br)

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Post scriptum

Jorge Adelar Finatto

Foi um dia difícil aquele 31 de agosto de 2009. De madrugada, em torno de uma e meia da manhã, li, quase por acaso, o texto intitulado Despedida, em que José Saramago (falecido no último dia 18 de junho, aos 87 anos) declarou que encerrava ali seu blog O Caderno de Saramago. Motivo declarado: precisava de tempo para escrever um novo livro.

A notícia era uma tristeza.

Divulguei a informação no site Judiciário e Sociedade (na época, não tinha ainda blogue), tão logo publicada na rede. Até onde sei, o autor português era o único Prêmio Nobel de Literatura a manter um blogue. Isso revela a atitude participante, corajosa e humilde de um escritor consagrado que vinha cotidianamente à internet compartilhar suas opiniões, inquietações, esperanças, sentimentos e valores (penso que cada post pode ser um ato de criação literária e, no caso de Saramago, com certeza era) com leitores do mundo inteiro, em tempo real.

Era uma exposição rara, sabendo-se que o mundo virtual não é exatamente um território fraterno e transparente, havendo de tudo para qualquer gosto, principalmente para o mau gosto.

Pois Saramago deu-nos o exemplo, veio ao encontro de todos.

Escreveu belas e importantes palavras durante o tempo em que manteve o blogue, iniciado em setembro de 2008. Tornou a web mais sensível, inteligente e, sobretudo, mais humana. Ajudou a dar forma mais digna e mais viva ao mundo virtual.

No mesmo texto em que se despedia, acrescentou um PS, no qual deixava uma fresta aberta. Dizia que, se sentisse necessidade de comentar ou opinar sobre algo, poderia eventualmente voltar ao blogue.

Aqueles leitores que, como eu, levaram fé no PS foram recompensados: leram mais alguns raros posts que ele colocou no ar. Mas nunca mais voltou a ser o que era, aquela presença quase diária na vida de muita gente. Acredito que a saúde foi um dos principais motivos que determinaram o afastamento.

A internet ainda é um ambiente muito pobre em cultura e humanismo. É um lugar inseguro, onde sobram maldades, loucuras, vaidades e faltam exemplos, conteúdos, generosidades. Por isso, a presença de um Saramago foi tão fundamental quanto enriquecedora.

Sempre fui freguês do Caderno. Os textos foram reunidos depois em dois livros. Mas confesso a falta que sinto do blogueiro Saramago. O escritor, contudo, está muito vivo nas obras, na palavra partilhada.

Recomendo a visita ao site da Fundação José Saramago e, nele, um passeio pelo Caderno em seu ambiente natural. Certamente, é uma das melhores coisas que existem na internet e já faz parte de sua história.
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Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
 O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/
Foto: Saramago. Fonte: FJS

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Com licença, realidade: chegou a hora da ilusão

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Estou em Gramado desde domingo à noite. Vim na minha motocicleta 250, calça Lee, manta de lã amarela, jaqueta de couro, bota. Anos 70. Vim no segredo do codinome. O alaúde atravessado nas costas. Trouxe no bornal um livro de contos de Juan Carlos Onetti, o escritor uruguaio (filho de mãe brasileira), e a Serpente Encantadora, reunião das colunas do Telmo Martino, publicadas no Jornal da Tarde, de São Paulo, entre 1975/85.

Alberta de Montecalvino me mandou um e-mail (gostava mais quando ela escrevia cartas), pedindo para eu escrever impressões sobre o Festival de Cinema de Gramado. Não posso recusar nada à grande dama de Passo dos Ausentes. Devo-lhe coisas, isso e muitas mais. Sou devoto da Senhora da Biblioteca.


Nada entendo da arte cinematográfica. Sou apenas alguém que vai ao cinema uma vez por semana. Quando me comovo, eu choro. Sentimental.

Faço o que posso pra esconder dos outros meus estados espirituais. Nem sempre consigo.

A vulgaridade é uma coisa que me constrange.

Não me interesso por Fellini ou Charles Chaplin. Mas minha vida não seria a mesma sem Amarcord e Carlitos.

O festival começa oficialmente na próxima sexta-feira, 6 de agosto, e vai até 14. Mas a cidade já está no clima.  Artistas , imprensa e cinéfilos chegam, o cenário está montado. Nos cafés e lobbys de hotéis o assunto é a tela grande. Curtas, longas, trilhas, direção, roteiros, atores.

O frio é de doer.

Estou num hotel ao lado da antiga igreja da cidade . Meu quarto dá para um bosque de pinheiros. Há pouco vi uma arara azul. Dizem que vai nevar.

Na chegada, não distante da entrada de Gramado, existe um motel ao lado de um pequeno cemitério, na beira da estrada. Morte e vida lado a lado, nuas. Ó contradição.

Quem diz que a ficção exagera nas cores é porque ainda não reparou bem na realidade. Enfim, o que quero dizer é que há gosto e nervos pra tudo no mundo.

Só se muda alguma coisa nessa vida com alegria.


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Fotos: J. Finatto

Saiba mais sobre O Cavaleiro da Bandana Escarlate nos posts de 27 de abril  e 29 de julho de 2010.

domingo, 1 de agosto de 2010

O astrônomo do farelo

Jorge Adelar Finatto




O astrônomo do farelo procura a estrela perdida.

Entre o sagrado e o profano da vida pequena, ele busca beleza e arte nas coisas mais simples. Como o explorador de cavernas que, na escuridão e na umidade,  tateia a fresta de luz que o conduz à escondida gruta, onde ainda brilha a primeira claridade do mundo.

Um dia - sempre tem um dia - o astrônomo do farelo perdeu a  sua estrela. Era uma pequena estrela azul e brilhante. Era uma estrela risonha, íntima e calma que habitava sua alma.

A estrela. Quando a tocava com a ponta dos dedos, muito suavemente, ouvia a doce e misteriosa música que vinha do seu interior. Um dia, de repente, ela desapareceu.

Por ela, ele se tornou um homem calado e triste.  Um oco cresceu no seu coração. Ele ficou assim, torto no mundo. Passa as noites olhando o céu. Um homem ferido a bordo de uma louca procura.

O homem que perdeu a sua estrela.
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Foto: J. Finatto

sábado, 31 de julho de 2010

Memória na câmara escura

Frederico Vasconcelos


Belas fotos e belo texto.

No início da carreira, eu gostava muito de fotografar, embora simples amador sem pretensões. Ficava horas no laboratório, na câmara escura, ampliando e cortando fotos. Cartier-Bresson de meia tigela, minha preferência era por fotos em preto e branco.

Tempos depois, para não ser conivente com uma injustiça numa das redações, coloquei o cargo à disposição, o que me custou muito tempo de dificuldades, fora do mercado. Mas não me arrependo.

Fui obrigado, então, a vender meu equipamento de fotógrafo amador. Nunca mais adquiri outro. Isso talvez explique por que visitei mais de vinte países e nunca fiz fotos para mim. Tenho algumas publicadas no caderno de Turismo da Folha, mas foram feitas com equipamento da casa.

Na profissão, aprendi a valorizar o trabalho do repórter-fotográfico. Costumo dizer que o responsável pelos textos pode, a qualquer momento, recuperar informações, refazer relatos. O homem da foto tem apenas aquele momento único para capturar (se bem que as máquinas modernas permitem fazer sequências de flagrantes em grande velocidade; suponho que muitas vezes a grande foto, aquela que vai para as primeiras páginas, é descoberta depois, quem sabe, não percebida anteriormente pelo olho do artista).

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Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
Foto: Frederico Vasconcelos, Folha de São Paulo

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Bodas de Latão, Hermeto Pascoal e Aline Morena

Jorge Adelar Finatto


De menino eu queria ser marinheiro. Mas depois eu fora é músico, uma orquestra inteira. A música é um jeito da gente trazer o mundo dentro de si, e todos os barcos e todas as águas junto. Se alguém procura saber, no hoje, tão longe do menino que eu fui, que Villa-Lobos eu quisera ser, neste agora tão medonho da vida e do mundo, então eu dizia, sem remorso nem bazófia: quisera ser Hermeto Pascoal. Não medra esconso esse meu dizer. Quero os versos e os acordes do alvoroço. O amanhecer do humano esforço. Grande Sertão e Canudos. Algaravia de sons. Tudo voa e no ar se encontra. Os arranjos da arte e do engenho que o artista faz. Não faço enciclopédia, digo apenas o que sinto, e já não é pouco nessa quirera. Eu quero os  espantos. O cheiro da flor da laranjeira de manhã.

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Hermeto Pascoal e Aline Morena comemoram sete anos de convivência e trabalho com o lançamento do cd Bodas de Latão. É um belo momento de criação musical do alagoano Pascoal e da gaúcha Aline. Tomara que o show que estão apresentando, que leva o nome do disco, venha ainda este ano ao Rio Grande do Sul. Em 2006 eles lançaram o cd e  o dvd Chimarrão com Rapadura, sendo que o dvd foi selecionado entre os dez melhores do mundo em 2007.

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Foto: Hermeto Pascoal e Aline Morena

Composição

Jorge Adelar Finatto


O anjo tombou morto
na terra alheia de uma tela

Van Gogh imagina Gauguin
asfixiando o anjo no jardim
com as mãos queimadas de sol

Dali encoberta a face de granito
com o manto de brilhantes
os brilhantes despojados do anjo

Di Cavalcanti entristece: era uma mulata
o anjo assassinado nas cores do jardim?

Portinari retira-se melancólico
Picasso adentra a gruta de um olho

A noite cai pesada de remorso

Nesse instante todos dão-se as mãos
e cantam a canção predileta do anjo
em volta do corpo estendido no chão

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

Foto: J. Finatto