segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Alberta de Montecalvino

Jorge Adelar Finatto



Veneza é o sonho de toda Colombina. Eu passei a vida em Passo dos Ausentes. O que é esse lugar? Um território perdido no vento. A neblina, o frio e a chuva povoam a cidade o ano inteiro. Habito com amargura e ironia esta estação de fim de mundo.

Casei-me aos 16 anos com Dom Alberto de Montecalvino, o Solitário da Biblioteca. Na época ele contava 69 anos. Desde aquele quando, passei a viver neste austero castelo de basalto e vidro. Hoje tenho 70 anos, sou deveras viúva e, às vezes, me perco nos salões da memória. As intermitências.

Daqui de cima, na larga janela da biblioteca, avisto o Contraforte dos Capuchinhos. Gosto muito dessa visão porque por ali é que se vai embora de Passo dos Ausentes. Mas nunca passei naquela estrada. Dom Alberto me pediu que jamais o fizesse. Os medos. Atendi o bom homem. Passaram-se os anos.

O muito amado do meu coração é Pedrolino. Dom Alberto sempre soube, suportou, era como um pai pra mim. O meigo Pedrolino. Amoroso e fiel. Seu amor é casto e resignado. Tem as delicadezas.

Arlequim é o senhor das labaredas. Inconstante e fútil. Nunca vem ao meu coração. Tem meu corpo, jamais minha alma. Com ele muito me rio, é engraçado, leviano. Incapaz de amar alguém além de si mesmo. Não tem sentimento.

O corpo tem fome e a fome seus apetites. Arlequim é malicioso, egoísta, por isso sabe agradar quando quer. Pedrolino é terno, quase um menino, vai direto ao assunto. Não conhece as sutilezas.

Quem pudera reunir, na mesma pessoa, as gratas virtudes. O mundo humano foi bordado imperfeito, eu sei. Tal felicidade ninguém merece.

Ambos os dois, Arlequim, o devasso, e Pedrolino, o amado, são a minha devoção. Cada qual no seu momento. Sou a Senhora da Biblioteca. Viúva mui constante em negras vestes de luto. Os respeitos a Dom Alberto. Tenho a minha idade. Cultivo as devoções, no discreto.

Não me julguem tão depressa. Poupem-me da vossa moral de almanaque. De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses. Eu vivo os enquantos.

_______
Foto: J.Finatto
Texto publicado no blog em 14/6/10.

Baltasar Garzón espera condenação por investigação de crimes do franquismo amnistiados*


O juiz espanhol Baltasar Garzón afirmou-se hoje convicto de que está a ser preparada uma sentença condenatória contra si, depois ter sido processado por prevaricação por querer investigar os crimes do franquismo amnistiados.

Garzón, 55 anos, disse no entanto que não se arrepende da iniciativa que tomou, apesar da mesma ter levado à suspensão das suas funções como magistrado da Audiência Nacional a 14 de Maio passado.

“O que quero é que esta situação transitória termine e que haja um resultado qualquer que ele seja, mas se me perguntar qual pode ser, claramente penso que o julgamento está já estabelecido e pré-determinado”, disse aos jornalistas, à margem do Estoril Film Festival, iniciativa na qual participa como convidado.

Questionado sobre qual será a decisão da justiça espanhola, respondeu: “Nesta altura é difícil pensar que não é uma sentença condenatória”.

“Não se chegaria até aqui se não fosse para um resultado desses”, considerou o juiz que se tornou conhecido por ter conseguido em 1998 a detenção do ex-ditador chileno Augusto Pinochet e lutou também contra a impunidade de crimes da ditadura argentina.

“Não posso arrepender-me daquilo que decidi em função da atividade judicial com análise das resoluções e das leis aplicadas ao caso, interpretando-as com o objetivo de investigar esse crimes e proteger as vítimas”, afirmou, sublinhando que atuou com base em queixas das associações de memória histórica e de vítimas particulares e seguindo o procedimento que tinha tomado em casos similares.

Baltasar Garzón defendeu que é importante que a investigação se faça e lembrou que as queixas contra si partiram de grupos da extrema-direita espanhola.

“Essa investigação é necessária, é conveniente e pode ser defendida legalmente”, disse, acrescentando que, com base na lei interna (espanhola) e na própria legislação internacional sobre direitos humanos e em resoluções dos tribunais internacionais, “é verdadeiramente difícil assumir que se tenha cometido um delito”, ao fazer a interpretação que fez.

O juiz manifestou-se desejoso de que haja uma decisão, embora ainda não tenha sido apontada qualquer data para uma decisão do Supremo Tribunal de Espanha, onde o caso está a ser apreciado.

Aos jornalistas, Baltasar Garzón não deixou de notar que, numa primeira fase, até à sua suspensão de funções da Audiência Nacional a tramitação do processo avançou “de forma rápida ou normal” e desde então isso não tem acontecido.

“Ninguém gosta de estar sentado no banco dos réus”, respondeu o juiz em resposta a uma pergunta sobre como se vê nessa situação, mas sublinhou que a acusação foi feita “por defender uma interpretação da lei, por defender a investigação de crimes que têm a categoria de crimes contra a humanidade” e considerando que “é uma vergonha para Espanha que não se investiguem estes crimes”.

O ‘super juiz’, como é muitas vezes designado, está actualmente como consultor no Tribunal Penal Internacional (TPI), funções que exercerá até Dezembro e não sabe se continuará.

“Em princípio o período (de funções no TPI) ficará concluído em Dezembro. Não estou a pensar fazê-lo (continuar), mas se me pedirem ficarei com gosto, porque o trabalho é interessante e há muitos casos abertos nos quais estou a trabalhar como consultor e estaria interessado em acompanhá-los”, afirmou o juiz, sem desvendar o que pensa fazer no futuro.

__________

*Notícia extraída do site da Fundação José Saramago em 7/11/2010
http://www.josesaramago.org/  


Fonte: publico.pt

A grafia é a de Portugal.

Cláudio Accurso na Feira do Livro

Jorge Adelar Finatto

No país desigual que temos, os saberes em
ciências sociais estiveram presentes em sua modelagem ou servem apenas para explicá-lo?

Essa frase de Cláudio Accurso nos dá uma ideia do percuciente caminho que percorreu na elaboração de Aportes de Desenvolvimento Econômico, obra que autografará nesta segunda-feira, às 15h30min, na Feira do Livro de Porto Alegre.

Economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Accurso não se limita ao domínio exemplar da técnica do seu metiê. Vai muito além, a bordo do substrato humanista que impregna o saber científico. Leva-nos a pensar com sentimento, provando, uma vez mais, que não existe sabedoria longe do coração.
________ 

Lançamento da Editora da UFRGS, IEPE e Centro de Estudos e Pesquisas Econômicas da universidade federal.

sábado, 6 de novembro de 2010

O coração da neblina

Jorge Adelar Finatto


Um vasto silêncio. O viajante entrou na fotografia. Atravessou para o outro lado. Caminhou na névoa como se andasse dentro de si mesmo.  Pisou na grama a esmo, interiorizou-se na paisagem em busca de algo, talvez de alguém que um dia ele foi e se perdeu.  Aqui fora, só o que vê são vultos ao redor. Não vislumbra mais rostos como antigamente, não sente o seu coração nem o das pessoas batendo.  Agora quando acorda tudo lhe parece estranho. O espelho mostra uma face sem expressão, uma boca onde a palavra já não habita. Há um banco solitário na praça vazia desse olhar. Esse olhar de nuvens. A tarde caiu no interior do retrato.  Ficou frio. Ele deitou e dormiu embaixo de uma árvore com o casaco por cima como fez uma vez aos 20 anos. Está feliz naquele lugar como há muito não acontecia.  Está sozinho, mas se sente inteiro. Não entende como a vida foi escurecendo dentro dele. Invadiu a fotografia tentando se afastar do labirinto e se encontrar. Um vento leve e úmido bate-lhe na cara. Por enquanto ele pode ficar ali, longe de tudo, distante do mundo. Ninguém vai procurá-lo naquele território ausente. Mais tarde, só mais tarde, retornará. Quem sabe reencontrará a palavra e o sol na saída do retrato.

_________

Foto: J. Finatto

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Os desolados

Jorge Adelar Finatto



As manhãs fogem do escuro. A solidão é um negro capuz que se veste nos retirados da dor.

Tive medo de ver os escombros. Os difíceis haveres do abandono. Havia uma mulher chorando. Quem? Não divulguei.

O coração humano gira em tristes moinhos. O traçado torto da vida. Quem puder se segure, senão cai no perau. Eu, quando escuto gente chorando, sinto breu andando à volta.

Coisas que vi. Meu coração barroco. Aquele choro me doeu. Mas eu fui. Foi quando meus olhos a divulgaram. A mulher era uma visão sob a pérgula. Eu não sabia o que era beleza até aquele dia. Estava sentada num banco de pedra cercado de camélias vermelhas, ao lado da fonte. Havia uma escada com seis degraus que terminava no ar. Ligava parte alguma a lugar nenhum. A casa desmoronada no íntimo da pessoa.

A mulher, sua tristeza na alma, aquela ruína. Me aproximei no cuidadoso jeito. Era uma tarde de junho como essa. E fria, fria. A mulher - a visão - fez sinal para eu parar e esperar. O que fiz nos respeitos. Ela se levantou, arrumou o vestido, olhou o céu. Entre as duas mãos largou a face e os cabelos de linho, depois seguiu. O tempo varou a vida.

Eu vivia no lugar perdido, arrostando sol e vento, sem eira, sem beira. Os loucos dias no sanatório do mundo. Os ermos. Caminhos que se andam.

Um dia de fina luz de primavera ela veio em minha direção, pegou no braço meu. Caminhou, caminhamos. Em silêncio. Palavras que se dizem sem falar. Aconteceu a brilhante estrela caindo no meu caminho.

O punhal que me rasgava por dentro foi saindo, saiu.

Nos acolhemos, reunimos as raras pertenças.

Me tornei sentimento. Sentimentos.

________

Foto: J. Finatto
Texto publicado no blog em 03/5/2010.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Primavera 54

Jorge Adelar Finatto


O vento vai para o sul e faz o giro para o norte. Gira e gira continuamente em volta, e o vento retorna logo aos seus giros. Eclesiastes 1:6

Todos os dias são santos, todas as horas são as últimas. A santidade de cada instante, o milagre de existir, a utopia da felicidade, em meio às nossas imperfeições, levam a agradecer cada dia recebido.

Atendendo pedido dos queridos Niamara Pessoa Ribeiro e Cláudio Accurso, dois intelectuais que engrandecem nosso meio, publico os textos que remeteram. 

Vivo a urgência de um tempo em que não posso me permitir os excessos da vaidade, mas tampouco o desperdício do carinho dos amigos. Colho estas manifestações com humildade e profunda gratidão.

               @               @               @               

Niamara Pessoa Ribeiro (Graduada em Letras e Especialista em Teoria Literária):  Rogo-lhe a gentileza de possibilitar que este texto se torne de conhecimento de seus leitores, especialmente nesta semana em que se comemora o seu aniversário. Quero cumprimentá-lo por muitos motivos, dos quais destaco os seguintes.
 
O senhor surpreende positivamente: integra uma plêiade de perfis nobremente poliédricos que cintilam em todos os aspectos pelos quais possam ser analisados. 
  
Eu o conheci inicialmente como Magistrado: além de íntegro, megacumpridor do dever, respeitoso com colegas e superiores, igualmente concedeu sincera consideração a seus subordinados.  Poucos sabem falar até com o mais humilde dos servidores mantendo o mesmo trato com que  se dirigem aos hierarquicamente iguais ou superiores. Ou seja: o senhor se relaciona com o valor das pessoas, não com a importância dos seus cargos.

Também o conheci integrado ao ambiente familiar, bastando dizer que a visão de uma família como a que o senhor construiu nos faz acreditar cada vez mais nessa instituição. 

Após, também o conheci como Poeta maior, desses que sobrevivem ao avassalador cotidiano. Lembro-me dos mineiros que trabalham na profundidade do solo, sob montanhas de terra: estão os magistrados sufocados sob toneladas de papéis. Dos que são extraordinariamente sensíveis como o senhor, com sensibilidade de alto quilate, poucos conseguem trazer à superfície seu talento incólume, poucos sobrevivem com o olhar criador, eis que a profissão os seduz a se tornarem analíticos, frios ao pegarem a caneta.

Sei da importância de o senhor ser Magistrado, sei o quanto de intelectualidade e imparcialidade é requerido para a vitória nesse terreno. Sim, eu o admiro por isso. Muito mais, porém, eu o admiro como escritor, literato, primoroso Fazedor de Auroras. Explico: o senhor "estava" Magistrado, mas o senhor "é" Poeta. Há os bancos escolares, os diplomas e um universo que "fazem" o bacharel... tanto o bom quanto o menos... mas não fazem o artista. O verdadeiro talento não se compra... não se finda... não se desaprende...
              
Cumprimento pelo aniversário não um, mas  todos os Finatto:  o Poeta, o Jornalista, o Magistrado, o Amigo, enfim,  aquele que, também nesta página virtual, comprova ter erudição (grande porque acrescida de sabedoria), inspiração (elevada e traduzida em permanente criatividade), informação (confiável porque acompanhada de profundidade). Características acessadas somente após muita estrada e vitorioso aperfeiçoamento espiritual.

Feliz Aniversário e um abraço da Niamara Pessoa Ribeiro.  

                @                @                @

Cláudio Accurso (Economista e Professor Universitário): Fico feliz por encontrar no senhor uma pessoa que se preocupa com as desventuras do homem nessa passagem pela terra. E o faz como cidadão crítico de um mundo que tem tudo para ser melhor para todos e como intelectual e poeta com capacidade de perscrutar o oculto, nele descobrindo o belo e o potencial de beleza na alma de cada um, às vezes adormecidos pelas agruras do dia a dia. 
 
Sua manifestação literária, uma vez introjetada, pode despertar potencialidades para um acontecer mais harmônico e mais realizador, ou pelo menos com mais esperanças para os que já não sonham ou mais risonho para os que já não riem.

Um abraço do Cláudio Accurso.

_________

Foto: J. Finatto

domingo, 31 de outubro de 2010

Drummond 108

Jorge Adelar Finatto


A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.*

31 de outubro, 1902. Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais. Nessa data e nesse lugar nasceu Carlos Drummond de Andrade. Vivo estivesse, completaria hoje 108 anos. Sinto saudade do poeta como de um irmão mais velho. São dessa ordem as afinidades literárias que se transformam em afeto, respeito e falta.

Morto aos 84 anos, em 17 de agosto de 1987, 12 dias depois da morte da única filha Maria Julieta, escritora, Carlos foi  - e é - um dos nomes mais importantes da poesia em língua portuguesa.

Notabilizou-se, também, como cronista e contista refinado, que conseguia fazer uma leitura solar dos acontecimentos e dos não-acontecimentos. A poderosa lente com que mirava a realidade e a observação aguda da vida tornavam seus textos semanais, em jornal, leitura indispensável.

Enxergava como poucos nossas qualidades e defeitos, nutria  uma irredutível esperança na existência, mesmo desiludido. O bom humor é outro traço marcante de sua visão de mundo.

O humanismo da expressão, em Drummond, sempre foi fonte de revelação e consolo. O poeta nos toca e nos ajuda a viver.  Amoroso e lúcido, o texto nunca lhe sai indiferente ao destino humano.

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?**

É nessa vida prolongada da palavra escrita que podemos ter o poeta conosco. Convivente, irmão.
___________

*Trecho do poema Consolo na Praia, da Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade, Editora Abril, São Paulo, 1982.
**Trecho do poema Amar, idem.
Foto do poeta copiada do site www.carlosdrummonddeandrade.com.br

Mais sobre CDA no post de 11/4/10.