quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Coração barroco

Jorge Adelar Finatto


A palavra vale mil imagens.













Coração, por exemplo.


Essa palavra quer ser tudo.

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Fotos: J. Finatto

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O peixe da boca vermelha

Jorge Adelar Finatto


A caminhada polifônica destina-se não apenas ao exercício do corpo como à indispensável atenção às coisas do espírito.

A observação dos seres vivos e da paisagem, a aproximação estética e sensorial  da mãe natureza, a respiração do ar limpo e fresco nas manhãs (ou tardes), a descoberta de inefáveis epifanias durante o percurso, tudo isso faz parte da polifonia andante.


Andava eu nas cercanias do Lago da Neblina, em Passo dos Ausentes, prevenido com a invencível Coruja, a vetusta máquina fotográfica que me acompanha.

Os gansos desistiram de acusar a minha presença. Sabem que sou apenas um caminhante que está só de passagem, um sujeito inofensivo, que anda a bordo de um chapéu de palha branco, com grossas e estapafúrdias lentes nos óculos, catando o invisível.

Um indivíduo assim não oferece risco à fauna e à flora, quiçá a si mesmo.


Nas margens e dentro do lago existe vida pulsante. Estava eu olhando o vazio (essa maneira de encontrar, talvez, o inesperado) quando ouvi um vago rumor na água.


Foi quando me apareceu o amigo (ou amiga) dessas fotos.


Um peixe branco, a boca pintada de vemelho, com traços coloridos espalhados pelo corpo, cerca de 1 metro de comprimento, passou a navegar perto de mim.

Tive a impressão de que sabia da sessão de fotos, ao menos não poupou poses e movimentos. Chegou-se mais para a beira, mas não tão próximo que não pudesse ativar um plano emergencial de fuga caso isso fosse necessário. Não foi.




O peixe da boca vermelha quis dizer alguma coisa com sua presença, e acho que conseguiu. Encheu de beleza a tarde (e o meu coração).



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Fotos: J. Finatto

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O ladrão de livros

Jorge Adelar Finatto

Entre as páginas de um velho livro, encontrei um recorte de jornal amarelecido. Nele se noticia que o homem considerado o maior ladrão de livros da história foi condenado, na Inglaterra, a 15 meses de prisão.

O inglês, cujo primeiro nome é Duncan, furtou, ao longo de 30 anos, mais de 40 mil volumes de bibliotecas, faculdades, igrejas e outras instituições.

O motivo alegado por Duncan, segundo a notícia, era um só: impressionar vizinhos e conhecidos com aparência de erudição. A polícia encontrou os livros guardados desde o porão até o sótão de sua casa de campo, no condado de Suffolk, leste da Inglaterra. Ele foi descoberto ao tentar vender uma das obras num leilão.

O principal objetivo de Mr. Duncan, como se vê, era alardear leituras que nunca fizera. Aliás, comportamento que não é privilégio dele. A vaidade literária se presta, em vários sentidos, à ostentação e esnobismo.

Há grandes leitores de orelhas e resumos de livros que acenam erudição, em conversas e através de resenhas, a respeito de obras que, na verdade, nunca leram. Esse tipo de "leitor" se faz presente em certo meio intelectual e em parte do jornalismo dito cultural. Claro que há pessoas que procuram fazer um trabalho sério. Mas os tempos são difíceis também nessa área.

Uma boa pena alternativa para Duncan, que a meu ver não deveria ir para a cadeia, seria a leitura de livros em asilos, hospitais, prisões e outras lugares, durante algumas horas por semana, para atender pessoas impossibilitadas de ler.

Quem sabe dessa forma ele adquirisse, enfim, o verdadeiro gosto pela leitura e, mais do que isso, descobrisse o quanto é bom ajudar a quem precisa por meio da literatura.
 

sábado, 22 de janeiro de 2011

Os últimos acendedores de lampiões

Jorge Adelar Finatto


À tardinha, quando o sol morre atrás do Contraforte dos Capuchinhos, os dois acendedores de lampiões saem às ruas para dissipar a escuridão. Érico tem 78 anos e Dyonelio, 83. São os últimos remanescentes da Companhia de Iluminação de Passo dos Ausentes. Ao que se quer e espera, muita luz, luzes.

A nostálgica claridade noturna de nossas 20 ruas é invenção de 80 lampiões nelas espalhados. É assim desde 1925. A cidade parou no tempo desde então.

Érico e Dyonelio exercem o ofício desde a adolescência, quando ingressaram na companhia como aprendizes. Com a aposentadoria dos acendedores mais velhos, e diante do brutal esvaziamento da cidade (os jovens muito cedo vão-se embora à procura de estudo, trabalho e aventura; os velhos acabam morrendo e mudam-se em definitivo para os campos da ausência), não houve renovação dos iluminadores.

Somos poucos.

Os últimos acendedores de lampiões fizeram um pacto. Trabalharão até o dia da morte para não deixar a cidade entregue às trevas. Eles acreditam que quando não mais estiverem nas ruas para acender os lampiões forças malignas tirarão proveito da escuridão e expulsarão nossa cidade do sistema solar. Precisamos evitar a todo custo que se cumpra o presságio do padre Eleutério Ombra, enunciado em 1755, de que uma nova São Miguel das Missões se ergueria perto das nuvens, sobre altas montanhas, com graça e fulgor. Advertiu, todavia, que uma grossa sombra rondaria sempre esse lugar e poderia engoli-lo.

Depois que exércitos espanhóis e portugueses destruíram São Miguel, em 1756, alguns padres jesuítas e índios guaranis, sobreviventes do massacre, fugiram e fundaram Passo dos Ausentes.

Uma grande angústia toma conta das pessoas por aqui. Vivemos nesta cidade condenada ao desaparecimento. Cada um é insubstituível.  Nem ao menos figuramos no mapa do Rio Grande do Sul.

Somos poucos.  Somos invisíveis. Somos habitantes dos Campos de Cima do Esquecimento.


O tempo, em Passo dos Ausentes, é uma ferida que não para de sangrar.

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Do livro A cidade perdida: as origens. Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2003.
Fotos: J. Finatto

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O córrego

Jorge Adelar Finatto


Não quero outra vida
que passar os dias
na beira do córrego
olhando os seixos
                      as folhas
o rosto humano dos peixes

perto do pinheiro
contemplo o lento caminhar
das águas

não indago de onde ele vem
não sofro seu tortuoso destino
nem as lágrimas que traz

quero apenas estar a seu lado
no suave e breve instante
de sua passagem
na minha vida

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Do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
Foto: J. Finatto

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A nave-mãe está cansada e seriamente doente

Jorge Adelar Finatto


A escritora e querida amiga Helena Jobim disse-me, certa vez, que Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927-1994), seu inesquecível irmão Tom (apelido dado por ela, em criança, ao mano), compôs diversas de suas músicas no sítio da família, na localidade de Poço Fundo, município de São José do Vale do Rio Preto, região serrana do Estado do Rio de Janeiro. Uma ocasião o maestro saiu de sua casa e foi até a de Helena, ambas no sítio, e mostrou com o violão a música que acabara de fazer: era Águas de março. Ali também compôs Dindi e tantas outras, e recebeu amigos, entre os quais Vinicius de Moraes e João Gilberto. Naquele lugar, o músico passava temporadas de descanso e lazer, desde pequeno. Ele era uma pessoa encantada com a natureza. Em Poço Fundo aprendeu nomes de pássaros, animais, plantas, conviveu com a mata e com os bichos. Tornou-se um dos primeiros artistas brasileiros a falar de ecologia e a externar preocupação com a destruição do ambiente natural, nele incluídas as pessoas.

A tragédia que se abateu sobre as cidades serranas do Rio de Janeiro destruiu a casa do Tom em Poço Fundo, na manhã de quarta-feira passada, conforme se vê na foto acima, tirada pelo neto Daniel Jobim, que se encontrava no local, mas em outra residência. A forte enxurrada e a subida do Rio Preto, que passa por lá, acabou com quase tudo no lugar.

O desastre que assola o Estado do Rio, fazendo cerca de 700 mortes e milhares de desabrigados, em municípios como Teresópolis, Nova Friburgo, Petrópolis e São José do Vale do Rio Preto, entre outros, é uma demonstração de que a nave-mãe Terra está muito cansada e seriamente doente.  O Brasil não era acostumado a fatos como esse, que vêm se repetindo nos últimos tempos, em várias proporções em quase todas as regiões do país. Temporais, tornados, enxurradas, vendavais, alagamentos, deslizamentos de terra têm causado mortes, medo, traumas e prejuízos incalculáveis. No Brasil e no mundo, percebe-se o grave desequilíbrio: os desacertos do clima, a elevação das temperaturas, o derretimento das geleiras, a redução drástica da camada de proteção atmosférica.

Estamos produzindo lixo além de toda conta, e jogando tudo na natureza. Gases são atirados de qualquer maneira no ar, detritos de inumeráveis espécies vão para dentro das águas. Queimadas, mortandade de animais, produtos tóxicos produzidos e espalhados indevidamente. A sociedade do consumo total, do lucro como valor supremo, da mentira e da vantagem a qualquer custo chega ao limite.

A natureza está devolvendo ao homem o que dele recebe. Se não desenvolvermos uma ética de solidariedade entre nós e de respeito ao meio ambiente, em breve a nave-mãe Terra mergulhará em profunda escuridão.

Precisamos urgentemente fazer as pazes com a natureza. Do contrário, vamos todos desaparecer, sem memória do que fomos e das canções que um dia embalaram nossos corações, como as do grande maestro Antonio Brasileiro.

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Foto: imagem da casa de Tom Jobim, no sítio de Poço Fundo, destruída pelas chuvas. Autor: Daniel Jobim. Publicada no jornal O Globo, online, em 15.01.2011: oglobo.globo.com.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O resgate do sentido humano

Álvaro Alves de Faria • São Paulo - SP


Jorge Adelar Finatto publica pouco. Como costuma dizer, publicar, para ele, é uma exceção e não uma regra. "Um livro me custa anos de espera", observa, para deixar claro que talvez a publicação não seja tão importante, especialmente quando livros de poesia no Brasil se transformaram - há quem diga - numa praga. Claro que estamos falando do lixo que anda por aí assinado por gente rotulada de poeta. Não é o caso de Finatto, que acaba de lançar Memorial da vida breve, livro que lhe mereceu dez anos de trabaho. "Publicar qualquer coisa, publicar por publicar, fazer carreira de poeta, não é o meu caminho", diz ele.

Nos anos 80, Jorge Adelar Finatto fazia parte do Grupo Sanguinovo, de São Paulo, pelo qual publicou sua primeira obra - Viveiro. A seguir, em 83, o livro Claridade foi lançado pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Vieram outras obras poéticas, com destaque para O habitante da bruma, de 1998. Ingressou na Magistratura em 1991, como juiz de Direito. Confessa nunca estar seguro sobre o que escreve. Tudo é sempre um risco. Tem para si que a função da literatura é resgatar o sentido humano. O homem tem origem divina.

Ao ver em Coimbra as águas do Mondego, sente saudades do Guaíba, com seus últimos barcos que partem ao entardecer, deixando atrás o sonho dos homens: "o poema de António Nobre/ escrito na pedra/ à beira do rio/ me recorda Porto Alegre/ seus poetas esquecidos". Estas são as imagens dos versos de Finatto, que tem na poesia uma forma de salvar ainda a possibilidade da vida, diante da brutalização completa de quase tudo.

Nascido em Caxias do Sul (RS), em 1956, Finatto percorre esse campo árido da poesia com o cuidado que se tem com um ferimento. Talvez a poesia seja mesmo assim, pelo menos para os que ainda conseguem pensar. Esta poesia é feita, sobretudo, de generosidades. A vida é maravilha. O tempo de viver é o lugar da alegria e do milagre. As estrelas cadentes são nossas irmãs. E a Deus é preciso devolver a vida emprestada.

Assim segue o poeta, como um peregrino: "afundado/ em seco/ decifro papéis/ que nada me dizem/ a página em branco/ espera o verso/ que não escreverei". O poeta sente a poesia como uma espécie de religião, a transcendência, onde talvez esteja a alma de todas as coisas: "escrever o poema/ é sempre claridade/ na caverna/ mão estendida/ a quem/ não conheço/ teço a canção/ antes do grande/ silêncio".

Este é um poeta que anda à margem do Guaíba à procura da voz da Luz, sabendo que existem caminhos de dor entre ele e a delícia. Há dias em que não suporta o vento e suas histórias: "o relógio da parede/ na casa velha/ espera o menino/ que não voltará", diz ele num poema, ao observar que gostaria de ter sido outra pessoa. E na sua missão de caminhante, escreve que precisa escrever o poema para salvar o dia, um poema que tenha a força de expulsar o desejo de morrer.

Memorial da vida breve é um livro de poemas de um autor que acredita que um dia a poesia poderá salvar o mundo. Quem sabe poderá em tempo incerto trazer de volta a humanidade engolida pelo perverso. Seja como for, o poeta certamente terá razão: "O que resta é esperar/ o retorno da primavera/ o ramo da buganvília/ o regresso do pássaro/ com o humano canto/ em setembro".

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Memorial da vida breve, Jorge Adelar Finatto, Nova Prova, Porto Alegre, 2007, 80 págs. Ilustrações de Paulo Porcella.
Esta resenha, de autoria do poeta e jornalista Álvaro Alves de Faria, foi publicada no jornal literário Rascunho, de Curitiba, Paraná, em agosto de 2007, e encontra-se também na internet: rascunho.rpc.com.br
Imagem: capa do livro.