segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Canção do vento no deserto

Jorge Adelar Finatto


Sobre o que escrever na segunda-feira? Não é que falte assunto. O mundo está cheio de coisas acontecendo. Falta, talvez, inspiração para encontrar o tema. O que interessará ao leitor neste último dia de fevereiro de 2011?

O que nós, leitores, buscamos num texto de segunda-feira é que nos permita sair, por um momento, do excesso de realidade que este dia carrega. Algo que nos faça alçar voo para o outro lado da muralha.

O que se espera do cronista é que nos ajude a respirar e a ter um pouco de esperança. Esperamos que nos revele um pouco de beleza em meio a tanta aridez.

Viver poderia/deveria ser muito melhor. 

Eu trocaria de bom grado esta sala fechada por um banco de praça. Para olhar gente, a copa das árvores, ouvir o canto de um pássaro.

A segunda-feira está coberta pelas cinzas da vida que não é.

Escuto a canção do vento no deserto.
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Foto: J. Finatto

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Memória do vento

Jorge Adelar Finatto



Não posso
fechar a porta
às histórias
que o vento traz

o mundo esquecido
a vida pequena
seres e coisas
que têm em mim
a eternidade
possível

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Foto: J. Finatto
Do livro Memorial da Vida Breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007. 

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A volta do Cavaleiro da Bandana Escarlate

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Vulto na praça. A luz amarela seria poética, não fosse o perigo dos assaltos. Um observador oculto espreita entre as buganvílias.

Quem vem lá? Difícil saber na escuridão sem trégua. A noite de domingo até podia ser romântica. Mas há indivíduos dormindo nos bancos da Praça Maurício Cardoso. Dois bêbados urinam sob a pérgula.

A cidade não tem piedade dos seres delicados. Mas há que vencer o mal com o bem. É essa a hora do menestrel, do cavalo obediente e fiel, da capa e do alaúde.

Eis que surge da treva tremenda o Cavaleiro da Bandana Escarlate, montado no seu cavalo branco. Vem galopando desde muito longe, desde os Campos de Cima do Esquecimento, desde o fim do mundo. Vem para a batalha final.

Atravessa a praça com o garboso corcel de arado, cuidando aqui e ali pra não amassar as flores. Um cara passa correndo atrás de outro rua afora, gritando coisas impublicáveis.

O cavaleiro veste a capa de seda preta. A máscara negra não permite descubram-lhe o segredo. Traz o antiquíssimo alaúde a tiracolo. O instrumento pertenceu a um trisavô que veio fugido da Itália e aqui se estabeleceu no ramo dos embutidos e também mourejou em alguns negócios obscuros.

O cavaleiro tem genealogia, sim, mas o que passou, passou.

Neste momento ele cruza pro outro lado da rua e estaciona o alvo eqüino (com trema, por favor) debaixo do balcão da Meiga Donzela Dionéia (com acento, por favor). Saca com grande donaire o seu instrumento.

Dedilha então os primeiros acordes nas cordas do formoso alaúde ancestral. A melodia acorda a Musa, que, entre estremunhada, descabelada e furiosa, vai até a janela do balcão saber do que se trata. Não acredita no que vê.

- O que quereis, ó cavaleiro do alaúde em riste? - pergunta com voz sinistra. Acaso não percebeis que são altas horas? Não vos dais conta do ridículo?

E prossegue a Ausente Musa:

- Deixai-me dormir, ó misterioso mascarado. Amanhã é dia de pegar no batente outra vez, voltar pra dureza inglória da vida. Retornai ao vosso castelo de pó e vento, ó romântico senhor, poupai-me. Do contrário, obrigar-me-ei a chamar os homens da lei para vos untarem com grosseiros afagos, que é o que deveras mereceis.

O Cavaleiro da Bandana Escarlate silencia o valoroso instrumento. Parece não acreditar no que acaba de ouvir. Cavalgou durante dias por estradas cheias de rudes caminhões e automóveis. Mais de uma vez viu-se obrigado a jogar-se no matagal com o esbaforido e lácteo corcel.

Para não comprometer ainda mais o idílio, decide retirar-se. Num gesto de rara nobreza, joga uma rosa branca no balcão. Depois ergue bem alto o alaúde na mão esquerda, empina levemente o pangaré e grita:

- Eu voltarei na primavera, ó, Estressada Dionéia, Musa Minha.

Ao proferir essas elevadas palavras, escorrega do animal e estatela-se na fria calçada, magoando a triste cabeça que a bandana - agora rasgada - antes cobria.

Aos poucos recompõe-se o Nobre Cavaleiro. Junta o alaúde, apruma-se sobre o valoroso eqüídeo (nessa altura, tanto faz o trema) e parte no trote.

Enquanto atravessa de volta a Praça Maurício cardoso, algum insensível abre uma janela num edifício próximo e manda

- Vá tomar no seu caju (aqui é substituída a expressão original por outra, a fim de manter o mínimo decoro).

Assim que, sem perder a altivez, o nosso Valoroso Cavaleiro Medieval desaparece na noite escura da grande cidade.

Um bêbado atira uma pedra e quebra uma luminária da praça. Fim.

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Foto: J.Finatto. Colonia del Sacramento, Uruguai.
Texto revisto e atualizado, publicado no blog em 27 de abril, 2010. 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

As coisas passam e passam

Jorge Adelar Finatto



As coisas são e passam. Passam.
Eu passo, tu passas, ela/ele passam, nós passaremos.
Um passo solitário na bruma.
Passo dos Ausentes.



Estas imagens saíram talvez de um sonho.
Fragmentos de instantes que não se repetem.
Nada nunca é o mesmo.
As coisas passam e passam.



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Fotos: J. Finatto
jfinatto@terra.com.br

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Retratos do Parque Laje de Pedra

Jorge Adelar Finatto



A vida de fotógrafo amador tem seus momentos luminosos. Essa luz que emana não só da paisagem, mas da presença das pessoas e do convívio. A partir de hoje faço mais uma exposição de fotografias, desta vez contando com o apoio do Hotel Laje de Pedra. À beira do Vale do Quilombo, no alto do chapadão, numa sala clara e acolhedora, estarão expostos alguns dos retratos que fiz do Parque Laje de Pedra ao longo dos últimos anos.

O lugar mora no meu coração. Por ali costumo andar em diferentes estações climáticas e espirituais. É um dos meus roteiros escolhidos para caminhadas polifônicas.

Os indivíduos dos povos indígenas e das comunidades marcadas por fortes vínculos não alimentam grandes medos. A doença e a morte são para eles acontecimentos que não possuem a carga de desamparo e desespero que têm para nós. É que sempre estão por perto uns dos outros, dão-se as mãos ao som do trovão e da tempestade, enfrentam os perigos com a invencível força da união. Vivem mais o momento e creio que são mais felizes.

Morrem apenas uma vez na vida, ao contrário de nós outros que, isolados em tristes pensamentos e tugúrios, morremos vezes sem conta de solidão e medo. Custamos a nos olhar, quase não nos tocamos.

A arte é uma forma de dar as mãos. Um jeito de estar perto do outro, em volta da fogueira do espírito, para espantar a escuridão e a morte.

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Foto: J. Finatto

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Alfonsina y el mar

Paulo Fabris


Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui foram, segundo o maestro Júlio Medaglia, os representantes maiores daquilo que se convencionou chamar latinidade. Os dois cantavam com clareza, simplicidade, exatidão, transformando todas as canções em hinos sinfônicos, folclóricos, coletivos. Quem não lembra de Gracias a la vida, Volver a los 17 e Alfonsina y el mar?

Alfonsina, por sua vez, foi uma personagem real e única: nasceu na Suíça, filha de pais ítalo-argentinos, mas com apenas 10 anos de idade vivenciou o fracasso econômico, a doença e a morte do pai e daí em diante todas as dificuldades que levaram a que abreviasse a sua infância; teve então que trabalhar como costureira e operária, até que conseguiu ser aprovada em concurso para professora rural.

Mais tarde fugiu da província com a companhia teatral de José Tallavi, engravidou e teve seu único filho em Buenos Aires. Depois viajou pela Europa, conheceu artistas de vanguarda, escreveu, apaixonou-se e sofreu as dores de muitos amores. Estudiosos da literatura a comparam a Gabriela Mistral, poeta chilena e primeira latino-americana a receber o Nobel de Literatura (em 1945).

Há alguns anos viajei de navio pela Patagônia chilena e argentina e um dos portos em que o barco atracou foi em Puerto Madryn. Circulando pela cidade vi uma rua com o nome da poeta e perguntei ao motorista de táxi, um descendente de galeses com mais de 60 anos de idade, se já ouvira falar nela:

- Por supuesto que si. Era una maestra rural, además de grán poeta.

Passada a curva dos 50 - como diria Drummond - eu passei a prestar mais atenção nas mulheres, especialmente em seus atributos mais sinuosos (e que incluem a psiquê). Alfonsina desde cedo buscou no mundo do teatro e da poesia refúgio contra as ondas do azar e os desastres econômicos que destroem a vida de indivíduos, famílias e povos e os levam à impossibilidade de construir e manter um casamento e uma família razoavelmente estruturada, que ajudem a suportar as mediações - inadiáveis - da realidade.

Alfonsina escreveu magníficos sonetos, poemas breves e longos, tangidos pela melancolia do exílio e do tango, pela tristeza dos bares de cais de porto, pela saudade do prometido e insondável paraíso (que talvez somente exista no fundo do mar).

Alfonsina y el mar, a canção de Ariel Ramirez e Felix Luna, narra a história do estranhíssimo e impossível suicídio de Alfonsina Storni, ocorrido em 25 de outubro de 1938, aos 46 anos de idade, em uma noite enluarada em Mar Del Plata, supostamente em consequência de mais uma crise depressiva (agravada pelo suicídio de seu grande amigo, o escritor uruguaio Horácio Quiroga, e pela descoberta de um câncer) e depois de se passar por uma hóspede qualquer em uma pensão local, onde escreveu seu último poema (Voy a dormir).
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Paulo Fabris é médico e poeta em Porto Alegre.
Foto: Alfonsina Storni. Fonte: Wikipédia.
Texto publicado no blog em 07 de janeiro, 2010. 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A tua mão e a minha

Farandolino Brouillon


Todos os medos, todas as mágoas, todas as dores, sem esquecer os abismos. O puro arrepio de fazer a humana travessia, de ermo em ermo. Todos os suspiros, todos os tormentos, todos os erros, sem esquecer a ingratidão. Amanhã será outro amanhecer, outro sentimento, outra tarde de garoa como essa sob o guarda-chuva da memória. Amanhã serei o que vai embora. O neblinense que deixa tudo pra trás e vai em busca do caminho perdido. Há uma ponte desconhecida esperando na bruma? Irei através dela sem medo. Amanhã as folhas do outono. O vento de abril cercando os caminhos. Amanhã serei o que levanta da escuridão. Coração camélia vermelha. A tua mão e a minha.
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Farandolino Brouillon é poeta em Passo dos Ausentes.
Fotos: J. Finatto. Parque Laje de Pedra.