sábado, 12 de março de 2011

Calle de los suspiros

Jorge Adelar Finatto



De não ver os olhos estão vazios.
De não escutar os ouvidos estão ocos.

Um dia encontrei no mapa aquela cidade ao sul.
Um lugar que nasceu num tempo muito antigo.
Nela havia uma rua chamada Calle de los suspiros.
Fui até lá como atrás de um segredo.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.
Os fantasmas ocupam as casas coloniais.

Quem mora na rua dos suspiros?

A moça da janela olha as buganvílias.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.
A luz das luminárias é amarelo calmo.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado no oblívio.

Os ventos se reúnem na calle antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.
Neste lugar, todos sofrem para dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.
A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam.

A rua dos suspiros habita um retrato caído no tempo.

Quem chora a essa hora na calle deserta?

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Foto: J. Finatto
Imagem de Colonia del Sacramento, Uruguai.
Texto publicado no blog em 18/12/2010.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Celebro a vida que virá

Jorge Adelar Finatto


Un petit espoir très féroce:
c’est moi!
                                             Robert Lalonde

Ainda não nasci
sequer faço parte da paisagem
escuto uns gritos do outro lado: não estou

a sombra é apenas o começo
do previsível caminho
que vai dar na aurora

ainda não nasci
no entanto, é para breve

celebro a vida que virá
rompendo a escuridão
explodindo em alegria
como a primavera depois do inverno

sei onde isso terminará:
flor no extremo do ramo
beleza enchendo o vazio

faço do silêncio
um grande bosque
onde borboletas passeiam
pássaros inventam a claridade
com seu canto

imagina uma faísca que, súbito, paira no ar
uma palavra procurando um oco de boca
uma pequena luz que cresce: sou eu

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.                                               
Foto: J. Finatto

quarta-feira, 9 de março de 2011

O postigo de Deus

Claudionor, Anacoreta


As manhãs amadurecem no coração do claustro.


Como pode alguém tão pequeno, neste mundo, querer voar tão longe, sonhar tão alto?

Em meio a portulanos e cartapácios, alimento o sonho. A quimera do grande encontro me habita. Ah, as horas passadas na biblioteca do mosteiro, no Contraforte dos Capuchinhos. A cela onde me refugio em torno da mesa, viajando nos livros, no telescópio, no tempo adverso.

Ah, essas travessias desoladas pelo invisível. Aqui onde me quedo a duvidar. As místicas visões que me perseguem nestes Campos de Cima do Esquecimento.

A mirada do infinito, vertigem do pensar. Os mistérios do vir-a-ser. Um dia - eu bem sei - a face de Deus iluminará o postigo. Então tudo mais será farelo de luz caído das estrelas. Por enquanto, o trevamundo. Escuridão do existir.

As urgentes prosopopeias me constroem.

As solitárias caminhadas pela Rua do Silêncio, em Passo dos Ausentes.

Sou prisioneiro do infinito.

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Claudionor, Anacoreta, é místico e astrônomo amador. Vive no Contraforte dos Capuchinhos, em Passo dos Ausentes.
Foto: J. Finatto

segunda-feira, 7 de março de 2011

Maestro Antonio Brasileiro, entre o Guaíba e Ipanema

Jorge Adelar Finatto


O coração do homem que nunca mais voltará resiste em silêncio. O navio avança nas águas do Guaíba em direção à Lagoa dos Patos. Jorge Jobim perde de vista o contorno de Porto Alegre. A figura melancólica recorta-se na memória da tarde de inverno. O grande mar de água doce remete Porto Alegre ao Atlântico. O Rio de Janeiro é o destino. 

O tempo voa longe. No dia do futuro, alguém abre a gaveta. A claridade ilumina velhos papéis do homem que partiu. Eis ali o poeta e sua palavra.

O menino Antonio Carlos teve que reinventar o pai que perdeu aos oito anos. Acariciou suas mãos ausentes ao piano, nas antigas manhãs da casa de Ipanema.

O piano cantou a canção paterna: a nostalgia do sul, a saudade da família, dos amigos, o amor que se perdeu. Era preciso calar o esquecimento.

 &                    &                    &             

Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim nasceu em 25 de janeiro de 1927 no Rio de Janeiro, filho de Nilza Brasileiro de Almeida Jobim, carioca, professora, e de Jorge de Oliveira Jobim, gaúcho de São Gabriel, poeta, bacharel em Direito que teve passagem pela carreira diplomática. Morreu em 8 de dezembro de 1994, nos Estados Unidos, para onde viajara a fim de se operar.

O pequeno Tom veio com os pais a Porto Alegre, onde Nilza e Jorge haviam se casado, para conhecer a família Jobim. Por pouco não ficaram morando nas margens do Guaíba. Porém, falou mais alto o desejo de Nilza de morar no Rio, onde estavam seus familiares. No meio materno foi criado o menino Tom-Tom, apelido dado pela única irmã, Helena Jobim.

A grande perda: Jorge morre aos 47 anos incompletos, deixando os dois filhos em tenra idade.

O guri criou-se entre as montanhas e o mar do Rio de Janeiro. Os longos passeios pela mata e pela praia, as pescarias, o contato com bichos e plantas fizeram nascer o interesse pelas coisas da natureza. Tornou-se não apenas seu profundo conhecedor como defensor.

Entre os professores que teve, está o alemão naturalizado brasileiro Hans-Joachim Koellreutter, que lhe ensinou a transposição das fronteiras que separam a música erudita da popular. Alguns mestres que o inspiraram: Debussy, Bach, Stravinsky, Villa-Lobos.

Amoroso das palavras, Tom Jobim foi um leitor dedicado e atento. Cultivou, entre tantos, João Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Nas letras e textos que escreveu, percebe-se o artesão meticuloso do verbo.

A obra de Tom Jobim constrói-se na esfera da genialidade. Soube como poucos aliar talento a muito trabalho. As composições que nos legou transcendem as ensolaradas cercanias de Ipanema: são patrimônio espiritual da humanidade. Águas de março, Garota de Ipanema, Lígia, Dindi, Samba de uma nota só, Chovendo na roseira, Samba do avião são apenas algumas das inesquecíveis canções que integram a produção do compositor.

Um dos criadores da Bossa Nova, o maestro foi também um dos principais nomes da música mundial no século XX.

A descoberta da obra jobiniana nos leva a um mundo de delicadezas e felicidade.

Amanhã, se tudo der certo, encontraremos o amor. Se a abóbada não ceder sobre nossas cabeças, se a Mata Atlântica - que o maestro tanto amou - não virar jardim calcinado, teremos quem sabe tempo para olhar a paisagem e sentir a vida.

Ouviremos, talvez, o canto do sabiá em setembro.

A música de Antonio Brasileiro nos transporta a esse mundo futuro e antecipa-nos a maravilha.

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Foto: Antonio Carlos Jobim. Fonte: Acervo do Instituto Antonio Carlos Jobim: http://www.jobim.org
Post publicado neste blog em 05 de junho, 2010.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O olhar do observador

Jorge Adelar Finatto


No tempo antigo o pessoal tinha mania de botar roupa nova pra tirar retrato. Era um costume. Talvez porque posar para fazer fotografia era um acontecimento especial, então tinha que caprichar.

A arte fotográfica popularizou-se, hoje qualquer pessoa pode sair por aí fazendo suas fotos. O custo razoável das câmaras digitais permite isso. Eu sempre estive perto da máquina fotográfica.


Fotografar é uma coisa que faço com grande prazer. Faz parte da vã tentativa de parar o tempo e aprisionar o transitório. A arte é uma busca de eternidade. Isso de que somos carentes. A brevidade da vida é  algo assustador e não está de acordo com nossa ânsia de permanência, perceptível em quase tudo que fazemos.

Nesta luta entre o mar e o rochedo, cada um faz o que pode. Eu me defendo convivendo, lendo, escrevendo, tirando fotos. São formas de partilhar a vida.

Não existem duas fotografias iguais. Cada uma é única. Podemos fotografar mil vezes o mesmo objeto e o resultado será sempre diferente. A luz, a sombra, o vento, a poeira, a intensidade do movimento da mão, a corrente sanguínea, tudo se altera e nada se repete.


As imagens deste post fazem parte da exposição Retratos do Laje, que estou fazendo no Hotel Laje de Pedra, em Canela.

Como qualquer outra forma de arte, a fotografia só se realiza e se completa no olhar e no sentimento do observador.


Um abraço, bom fim de semana e boas fotografias.
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Fotos: J. Finatto

quarta-feira, 2 de março de 2011

Paul Desmond

Jorge Adelar Finatto


Se você ainda não conhece, procure conhecer. A obra musical do compositor, arranjador e virtuose americano Paul Desmond é puro sentimento. Ele tocou saxofone alto e clarinete em sua breve vida. Se clássico é um autor que alcançou um lugar único e referencial, então este é o caso de Desmond. Límpida, iluminada, original, transcendente. Eis a natureza da sonoridade que o artista criou.

Paul Desmond nasceu em San Francisco, em 25 de novembro de 1924, e morreu em 30 de maio de 1977, em New York, aos 52 anos. Integrou o quarteto de Dave Brubeck entre 1951 e 1967. São antológicos os discos que fez com este grupo. Compôs e gravou com o quarteto, em 1959, a famosa Take Five. Tocou também com Gerry Mulligan, Jim Hall, Modern Jazz Quartet e Chet Baker. Fumante inveterado, morreu de câncer de pulmão após uma temporada de apresentações com Brubeck. O último concerto aconteceu em New York, em fevereiro de 1977.

Um dos nomes do cool jazz, a melodia suave e tocante é uma marca do trabalho do artista. O legado musical de Paul Desmond é um momento de rara beleza na história da música universal.

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Foto: Paul Desmond. Ano: 1954. Autor: Carl Van Vechten. Fonte: Wikipédia.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Canção do vento no deserto

Jorge Adelar Finatto


Sobre o que escrever na segunda-feira? Não é que falte assunto. O mundo está cheio de coisas acontecendo. Falta, talvez, inspiração para encontrar o tema. O que interessará ao leitor neste último dia de fevereiro de 2011?

O que nós, leitores, buscamos num texto de segunda-feira é que nos permita sair, por um momento, do excesso de realidade que este dia carrega. Algo que nos faça alçar voo para o outro lado da muralha.

O que se espera do cronista é que nos ajude a respirar e a ter um pouco de esperança. Esperamos que nos revele um pouco de beleza em meio a tanta aridez.

Viver poderia/deveria ser muito melhor. 

Eu trocaria de bom grado esta sala fechada por um banco de praça. Para olhar gente, a copa das árvores, ouvir o canto de um pássaro.

A segunda-feira está coberta pelas cinzas da vida que não é.

Escuto a canção do vento no deserto.
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Foto: J. Finatto