quarta-feira, 30 de março de 2011

Ruy Belo

Jorge Adelar Finatto


Procuro resgatar o tempo perdido nessa difícil vida de leitor. Leitor cercado, durante muitos anos, por todos os lados, pelo cotidiano pesado e pela faina profissional, a exigir leituras de processos e decisões urgentes (que tudo hoje são urgências). O sonho de viver perto dos livros, contudo, não se perdeu. A descoberta de bons poetas e escritores faz valer a pena a longa caminhada no bosque das estantes.

Travar conhecimento com a poesia de Ruy Belo (1933 - 1978) é um desses raros encontros. Poeta português de vigorosas virtudes líricas, bem havido no trato de seu instrumento de trabalho (a palavra na árdua construção do poema), lê-lo é entrar em contato com a emoção do verbo. A formação humanista do autor resplandece em sua obra. A aguda intuição, fonte principial onde se encontram os grandes poetas, não lhe é estranha. Conhecer o seu trabalho é um achado inesquecível.

Ruy Belo é desses artistas que têm o dom de deixar a língua portuguesa mais bela, tal a invenção e a capacidade de nos surpreender com sua lira refinada.

O Tempo das Suaves Raparigas e Outros Poemas de Amor (que estou lendo e já relendo) é um livro que passou a fazer parte do meu armário de poesia. A edição, da editora portuguesa Assírio e Alvim (Lisboa, 2010), é boa, mas ressente-se da falta de uma biografia mínima do autor e de alguma informação bibliográfica.

Outra fonte de leitura dos poemas de Ruy Belo encontramos na seção Banco de Poesia, do site da Casa Fernando Pessoa, de Portugal: http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/. Dela reproduzo estes dois poemas do autor:


As impossíveis crianças

Nesta manhã de outono dos primeiros frios
mais a caminho da velhice que da minha casa
eu vejo-vos em roda todas a cantar
Impossíveis crianças deixais-me brincar?

&       &       &

Acontecimento
                          
Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras que cerrem
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou
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Foto: Ruy Belo. Autora: Teresa Belo.
Fonte: Instituto Camões:
http://www.instituto-camoes.pt/

segunda-feira, 28 de março de 2011

Os últimos acendedores de lampiões

Jorge Adelar Finatto



No entardecer, quando o sol morre atrás do Contraforte dos Capuchinhos, os dois acendedores de lampiões saem às ruas para dissipar a escuridão. Érico tem 78 anos e Dyonelio, 83. São os últimos remanescentes da Companhia de Iluminação de Passo dos Ausentes. Inauguram a luz com seu gesto, esconjuram o breu.

A nostálgica claridade noturna de nossas 20 ruas é invenção de 80 lampiões nelas espalhados. É assim desde 1925. A cidade parou no tempo desde então.

Érico e Dyonelio exercem o ofício desde a adolescência, quando ingressaram na companhia como aprendizes. Com a aposentadoria dos acendedores mais velhos, e diante do brutal esvaziamento da cidade (os jovens muito cedo vão-se embora à procura de estudo, trabalho e aventura; os velhos acabam morrendo e mudam-se em definitivo para os campos da ausência), não houve renovação dos iluminadores.

Somos poucos.

Os últimos acendedores de lampiões fizeram um pacto. Trabalharão até o dia da morte para não deixar a cidade entregue às trevas. Eles acreditam que quando não mais estiverem nas ruas para acender os lampiões forças malignas tirarão proveito da escuridão e expulsarão nossa cidade do sistema solar. Precisamos evitar a todo custo que se cumpra o presságio do padre Eleutério Ombra, enunciado em 1755, de que uma nova São Miguel das Missões se ergueria perto das nuvens, sobre altas montanhas, com graça e fulgor. Advertiu, todavia, que uma grossa sombra rondaria sempre esse lugar e poderia engoli-lo.


Depois que exércitos espanhóis e portugueses destruíram São Miguel, em 1756, alguns padres jesuítas e índios guaranis, sobreviventes do massacre, fugiram e fundaram Passo dos Ausentes.

Uma grande angústia toma conta das pessoas por aqui. Vivemos nesta cidade condenada ao desaparecimento. Cada um é insubstituível. Nem ao menos figuramos no mapa do Rio Grande do Sul.

Somos poucos. Somos invisíveis. Somos habitantes dos Campos de Cima do Esquecimento.

O tempo, em Passo dos Ausentes, é uma ferida que não para de sangrar.

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Do livro A cidade perdida: as origens. Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2003.
Texto publicado no blog em 22 de janeiro, 2011.
Fotos: J. Finatto

sexta-feira, 25 de março de 2011

Basquiat: coming from the streets, where he painted graffiti, the artist conquered art galleries and museums with his art *

Jorge Adelar Finatto




 

Something in Jean-Michel Basquiat´s trace catches the eye. In general, graffiti makes you tired and bored. It seems they only make the sensation of solitude and isolation of the big cities worse. Rarely do they convey something poetically revealing. I am stubborn, though. I am capable of standing in the street in front of a wall, trying to understand and to feel what that is. I am usually beaten by emptiness.

Graffiti has reached the status of art form in latest years thanks to the talent of some of these street artists, namely, the figurative graffiti, different from the one that is solely a simple inscription of letters and numbers. Public areas end up being appointed to these crafters. That is to say, less and less, the creative activity of the graffitist is seen as an affair for the police. The artists themselves are talking with the scribble gang, asking them not to damage these areas which have been toughly conquered.


When I saw Basquiat´s paintings for the first time, I tried, after the five initial minutes, to turn a blind eye to them and to keep on my path, but I could not. I started to follow the composition trail of each picture. And there was the view of the world aesthetically elaborated, with his Afro-American origin, impregnated by the rough urban spirit and an intense search for freedom and denouncement. They are figurative graffiti, now out of the streets, in the galleries, with powerful colors and senses.

Jean-Michel was born in Brooklyn, New York, on December 22nd, 1960, and passed away at 27, on August 12th, 1988, in the same city. Son of a Haitian father and of a mother who was a daughter of Puerto Ricans, he has become renowned, at first, as a graffitist and, afterwards, as a plastic artist. He was one of those responsible for the recognition of graffiti as an artistic manifestation.


When he was around 17 years old, he started to paint abandoned buildings of Manhattan. The signature with which he identified himself then was “Samo” or “Samo shit” (same old shit). At a certain time, after he left his parents´ home, he had to sell t-shirts and postcards in the streets so as to survive. The work of Basquiat drew attention and started being commented, rapidly gaining notoriety in the means of communication. He began painting portraits and to do exhibitions. He ended up becoming a rare case of an artist who early gains recognition. Moreover, he formed a band with acquaintances and participated in, at least, two films. In 1982, he dated a singer who was not very well known at the time, Madonna. He had partnerships with Andy Warhol.

An intense and professionally successful life, with massive media coverage, did not free him of the contact with drugs such as heroin and cocaine.

He died of an overdose, at the top of the heap, in his studio.

The work of Basquiat is recognized and valued internationally. It is not only a marketing case. There is much creation and poetic valor in these restless, vibrating, aggressive, questioning traces. The expression of the artist has reached an identity that characterizes itself as unique.



 
Let us look at Basquiat´s paintings. Isn’t there, by any chance, in the feverish and explosive wrist something that puts him side by side with oldest brothers like Tintoretto and Van Gogh? These colors and figures lead us to moments of emotion, beauty and reflection.

Basquiat was a fallen angel (title of the blue painting above), who left this world too soon.

The Museum of Modern Art in Paris held an exhibition with the work of Basquiat in October 2010, which lasted until the end of January 2011. Lines of almost 500 meters were formed for visitation.

People’s interest in the artist’s work is understood since it is a grateful discovery in the currently rarefied territory of virtue in the arts in general.



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* Este post foi originalmente publicado no blog, em português, em 28/11/2010. Republico, em inglês, em atenção aos leitores de outros países que têm procurado esta matéria.
Imagens: fotos de Basquiat e suas pinturas. Fonte: site oficial:

http://basquiat.com
Reprodução com autorização dos proprietários dos direitos da obra de Basquiat:
© The Estate of Jean-Michel Basquiat / AUTVIS, 2010
Translation by Letícia Lanius (Public Translator) – lelanius@yazigi.com

quarta-feira, 23 de março de 2011

A claridade do coração

Jorge Adelar Finatto

O certo é que, na vida como na arte, a gente fracassa sempre.

 


A trevosa sintaxe da vida. A escuridão das almas. Fugidias imagens me perseguem. Nos urdimentos do bandoneón, busco outras claridades. O viver longe do abismo, no vero amanhecer, eu busco. Eu, Juan Niebla, venho do neblinoso. Trouxe o calepino?


Tenho andado pela vida à procura de luz. Essa que vem de dentro. A escuridão está em toda parte, principalmente nas almas. As trevas-mestras sustentam o mundo. Bem-vindo o que vem em paz e desarmado. Os regulamentos da amizade eu cumpro. A minha casa está sempre aberta. Nos enquantos, porque amanhã é escuro. Anote por favor.




A treva foi inaugurada com a luz principial. Isto é demanda antiga. A velha contradição. A luta imemorial. Mas também o complemento ideal, uma não existe sem a outra. Em termos de arriscada filosofia, caminho em beira de precipício.

A maldade não tem sala na minha casa. Sou músico de bandoneón e memória, na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. Espero com o ouvido a chegada do invisível trem. Cego desde os 16 anos, sim, senhor. O resto é o breu e se dissipa quando toco meu instrumento no velho banco.

A vida é dura? Pra completar, é breve. Somos um ato-falho da criação. Sou homem de fé, Deus me perdoe. Se vive. Faço o que é possível, às vezes menos, às vezes mais. Somos ferida em carne viva, vivo pensamento. Se vive. Está anotando?



O certo é que, na vida como na arte, a gente fracassa sempre. Falta aquele grito, aquela palavra, o remate, aquilo que não foi dito nem lembrado. O ora-veja que só a divina obra tem. Deus é artista caprichoso, no atacado e no miúdo, como outro não há. Conseguiu escrever?

Pediram-me um ensaio falado sobre as cores remotas do outono. Mas eu só sei, só vejo isso que sinto.



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Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo de músico municipal desde 1940. Toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade. Tem 87 anos, é cego desde os 16.

Fotos: J. Finatto

segunda-feira, 21 de março de 2011

Villa-Lobos e outono

Jorge Adelar Finatto



Celebro o começo do outono escutando o Concerto para violão e orquestra do maestro e compositor Heitor Villa-Lobos (1887 - 1959). É uma comemoração discreta, íntima, como é o próprio outono. O concerto é uma obra que consagra o violão brasileiro e é, ao mesmo tempo, uma relíquia da humanidade. Villa-Lobos toca fundo as cordas do instrumento e dele colhe sublimes sonoridades.

A orquestra ao longe é a paisagem dentro da qual corre esse rio profundo e cheio de segredos.

Mestre das impossíveis harmonias, a música do maestro nos enche a alma. Somos tomados por um forte sentimento de gratidão. Na lápide do túmulo do compositor, no Cemitério São João Batista, na cidade do Rio de Janeiro, onde nasceu, lê-se esta inscrição: Considero minhas obras como cartas que escrevi à Posteridade sem esperar resposta.

Os tempos são difíceis no mundo, eu sei. Mas nas folhas dos plátanos a luz âmbar amadurece. O outono traz nas mãos amenas tardes de sol, ocres silêncios, travessias e mergulhos na misteriosa partitura da vida.

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Fotos: 1) J. Finatto. Cenário de outono; 2) Heitor Villa-Lobos, cerca de 1922. Fonte: Wikipédia. Autor desconhecido.
Vale a pena fazer uma visita ao site do Museu Villa-Lobos:
http://www.museuvillalobos.org.br/

domingo, 20 de março de 2011

A coragem*

José Saramago


Patricia Kolesnicov é jornalista e argentina, mais jornalista que argentina em minha opinião, mas isto é só uma pequena ideia de literato, colocar a profissão antes da nacionalidade como se estivesse a substituir um mundo por outro. Há anos apareceu-lhe um cancro da mama que enfrentou com a coragem de que só uma mulher é capaz. Não o digo para parecer bem, para ganhar indulgências entre a outra metade da humanidade. Se o digo é simplesmente porque o penso: perante a dor, perante o sofrimento, elas são muito mais valentes que nós. A criança que chora e se lastima por ter esfolado um joelho continua a existir no homem mesmo que passem muitos anos, e quantos mais passem, mais essa presença se notará, a mulher meteu-lhe uma decidida chupeta na boca e, se a não conseguiu calar de todo, ao menos aplicou uma surdina aos seus queixumes, que os tornará relativamente suportáveis a ouvidos e sensibilidades alheias. O homem exibe, a mulher não quer que se note.

Quando o cancro foi vencido, Patricia escreveu um livro a que pôs o título de “Biografia do meu cancro”. Não gostei e disse-lho, mas ela não me fez caso. O livro (publicado também em Portugal, na Caminho) traça sem complacências um percurso duríssimo e, talvez para honrar a palavra daqueles que afirmam existir um humor judeu particular (Patrícia é judia), o relato, que noutras mãos seria grave, inquietante, inclusive assustador, desperta frequentemente em nós um sorriso cúmplice, uma súbita risada, uma irreprimível gargalhada. Com um pouco mais Patricia Kolesnicov tornar-se-ia mestra do paradoxo e do mais negro dos humores.

Patricia acaba de recuperar os direitos sobre a sua obra e não lhe ocorreu melhor ideia que pô-la na internet para uso, disfrute e lição de toda a gente. Leiam-na e agradeçam-lhe. E, já agora, agradeçam-me também a mim que sou seu amigo e escrevi estas palavras justas, mínimas para o que ela mereceria, mas que outros (os seus leitores) farão crescer pela via do respeito e da admiração. Pela coragem.
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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago:
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago:
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente pelo escritor, no seu blog, em 12/05/2009.
A grafia é a de Portugal.
Foto de José Saramago (1922 - 2010) : Acervo da FJS

sábado, 19 de março de 2011

Flor, sim, flores

Jorge Adelar Finatto

























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Fotos: J. Finatto. Passo dos Ausentes.
Carpe diem (Aproveita o dia. De um verso do poeta romano Horácio).