sexta-feira, 10 de junho de 2011

Homem com naufrágio dentro

Jorge Adelar Finatto




O homem morava dentro do escafandro.
Os peixes o acompanhavam aonde quer que fosse.
Habitava o território de uma aquarela marinha.
As tardes povoadas de barcos, gaivotas, ventos, búzios.
Ela partiu certa manhã para um giro em torno da ilha onde viviam.
Gostava de ouvir o rumor azul do mar batendo nas pedras.
Nunca mais retornou.
O homem foi mirar os longes na beira do alto penhasco.
A barba cresceu, o tempo misturou as folhas do calendário, enquanto ele esperava.
A lágrima verteu cálida sobre a face fria.
Ele foi então morar no interior do escafandro.
Homem com naufrágio dentro.
Ela estava deitada no leito submerso do seu coração.
Nada em sua nudez lembrava a cálida presença.
O rosto parecia sereno, feliz.
Os cabelos flutuavam como anêmona.
Ele quis morar com ela no fundo das águas.
O irremediável abismo o chamava.
Muitas noites adormeceu com a esperança de não acordar.
Os peixes desenhavam coloridos traços ao redor do homem para despertá-lo.
Um dia ele acordou nas profundezas da manhã austral.
Uma força impressionante puxou o escafandro, ele enfim subiu,
arrastando suas correntes.
A praia vazia, as palmeiras, o horizonte.
A voz dela se distanciando na trompa dos búzios.
O homem saiu a andar na praia deserta da aquarela.
O que ele fez para suportar todas as manhãs que vieram depois? É um segredo que só os cavalos-marinhos e as anêmonas conhecem.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Memorabilia

Jorge Adelar Finatto

fotos: jfinatto

 
Uma fotografia é um território perdido.

Uma emoção recortada no tempo.

Um instante levantado do esquecimento.

Afeto guardado na gaveta. Um túnel sentimental, alçapão de luz.

Vozes longínquas na cena imóvel. Um cheiro de doce e canela na casa serrana à beira do córrego.

Coração batendo na porta, querendo entrar,  mas não há mais casa.

Um lugar com gente querida vaga no espaço.

O passado no presente.

Uma mundo minimalista.

Um estalo.

Um fragmento de vida, quase nada.

Uma instante eterno.

Memória e oblívio.
 

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Escrever na língua portuguesa

Jorge Adelar Finatto




Um escritor disse que a língua portuguesa tem pouco alcance, é entendida por um número reduzido de leitores no planeta. Lamentou que estamos muito longe da realidade de quem escreve em inglês. Ficamos circunscritos aos países que têm o idioma de Fernando Pessoa como língua oficial, além de antigos enclaves portugueses como Goa e Macau.

Pois eu não sofro essa angústia. As minhas inquietações de escritor amador - no duplo sentido de quem ama o que faz e não sobrevive deste fazer - são mais modestas. Não me tira o sono a maior ou menor influência de escritores de dicção portuguesa no mundo. Não faço distinção entre autores a partir do idioma em que escrevem ou da nacionalidade, mas a partir do sentido de suas palavras.

O português é a nossa língua do coração. É através dela que expressamos nosso ser no mundo. É um prazer imenso falar, ler e escrever na língua de Camões, João Guimarães Rosa, Cartola, dona Maria Antônia da floricultura.
 
Estou mais preocupado com o fato de viver num país com quase 200 milhões de almas e que tem tão poucos leitores. Me entristece não ser lido por pessoas que falam a minha língua e que moram na mesma rua que eu, no mesmo bairro, na mesma cidade e até no mesmo edifício.

A questão que me toca diz respeito à pouca participação na vida cultural das populações dos países de expressão portuguesa, fruto do atraso que também atende pelo nome de injustiça social nesses países.
  
Claro que gostaria de ser lido em Paris, Tóquio e Londres, mas já estou me preparando para não ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. A menos que haja uma revolução no mundo das letras, a começar pela descoberta, por parte de meus vizinhos, de que eu escrevo. Tudo leva a crer que continuarei desconhecido no meu próprio idioma. (Mas se daqui a cinco minutos, ou três mil anos, alguém se debruçar sobre estas linhas, acho terá valido a pena.)

No fundo, no fundo, penso que livros e autores, como todo o resto, estão votados ao esquecimento, com raríssimas exceções. Mas ninguém deve desanimar por isso.

A língua portuguesa e seus escritores têm um lugar no mundo e esse lugar será tanto mais importante quanto maior for nossa capacidade de formar cidadãos leitores em nossas tristes nações.

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Foto: J. Finatto

sábado, 4 de junho de 2011

A casa do anjo

Jorge Adelar Finatto



Antes de começar a chover, arredaram uns móveis bem pesados lá no céu. Um barulho espesso e fundo me fez pensar que talvez fosse a mudança de um anjo. Um anjo bom e humano com suas asas de plumas perfumadas, levando seu chapéu, suas estantes de livros, bicicleta, cama, armários.

Um anjo, quando se muda, deve ter muita coisa pra levar com ele: cartapácios com registros, caderno de milagres, álbuns de fotografia das pessoas por quem tem cuidados, pinturas com paisagens dos campos do Senhor.

As roupas do anjo devem ser brancas como nuvem, inclusive as botas.

Gostava que o meu anjo da guarda viesse mais pra perto de mim.

Meu coração anda necessitado de amigo com sabedoria e consolação. Ele podia até ficar morando aqui comigo. Se quisesse, podia subir no telhado, sentar perto da chaminé, lugar calmo e iluminado, de onde se tem uma boa vista do mundo.

O meu anjo da guarda. Há de expulsar a solidão que toma assento na sala. Nunca mais nenhum mal vai me acontecer. Quando de noite o medo se acercar de mim, o anjo me dará sua mão forte. Então eu dormirei como um menino. E vou sonhar outra vez.
 
 
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Foto: Colonia del Sacramento. Uruguai. J. Finatto
Publicado antes, em 10 de dezembro, 2010.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Cinema de rua

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Este é um blog primitivo. Se o leitor observar, notará vestígios de textos escritos a caneta em guardanapo de papel. Me disseram que o autor desta página pode ser visto em cafés, lendo e rabiscando coisas. Essas anotações ele depois datilografa no computador. O editor do blog é do tempo da máquina de escrever. Para ele, o notebook nada mais é do que uma vetusta olivetti com luzes dentro. Às vezes, desconfio que, em menino, banhou-se nas águas do Dilúvio.

Este é, portanto, um blog arcaico, com raros e valentes leitores. Aqui não se ouvem músicas nem sons temáticos, não se encontram imagens cambiantes nem filmes. Tudo se passa como no tempo do cinema mudo. O fazedor da página deve amar Charles Chaplin (1889-1977).

Eu não devia ficar me dando ares. Sou convidado a escrever sobre cinema. Mas o fato é quase não tenho saído de casa. Ultimamente, passo os dias na biblioteca do modesto solar, nas cercanias da praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre. Abro as janelas dos fundos pra ver os pássaros no breve jardim. Eles vêm alimentar-se. Sirvo-lhes frutas. Em troca me oferecem o canto, dentro da lógica de que não existe almoço de graça.

Saio pouco de casa por temperamento e porque tenho medo de assalto. Não tenho mais fôlego pra correr dos bandidos. Fumei durante muito tempo, hoje me falta o ar. Contrariando o médico, ainda fumo charuto escondido, principalmente nos entrementes de uma garrafa de vinho.

Meu físico assaz patético é um convite aos ladrões na via pública.

Uma pequena história: os primeiros filmes que vi foram aqueles do tempo de menino em Passo dos Ausentes. Não havia sala de projeção naquele fim de mundo. Um dia, no final dos anos 1940, o médico da cidade, Dr. Fredolino Lancaster, numa viagem de estudos à Inglaterra, adquiriu um projetor. Na volta, começou a passar filmes na fachada de sua casa, sobre um lençol branco. As famílias levavam cadeiras para assistir às sessões de filmes mudos, que aconteciam no primeiro sábado do mês. Ali conhecemos o grande Carlitos.

Eram as noites mais esperadas do ano. Alberta de Montecalvino se encarregava de distribuir a pipoca. Nefelindo Acquaviva organizava a plateia. Juan Niebla, o músico cego do bandoneón, executava inefáveis melodias, conforme a história se passava na tela e lhe era segredada na concha do ouvido por Heitor dos Crepúsculos.

O miserável andarilho vaga pelo universo com sua surrada roupa, chapéu-coco e bengala. Carlitos mudou nosso modo de sentir e ver a vida. O vagabundo que vive na pobreza, com modos de sobrevivente e dignidade de cavalheiro, nos devolveu alguma coisa que havíamos perdido pelo caminho. Assistir a um filme de Carlitos é receita infalível contra depressão e vontade de morrer.

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Foto: Chaplin como o vagabundo Carlitos (11 de abril de 1915). Autoria não informada. Fonte: Wikipédia.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Prêmio Açorianos para narrativa longa


O Prêmio Açorianos de Criação Literária, Narrativa Longa – 2011 é uma iniciativa da Secretaria Municipal da Cultura que visa contemplar aqueles que têm uma história longa para contar. As inscrições acontecem entre os dias 1º e 24 de junho, e podem ser feitas no site da Prefeitura de Porto Alegre, na Coordenação do Livro e Literatura (Av. Erico Verissimo, 307) ou pelo correio.

Cada autor pode concorrer com uma obra narrativa longa inédita (ficção, romance ou novela), contendo no mínimo 80 laudas de 30 linhas cada. O concurso é gratuito e abrange escritores nascidos ou residentes no estado do Rio Grande do Sul.

Além da publicação da obra, o autor receberá um prêmio no valor de R$10 mil reais.


Informações:
Coordenação do Livro e Literatura
(51) 3289 8072/8072
Av. Erico Verissimo, 307. Menino Deus – Porto Alegre/RS

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Notícia reproduzida da Coordenação do Livro e Literatura da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, Brasil.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Se um barco de papel

Jorge Adelar Finatto





O irmão rio vive dentro do menino. Convivem desde a infância, através da água limpa bebida diretamente da torneira e dos banhos nas tardes claras e quentes de verão nas pequenas praias. Na tarde muito fria e azul do último dia de maio, ele sai a andar pela beira do Guaíba, que é um jeito todo seu de fugir da realidade quando o peso é muito grande.

Existe uma memória afetiva que os irmana. Mais de uma vez ele teve de partir de Porto Alegre para trabalhar e viver em outras cidades. Sempre que pôde, foi ao mapa e escolheu um lugar com porto para ancorar a saudade do irmão.

Ele leva no bolso do casaco o barco de papel construído com a folha de um caderno escolar. A simples visão do rio tem o poder de acalmá-lo e o deixa perto da felicidade ou seja lá como se chama esse sentimento de integração com o mundo.

Ouve o rumor da água batendo na areia e nas pedras -  e uma sensação de harmonia o invade. Enfim solta o barco de papel e embarca. Sai pelo Guaíba a navegar, subindo e descendo as ondas, girando suavemente o leme, enquanto a vela amarela se enche de vento. O continente ficou ao largo com a angústia e o irremediável.

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Foto: J. Finatto