terça-feira, 28 de junho de 2011

O barco mais triste do mundo

Jorge Adelar Finatto

Photo: J.Finatto

A minha paixão por barcos e navegações sempre me leva a cidades de mar ou rio. Sou um bicho das águas.

O fato de ter nascido e de viver numa cidade serrana é apenas uma das contradições que me definem.

O sonho menino de tornar-me marinheiro jamais me abandonou. Por isso, talvez, essa busca recorrente pelas águas e por embarcações.

A nostalgia dos barcos não sai do meu coração.

Em Coimbra, existe um barco de passageiros com o nome de Basófias, fundeado no pequeno cais, perto do centro da antiquíssima cidade portuguesa.

Resolvi um dia ir ao encontro do Basófias e fazer um passeio pelo Mondego, o rio que me faz sentir saudades de todos os rios do mundo.
Ocorre que, nas três ocasiões em que fui ao cais, não consegui realizar a navegação.

Numa das vezes, o barco estava em manutenção; noutra, não havia passageiros além de mim; numa outra ainda, o tempo mau não permitiu levantar âncora.

Em suma, para meu desencanto, nunca consegui navegar no Basófias. A nave permaneceu, no meu imaginário, como um barco que jamais saiu do cais.
 
A tripulação do Basófias é composta por marinheiros uniformizados a rigor, afáveis no trato. A pose e o orgulho náutico não deixam dúvida de que estamos diante de calejados navegadores.

Às vezes, fico pensando.

O Basófias, nas amarras que o impedem de lançar-se ao rio e realizar o destino para o qual nasceu, é o barco mais triste do mundo.

Mas não deixa de ter sua graça a imóvel embarcação.

De certa forma, o Basófias é a metáfora da existência de muitos.

Dele me enterneço, porque é o retrato de tantas vidas que ficam à margem, esperando no cais, esperando por uma viagem que nunca acontecerá.
 
Photo: J.Finatto
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Fotos: J. Finatto. Vistas de Coimbra (1) e do Mondego (2).
 

domingo, 26 de junho de 2011

Ilha de San Michele, ilha dos mortos

Jorge Adelar Finatto

Photo: J. Finatto

A Ilha de San Michele repousa serena diante de Veneza.

Não devemos perturbar o sossego de seus habitantes. Na gôndola em que navegamos em torno desse território calado, nada deve ser ouvido além do remo na água verde-safira. Entre os altos muros de ocres tijolos, à sombra de ciprestes, os mortos descansam na antiquíssima ínsula.

San Michele é um pequeno pedaço de terra no Mar Adriático, mas é, acima de tudo, uma metáfora.

A ilha dos mortos tem o olhar voltado desde o exílio para a República Sereníssima.

A ilha-cemitério é um testemunho da brevidade humana e um alerta contra as vaidades do mundo.

Façamos silêncio, portanto, nessa viagem pelas cercanias de lugar tão despojado.

A ísola oberva, ao largo, o frêmito dos vivos. Silenciosa mirada. O espelho das águas recolhe o espírito e as cores da cidade que se assenta sobre as cerca de 120 ilhas que formam Veneza. A história veneziana remonta aos primeiros anos da era cristã.

Os habitantes de San Michele conhecem a vocação da Sereníssima para o abismo da beleza e das paixões. Ninguém consegue ficar indiferente ao seu brilho e mistério. Veneza é cruel com os deserdados da sensibilidade, e com a bondade desprovida de malícia. Não é um lugar para onde devam ir os desiludidos da vida. Acolherá bem os amantes, sobretudo os que souberem amar seus labirintos ao longo dos canais tortuosos que se perdem na neblina do tempo.

Photo: J. Finatto

Os mortos habitam a ilha já sem pecado, distantes do ruído e do encanto da cidade amada.

Veneza chegou àquele ponto turvo da civilização em que os falecidos não têm mais para onde ir. A cidade não pode crescer. Espaço para mais um morador é coisa rara em San Michele. Os defuntos que conseguem um lugar vão para lá de barco. O cortejo e a pompa (para alguns existe pompa até na morte) dependem das posses do viajante.

Entre a sombra e a luminosidade, Veneza recebe o coração ávido de memória e arte.

A silhueta negra e esguia das gôndolas desliza lentamente.

As máscaras do carnaval observam de noturnas vitrines.

La Serenissima pertence às águas, ao ruído do vento nos telhados e pontes, aos cavalos de névoa que invadem a Praça São Marcos. Os vetustos casarões, as galerias de arte, os vaporettos e palácios mergulham no fundo espectral dos canais.

Photo: J. Finatto

As cores são fortes como a música das igrejas ao entardecer, os concertos na via pública, o traço febril de Tintoretto no Palácio Ducal.

Estamos de passagem no mundo. Devastados pelo desejo e pela beleza.

A metáfora de San Michele.

Se temos de ser ilhas, que pelo menos formemos arquipélagos com pontes e canais a nos unir, como em Veneza.

O resto são ostras e segredos na bruma dos corações.
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Fotos: J. Finatto

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Os desolados

Jorge Adelar Finatto

Photo: J. Finatto

As manhãs fogem do escuro.

A solidão é um negro capuz que se veste nos retirados da dor.

Tive medo de ver os escombros. Os difíceis haveres do abandono.   Havia uma mulher chorando. Quem? Não divulguei.

O coração humano gira em estranhos círculos. O traçado torto da vida. Quem puder se segure, senão cai no perau. Eu, quando escuto gente chorando, sinto breu andando à volta.

Coisas que vi. Meu coração barroco. Aquele choro me doeu. Mas eu fui. Foi quando meus olhos a divulgaram. A mulher era uma visão sob a pérgula. Eu não sabia o que era beleza até aquele dia.

Estava sentada num banco de pedra cercado de camélias vermelhas, ao lado da fonte. Havia uma escada com seis degraus que terminava no ar. Ligava parte alguma a lugar nenhum. A casa desmoronada no íntimo da pessoa.

A mulher, sua triste alma, naquela ruína. Me aproximei no cuidadoso jeito. Era uma tarde de junho como essa. O frio, frios. A mulher - a visão - fez sinal para eu parar e esperar. O que fiz nos respeitos. Ela se levantou, arrumou o vestido, olhou o céu. Entre as duas mãos largou a face e os cabelos de linho, depois seguiu. O tempo andou.

Eu vivia no lugar perdido, arrostando sol e vento, sem eira, sem beira. Os loucos dias no sanatório do mundo. Os ermos. Caminhos que se andam.

Um dia de fina luz de primavera ela veio em minha direção, pegou no meu braço. Caminhou, caminhamos. Em silêncio. Palavras que se dizem sem falar.  Aconteceu a brilhante estrela caindo no meu caminho.

O punhal que me rasgava por dentro foi saindo, saiu.

Nos acolhemos, reunimos as raras pertenças.

Me tornei sentimento. Sentimentos.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Passos de algodão


Jorge Adelar Finatto
Photo: J. Finatto

Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.

Depois de longa e sentida ausência, ele retornou ao convívio das tardes no escritório. Conheço meu amigo de outros invernos. Partiu em fevereiro sem dizer nada, tão ao seu estilo, e me deixou aqui todo esse tempo sem poder ouvir sua voz cava e rascante, sem poder ver sua plumagem luminosa, seus olhos redondos e atentos.

Sempre sinto falta do seu olhar de banda, da maneira estrambótica de aterrissar num só pé na sacada do escritório. Alziro tem temperamento forte e, às vezes, um certo mau humor o acompanha quando o tempo está pra chuva.

Ele voltou com suas cores vivas para suavizar o inverno. Eu andava mesmo precisado de sua companhia. Não que ele converse muito. No fundo, nem é isso o mais importante.

A silenciosa presença do amigo, sabê-lo perto, partilhando a vida, é motivo de consolo e esperança.

Providenciei hoje a reposição de pedaços de banana no pratinho dos pássaros, fruto muito do seu gosto.

Em certos dias, Alziro deixa a cerimônia de lado, entra no escritório, em passos de algodão, e ensaia uma pequena incursão no ambiente. Olha o teto, os lustres, a mesa, os livros, os quadros, as plantas e relógios, tudo com silenciosa atenção. Faço que não percebo para deixá-lo à vontade.

Do mesmo jeito que chega, o meu amigo vai embora. Como sempre, não se despede e nem diz quando voltará, apenas alça o improvável voo adunco rasgando o ar.

O que importa, diz o coração, é que a velha e boa amizade está rediviva. Se tudo der certo, talvez ele retorne amanhã ou quem sabe depois. Só espero que não me falte tão cedo, porque meu inventário de ausências já vai longo na vida.

Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.

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Foto: J. Finatto. Alziro em visita.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Kabuki do solitário samurai

Jorge Adelar Finatto



Devia ter dito: cuidado, frágil, delicado. Devia ter escrito num cartaz, em letras vermelhas, pregado na testa: atenção, favor não quebrar um coração. Mas não. Havia, qual Adamastor apaixonado, o pudor de não reconhecer a profundidade impossível daquelas águas.

Devia ter anunciado, sem receio, entre mas pise com desvelo. Mas não, todos os avisos foram desligados naquele barco desmantelado, em sua louca travessia pelo mar de seda ondulante.

Como um samurai na leve embarcação de bambu, rumo às ilhas desertas, ele se jogou na colossal aventura. A lua de papel de arroz lilás num céu azul clarinho.

Devia, ó devia, ter imaginado o previsível abismo. Devia ter falado isto e muitas outras coisas, dias de sol e nevoeiro na abertura do postigo, os primeiros ruídos matinais na casa da solidão, os ventos e os mastros desnudos no cais escondido.

A presença de velhas e incuradas cicatrizes o levou a arrostar de peito aberto a temerária navegação.

Na praia, deitado na areia fria, a cabeça entre os braços abertos em candelabro, pernas recolhidas. A chuva molha a face apagada, o quimono com a sanguínea flor bordada, a nódoa do abandono no peito em silêncio.

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Do livro Calado observador do fim do mundo, Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2010.
Foto: J. Finatto

sábado, 18 de junho de 2011

José Saramago, presença e falta

Jorge Adelar Finatto


José Saramago foi um escritor brilhante que nos legou uma obra notável (o que, em si, não é pouco). Mas foi também um cidadão do mundo, um que sempre se posicionou toda vez que sua consciência se deparou com a injustiça. Jamais se escondeu atrás das honrarias literárias e das conveniências do mercado e do poder. Podíamos discordar de algumas de suas ideias e opiniões, mas ninguém ousaria colocar em causa a sua honestidade, o seu apreço incondicional ao justo.

Não sei se houve, na segunda metade do século XX e no início deste, outro escritor com tamanha lucidez ao pensar as difíceis questões que assolam o planeta globalizado (global na violência contra os menos favorecidos, na prepotência e na arrogância dos que têm mando, na injúria aos mais fracos, nunca ou quase nunca na distribuição dos bens e da justiça). Poucos como ele tiveram tanta coragem intelectual. 

Minha admiração pelo autor de O conto da Ilha desconhecida já era grande quando ele - primeiro Prêmio Nobel de Literatura da Língua Portuguesa - veio para o oceano da internet com seu blogue O Caderno de Saramago, em setembro de 2008. Saramago virou blogueiro com a naturalidade de um adolescente candidato a escritor. Fez-se presente em nossas vidas diariamente com seu talento e seu espírito humanista. Tornei-me freguês do Caderno e todos os dias, lá pela meia-noite, ia em busca do alimento servido naquela mesa generosa e acolhedora.

  Ninguém é eterno, mas pessoas como Saramago bem que podiam dar-nos um tempo maior de convivência, permanecendo por mais tempo entre nós. A obra, importante e bela, permanece. A falta do homem, contudo, é incontornável. Às vezes me vejo pensando no que Saramago diria disto ou daquilo, como reagiria diante dos dramas que nos afetam, que crônica escreveria de um dia de sol numa praça de sua amada Lisboa.

Irmão mais velho, irmão bom, o nosso Saramago. Hoje, um ano após sua morte, reproduzo o texto que publiquei sobre o escritor.

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Post scriptum*

Foi um dia difícil aquele 31 de agosto de 2009. De madrugada, em torno de uma e meia da manhã, li, quase por acaso, o texto intitulado Despedida, em que José Saramago (falecido no dia 18 de junho de 2010, aos 87 anos) declarou que encerrava ali seu blog O Caderno de Saramago. Motivo declarado: precisava de tempo para escrever um novo livro.

A notícia era uma tristeza.

Divulguei a informação no site Judiciário e Sociedade (na época, não tinha ainda blogue), tão logo publicada na rede. Até onde sei, o autor português era o único Prêmio Nobel de Literatura a manter um blogue. Isso revela a atitude participante, corajosa e humilde de um escritor consagrado que vinha cotidianamente à internet compartilhar suas opiniões, inquietações, esperanças, sentimentos e valores (penso que cada post pode ser um ato de criação literária e, no caso de Saramago, com certeza era) com leitores do mundo inteiro, em tempo real.

Era uma exposição rara, sabendo-se que o mundo virtual não é exatamente um território fraterno e transparente, havendo de tudo para qualquer gosto, principalmente para o mau gosto.

Pois Saramago deu-nos o exemplo, veio ao encontro de todos.

Escreveu belas e importantes palavras durante o tempo em que manteve o blogue, iniciado em setembro de 2008. Tornou a web mais sensível, inteligente e, sobretudo, mais humana. Ajudou a dar forma mais digna e mais viva ao mundo virtual.

No mesmo texto em que se despedia, acrescentou um PS, no qual deixava uma fresta aberta. Dizia que, se sentisse necessidade de comentar ou opinar sobre algo, poderia eventualmente voltar ao blogue.

Aqueles leitores que, como eu, levaram fé no PS foram recompensados: leram mais alguns raros posts que ele colocou no ar. Mas nunca mais voltou a ser o que era, aquela presença quase diária na vida de muita gente. Acredito que a saúde foi um dos principais motivos que determinaram o afastamento.

A internet ainda é um ambiente muito pobre em cultura e humanismo. É um lugar inseguro, onde sobram maldades, loucuras, vaidades e faltam exemplos, conteúdos, generosidades. Por isso, a presença de um Saramago foi tão fundamental quanto enriquecedora.

Sempre fui freguês do Caderno. Os textos foram reunidos depois em dois livros. Mas confesso a falta que sinto do blogueiro Saramago. O escritor, contudo, está muito vivo nas obras, na palavra partilhada.

Recomendo a visita ao site da Fundação José Saramago e, nele, um passeio pelo Caderno em seu ambiente natural. Certamente, é uma das melhores coisas que existem na internet e já faz parte de sua história.

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Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Foto: Saramago ao tempo em que escrevia o romance Caim. Fonte: acervo da FJS

*Post de 4 de agosto, 2010.
Adeus, Saramago, foi publicado em 19 de junho, 2010.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Andarilho do fim do mundo


Jorge Adelar Finatto



Caminho na tarde fria de Passo dos Ausentes. Ando à procura de ar limpo e claro. Sim, ar bom pra respirar no fatigado cenário de fim de outono (que pode ser, também, de fim de mundo). Nunca se sabe, do jeito que a coisa vai. Na bruma literária dos cartapácios, o mundo está acabando desde que avô Adão e avó Eva - dizem - foram expulsos do jardim.  Quem sabe?

O planeta na capa da gaita, tanta coisa triste acontecendo em todo lugar, tanta gente ruim estragando a vida dos outros. Exausto e sem ver muita saída (a não ser a estrada que me tira de onde não quero estar), subo a serra e saio a perambular.

É preciso fugir sempre do ar sinistro das salas. Quero estar caminhando numa estrada de chão batido como essa no dia em que tudo acabar (refiro-me ao meu fim de mundo pessoal, que o outro é mui vago e, se Deus quiser, não vai acontecer). Deus haja. 

A névoa faz o trabalho de embaçar as espessas lentes dos óculos e molha o capote de lã azul. 

Paciência, é preciso ter muita paciência. Não esquecer de cultivar paciência. Em todo caso, é bom ter uma grande paciência. Ando devagar para exercitar paciência e assim evitar ridículas quedas de andarilho de pouca visão. A valorosa máquina de fotografia, velha e boa Coruja, engatilhada na mão. Arma contra o lado obscuro.

Percebo o quanto o inverno mandou notícias através de seus mensageiros e eu não vi. Oficialmente o inverno chegará ao hemisfério austral em 21 próximo, mas suas tropas já avançaram sobre esta cidade perdida nos Campos de Cima do Esquecimento.

O general nevoeiro com seus enormes fios de cabelo e barba prateados vem à frente, montado no cavalo de nuvem.

Entre galhos desfolhados, árvores esquálidas, ninhos vazios  a descoberto, imagens imprecisas, abre-se, por um efêmero momento, em meio às lentes de fundo de garrafa, a luzerna do céu sobre a água.

Uma breve, rara aquarela. Não dura mais que poucos instantes, o suficiente para iluminar os ramos e a alma. Talvez pra lembrar que há sempre um recomeço. E que nada está perdido.

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Foto: J. Finatto