terça-feira, 12 de julho de 2011

Secreta música

Jorge Adelar Finatto


Photo: J.Finatto


Escrever o poema
é sempre claridade
na caverna

mão estendida
a quem
não conheço

teço a canção
antes do grande
silêncio

em busca da ilha do sol
onde habitam
antiquíssimas magnólias

tudo é dádiva
e esquecimento

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Do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

A parte da orquídea

Jorge Adelar Finatto



A parte da beleza e da justiça que não se distribui, a parte do calor e da ternura que não se dá e nem se recebe, a parte dos sonhos extraviados na travessia, a parte do amor não vivido, essa é a parte da orquídea.

O que ficará desse tempo seco e sem ar?

Levo no bornal o calepino, os lápis de cor, as anotações estelares, o telescópio, o lampião, o impossível mapa e a máquina de fotografia. Vou em busca da orquídea.


Encho os olhos e o coração com suas cores, formas, raro aroma. No limite do penhasco, ou no velho tronco da beira do córrego, sob a sombra da nuvem ou da copa, a orquídea respira e ilumina.

Orquídea, sim, orquídeas. 

O resto não importa.

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Photos: J.Finatto
Texto publicado em 20 de setembro, 2010.

domingo, 10 de julho de 2011

Festival de Cinema de Gramado 2011. Com licença, realidade: chegou a hora da ilusão (III)

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Como dizer não a um pedido de Alberta de Montecalvino? Eu não consigo.  O meu amor pela grande dama de Passo dos Ausentes é desinteressado e nada espera. Por isso, talvez, me faz tão bem (esse sentimento que o puro-egoísta não consegue entender, nem jamais conhecerá).

Pediu-me Alberta, em resumo, para fazer a cobertura do Festival de Cinema de Gramado para O Fazedor de Auroras, a exemplo do que fiz no ano passado. O concurso começa em princípios de agosto. É o mais antigo do Brasil, creio, com exibição de filmes nacionais e estrangeiros.

Amanhã partirei para a estonteante serra gaúcha, na minha vetusta Yamaha 250 (1973), que nunca até hoje negou fogo e é objeto da cobiça de colecionadores. Reservei já o quarto de hotel (a triste sina do andarilho outra vez), com vista para o Vale do Quilombo e para os contrafortes de basalto cobertos de pinheiros que tocam o céu com a ponta dos dedos verdes. Vou com antecedência para entrar no clima desde logo.

O casaco de couro, as botas, a velha manta, arrumo a breve bagagem. Levarei junto, para ler nas altas e frias madrugadas, Onetti, Cortázar, Luis da Câmara Cascudo e o Conde de Lautréamont (Isidore Ducasse). 

Quem me leu no blogue, durante o festival do ano passado, sabe do meu amor imemorial por Fellini e Kurosawa e conhece, também, o quanto arde em mim a paixão pelo cinema que se faz na Argentina nos últimos vinte anos.

Estou, enfim, de partida, fechando meu modesto solar nas cercanias da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre, para mais esta viagem cinematográfica. Em alguns dias virão os primeiros textos. Aceito sugestões de pauta, ideias, opiniões e, claro, a indicação de boas safras viníferas. Aproveitarei a temporada serrana para degustar a caixa de charutos cubanos que Alberta me mandou de presente (escondido do médico, naturalmente, que me proibiu qualquer contato com o fumo e a bebida). Mas, como disse certa vez o querido poeta uruguaio Mario Benedetti, "só quando transgrido alguma ordem o futuro se torna respirável".

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Foto: J.Finatto
Textos 1 e 2 em agosto, 2010.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A cidade escureceu

Jorge Adelar Finatto



A cidade escureceu
não há vaga no emprego
não há vaga na moradia
na condução

na alegria não há vaga

o amor esfriou
a solidão é extrema
o medo é horrível

afora isso
a vida anda uma beleza


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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1990.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Alberta de Montecalvino

Jorge Adelar Finatto

Photo: J.Finatto


Veneza é o sonho de toda Colombina.

Eu passei a vida em Passo dos Ausentes. O que é esse lugar? Um território perdido no vento. A neblina, o frio e a chuva povoam a cidade o ano inteiro. Habito com amargura e ironia esta estação de fim de mundo.

Casei-me aos 16 anos com Dom Alberto de Montecalvino, o Solitário da Biblioteca. Na época ele contava 69 anos. Desde aquele quando, passei a viver neste austero castelo de basalto e vidro. Hoje tenho 70 anos, sou deveras viúva e, às vezes, me perco nos salões da memória. As intermitências.

Daqui de cima, na larga janela da biblioteca, avisto o Contraforte dos Capuchinhos. Gosto muito dessa visão porque por ali é que se vai embora de Passo dos Ausentes. Mas nunca passei naquela estrada. Dom Alberto me pediu que jamais o fizesse. Os medos. Atendi o bom homem. Passaram-se os anos.

O muito amado do meu coração é Pedrolino. Dom Alberto sempre soube, suportou, era como um pai pra mim. O meigo Pedrolino. Amoroso e fiel. Seu amor é casto e resignado. Tem as delicadezas.

Arlequim é o senhor das labaredas. Inconstante e fútil. Nunca vem ao meu coração. Tem meu corpo, jamais minha alma. Com ele muito me rio, é engraçado, leviano. Incapaz de amar alguém além de si mesmo. Não tem sentimento.

O corpo tem fome e a fome seus apetites. Arlequim é malicioso, egoísta, por isso sabe agradar quando quer. Pedrolino é terno, quase um menino, vai direto ao assunto. Não conhece as sutilezas.

Quem pudera reunir, na mesma pessoa, as gratas virtudes. O mundo humano foi bordado imperfeito, eu sei. Tal felicidade ninguém merece.

Ambos os dois, Arlequim, o devasso, e Pedrolino, o amado, são a minha devoção. Cada qual no seu momento. Sou a Senhora da Biblioteca. Viúva mui constante em negras vestes de luto. Os respeitos a Dom Alberto. Tenho a minha idade. Cultivo as devoções, no discreto.

Não me julguem tão depressa. Poupem-me da vossa moral de almanaque.

De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses. Eu vivo os enquantos.

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Texto publicado em 8 de novembro, 2010.
Foto: J.Finatto

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Visitante

Jorge Adelar Finatto

Photo: J.Finatto


Quando o frio chega
eu saio com o bolso
cheio de pássaros
e vou até aí te visitar

tempero o inverno
no teu calor de mulher
de manhã parto feliz
com tua luz nas entranhas


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Do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

A fala do Arlequim

Jorge Adelar Finatto



Querer eu quero, e o querer é tudo. Cumpro os regulamentos do invisível. De silêncio em silêncio, as difíceis passagens. Eu sinto no calado. Os comedimentos. A pessoa sonhada tem certos jeitos. De não se deixar ver, nem tocar, nem sentir, nem sonhar. Os caprichos do ser amado.

As magnólias me doem no inverno de tão belas. Eu lírico. Os tormentos do amador. A musa é do tipo nem aí. Nem sabe de mim.

Arlequim ao relento eu sou. Os rigores da lira. Vivo no austero. Sinto no meu segredo. Amador. Ela não me vê. Eu a vejo. A musa é só o motivo. Eu sou o seu adamastor.

O que dorme no banco da praça. O que mora dentro do casaco e da manta. O do chapéu ridículo. O que fala algaravias no café. O que não suporta gritos. O que senta no cais a olhar as faluas.

Caminho nos meus penhascos. Ruínas são coisas que habitam no íntimo da pessoa. O que se fala e o outro não entende. Um diz aurora, a musa entende anoitecer. As palavras, tonterias.

Sentimento é o ora-veja da vida. Cultivo distância, alimento paciência.

O ser sonhado tem certos olhares. A musa vive num jardim secreto que eu mesmo inventei. A trança de linho desce pelo muro escarpado do castelo. Eu romântico. A vida gira nos esconsos. Os trapos coloridos do meu coração dançam no vento. Amador, amador.

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Foto: J. Finatto. Cena veneziana.