domingo, 17 de julho de 2011

O pássaro em setembro

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
Esses dias invernais de austeras sombras.  Podia começar assim a crônica de hoje. Mas são leves e têm seiva estas breves linhas.

A nesga de claridade aparece entre as pesadas nuvens. Através da janela, apenas a silhueta das árvores e das montanhas se deixa perceber. A neblina estende sua fina capa no espaço.

Há dias veio a neve, espalhou o branco vestido de tule nos telhados de Passo dos Ausentes.

Precisamos atravessar longos dias de frio e exílio. Estamos à espera de que o pássaro retorne com a folha de oliveira no bico, quando setembro vier.

Por enquanto, cada um de nós sobrevive com os resíduos de uma antiga primavera.
 

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Conversa na estação

Jorge Adelar Finatto

Photo: J.Finatto

Sou como os trilhos cobertos de hera da estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. Vive em mim o sentimento das chegadas e partidas dos trens, o vai-vem humano, o sentido da transitoriedade das coisas. Digo sempre às magnólias do meu jardim: nunca esqueçam de mim. Me chamo Juan Niebla, músico de profissão. Meu instrumento é o bandoneón. Tenho 89 anos, sou cego desde os 16.

As sombras espalham suas sedas sobre mim. O pior cego, digo eu, é o que não consegue mais sonhar. Realidade sobeja desfaz a alma, empareda o coração.

À noite todas as coisas se dispersam. É quando o peso de existir se concentra em tons de solidão. Sozinho no escuro, altas horas, recordo minha mãe e o menino que eu fui. Eu mesmo acendo o fogo no fogão a lenha e preparo o café, que bebo fumegante com os biscoitos comprados na padaria de Mocita de La Vega.

Ligo o rádio elétrico na mesa da cozinha e fico escutando estações do Uruguai e Argentina. Nesse momento toca o Noturno nº 2 de Chopin, que eu amo. Nesses enquantos, convoco seres que povoam o território do oblívio: pais, irmãos, primos, primas, tios, tias, amigos, certa mulher, um perfume, pessoas que não estão mais aqui, mas é como se estivessem. Não quero deslembrar. Sou formado dessas partículas.

Muitas vozes falam através de mim e do bandoneón, a voz dos ausentes. Sim.

Habito o interior de uma pintura, dentro de um lago profundo e silencioso. Ali me sento e lembro. E sonho também. E rezo nesses confins.


Vivo tão ausente que, às vezes, passo por mim e não me reconheço. Quando estou há muitos dias desaparecido, saio a me procurar, saber o que houve, por onde andei, o que fiz, com quem falei. As ausências.

Amanhece. Estou na velha estação de trem, sentado no banco de madeira, de peroba rósea, com o bandoneón ao colo. Espero o próximo comboio. Dizem que nunca mais virá. Eu tenho fé que sim, sim, um dia chegará, e quando isto acontecer estarei aqui para receber os passageiros com música. Sou o músico da estação, fui contratado por concurso público em 1940, quando tinha 15 anos. Trabalho desde então na estação do trem de ferro. Atuo também na Banda Municipal e na Orquestra de Câmara de Passo dos Ausentes. Deus e os amigos sabem.

Photo: J.Finatto

Sou cego e minha luz vem da música. A música é a minha claridade. O ambiente à minha volta começou a perder o foco. Um dia as formas e os contornos do mundo me abandonaram. Passei a ver borrões de luz. Até que veio a escuridão completa.

Trago recordações felizes de quando enxergava. A nossa casa entre as árvores na margem do Lago da Ausência. A face da minha mãe me olhando e rindo enquanto estendia roupa no varal.

Os pássaros e os peixes, mil cores. Lembro com clareza o azul e o branco.

O frio nesta época é excessivo. Recolho-me cedo da tarde ao Café dos Ausentes, que fica na estação. Passo horas conversando com o dono do estabelecimento, Nefelindo Acquaviva. Danado inventor de aparelhos voadores, seguidamente se espatifa no chão com seus inventos. É um milagre que ainda esteja vivo. Coisas voam sem parar na cabeça do meu amigo.

Ultimamente, Nefelindo anda mais contemplativo que de costume. Eu conheço esse silêncio. Nesse estado de espírito, limita-se a navegar pelos céus de Passo dos Ausentes no seu dirigível que pode carregar até três pessoas. Eu sou um dos costumeiros e raros passageiros.

Ninguém quer pôr a vida em risco numa geringonça voadora qualquer. Eu não ligo. Embarco no pássaro-invenção do amigo. Gosto de sentir o vento batendo na cara quando sobrevoamos o Vale do Olhar em direção ao Contraforte dos Capuchinhos. Um dia ainda vamos atravessar o oceano, ele promete. Eu acredito.

Converso muito, também, com o fantasma de Heitor dos Crepúsculos, suicida arrependido que perambula pela ruas e praças de Passo dos Ausentes. Um bom sujeito, uma das tantas almas perdidas que vagam pelos Campos de Cima do Esquecimento.

No cair da noite, volto pra casa com meu capote de lã azul-marinho, meu chapéu de aba, os óculo escuros, o bandoneón que levo nas costas como mochila e a bengala de bambu cor de açúcar queimado, construída especialmente para mim pelo honorável Akira Munefusa, sensível artista e poeta que vive numa cabana na beira do Lago da Ausência.

Anoiteço outra vez.

Vou tomar café com meus fantasmas.

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Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Seu instrumento é o bandoneón. Além do posto na estação de trem abandonada, toca na Banda Municipal e na Orquestra de Câmara de Passo dos Ausentes.
Fotos: J.Finatto

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Elegia 1975


Jorge Adelar Finatto

Photos: J.Finatto


O vento não traz notícias de longe
todos foram dormir depois do vinho
só nós permanecemos incomunicáveis
debaixo das estrelas e do frio

um que outro fantasma passa
fugitivo na calçada
não perguntamos pela vida
passada ou futura
habitamos cada momento
com olhos de prisioneiros violentados

escutamos o silêncio que vem do rio
a fome imensa de liberdade
que nos anima e nos faz fortes
na tempestade que nos enlaça
nos joga contra a parede

nosso rosto parece ao de toda gente
mas trazemos segredos inviolados
noites de lobos feridos

olhamos a cidade morta
nenhum anjo nos acalanta
estamos vivos
e nunca doeu tanto

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Do livro Claridade, coedição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Secreta música

Jorge Adelar Finatto


Photo: J.Finatto


Escrever o poema
é sempre claridade
na caverna

mão estendida
a quem
não conheço

teço a canção
antes do grande
silêncio

em busca da ilha do sol
onde habitam
antiquíssimas magnólias

tudo é dádiva
e esquecimento

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Do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

A parte da orquídea

Jorge Adelar Finatto



A parte da beleza e da justiça que não se distribui, a parte do calor e da ternura que não se dá e nem se recebe, a parte dos sonhos extraviados na travessia, a parte do amor não vivido, essa é a parte da orquídea.

O que ficará desse tempo seco e sem ar?

Levo no bornal o calepino, os lápis de cor, as anotações estelares, o telescópio, o lampião, o impossível mapa e a máquina de fotografia. Vou em busca da orquídea.


Encho os olhos e o coração com suas cores, formas, raro aroma. No limite do penhasco, ou no velho tronco da beira do córrego, sob a sombra da nuvem ou da copa, a orquídea respira e ilumina.

Orquídea, sim, orquídeas. 

O resto não importa.

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Photos: J.Finatto
Texto publicado em 20 de setembro, 2010.

domingo, 10 de julho de 2011

Festival de Cinema de Gramado 2011. Com licença, realidade: chegou a hora da ilusão (III)

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Como dizer não a um pedido de Alberta de Montecalvino? Eu não consigo.  O meu amor pela grande dama de Passo dos Ausentes é desinteressado e nada espera. Por isso, talvez, me faz tão bem (esse sentimento que o puro-egoísta não consegue entender, nem jamais conhecerá).

Pediu-me Alberta, em resumo, para fazer a cobertura do Festival de Cinema de Gramado para O Fazedor de Auroras, a exemplo do que fiz no ano passado. O concurso começa em princípios de agosto. É o mais antigo do Brasil, creio, com exibição de filmes nacionais e estrangeiros.

Amanhã partirei para a estonteante serra gaúcha, na minha vetusta Yamaha 250 (1973), que nunca até hoje negou fogo e é objeto da cobiça de colecionadores. Reservei já o quarto de hotel (a triste sina do andarilho outra vez), com vista para o Vale do Quilombo e para os contrafortes de basalto cobertos de pinheiros que tocam o céu com a ponta dos dedos verdes. Vou com antecedência para entrar no clima desde logo.

O casaco de couro, as botas, a velha manta, arrumo a breve bagagem. Levarei junto, para ler nas altas e frias madrugadas, Onetti, Cortázar, Luis da Câmara Cascudo e o Conde de Lautréamont (Isidore Ducasse). 

Quem me leu no blogue, durante o festival do ano passado, sabe do meu amor imemorial por Fellini e Kurosawa e conhece, também, o quanto arde em mim a paixão pelo cinema que se faz na Argentina nos últimos vinte anos.

Estou, enfim, de partida, fechando meu modesto solar nas cercanias da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre, para mais esta viagem cinematográfica. Em alguns dias virão os primeiros textos. Aceito sugestões de pauta, ideias, opiniões e, claro, a indicação de boas safras viníferas. Aproveitarei a temporada serrana para degustar a caixa de charutos cubanos que Alberta me mandou de presente (escondido do médico, naturalmente, que me proibiu qualquer contato com o fumo e a bebida). Mas, como disse certa vez o querido poeta uruguaio Mario Benedetti, "só quando transgrido alguma ordem o futuro se torna respirável".

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Foto: J.Finatto
Textos 1 e 2 em agosto, 2010.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A cidade escureceu

Jorge Adelar Finatto



A cidade escureceu
não há vaga no emprego
não há vaga na moradia
na condução

na alegria não há vaga

o amor esfriou
a solidão é extrema
o medo é horrível

afora isso
a vida anda uma beleza


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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1990.