sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Ah, uma tarde solto por aí

Jorge Adelar Finatto


barco de papel: j.finatto

Ah, uma tarde solto por aí. Navegando pelo rio no meu barco de papel. Ao largo do continente, sem compromissos, distante das mesquinharias, das bocas que nunca se calam, da violência, das cotidianas grossuras e vaidades.

Esqueço de mim, de ti, da nossa infinita desimportância no arranjo cósmico.


Deito no fundo do barco, olho as nuvens. 

Descortino o voo leve, lento e branco da gaivota. Só escuto o som do vaivém das ondas batendo na quilha.

Ah, um dia longe da cidade, disso tudo que tira a cor da alegria e corrompe a força da beleza.

Coração ao vento, sem hora pra voltar. 


quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A caixa do mágico


Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. saudade de Passo dos Ausentes


Tão divagado, tão ermo, tão falto de poder.

Um bardo não devia sair por aí numa hora dessas.  A temerária cidade e seus perigosos caminhos.

Alguém falou que é tarde demais, a utopia afundou, o encanto acabou, é melhor desistir dos sonhos.

Eu sei que é madrugada, faz frio, setembro dobra a esquina e quase tudo está perdido.

Trago a poesia na caixa de mágico.

Por isso abri o guarda-chuva e atravessei o medo da cidade. Por isso fugi da escura casa. Por isso, pra não secar o rio dentro de mim, estou aqui perto da tua ausência.

Para ir ao teu encontro escolhi as melhores palavras no livro dos espantos. Nessa longínqua hora. 

Carrego um lírio numa mão e o chapéu cheio de pássaros na outra. Eles não param de sair.

Os meus pássaros voam para ti e em teu nome levantam o róseo véu da aurora.


segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Vingança

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto



O que eu faço sentado
na solidão desta praça
que o outono pintou
de amarelo?

eu me vingo das salas


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Do livro Claridade, Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.


domingo, 28 de agosto de 2011

Promessa do sol

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto



Estou vivo e lúcido
na tarde da América do Sul

entre palmeiras verticais
e andorinhas azuis

entre o que restou do teu jeito
e a promessa generosa do sol
batendo na minha cabeça



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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.


sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Navegador de barco de papel


Jorge Adelar Finatto

O poder e a vaidade perdem o homem.
Barcos de papel, às vezes, podem salvá-lo.


photo: j.finatto. cais de porto Alegre


O pequeno barco do caderno escolar levanta âncora no bolso do homem sério e triste.

Um homem circunspecto, com tantos casos para decidir.

Quem o vê saindo assim para o trabalho, de manhã cedo, terno, gravata e pasta, não imagina o que leva no coração.

Olha o mundo através das grossas lentes dos óculos, carrega perplexidades e sonhos que ninguém percebe.

O barco de papel desliza entre as vagas do dia pesado e cinza.

O navegador sonha a fuga do real, ao avistar o Guaíba da janela do gabinete.

A cidade vive dentro do rio uma existência invertida. No fundo das águas habitam seres harmoniosos, os gestos são calmos, existe esperança.

O navegador planeja o exílio do mar de conflitos e sofrimentos em que mergulha todos os dias.

No fim da tarde, caminha até a beira do rio, retira o barco do bolso, solta-o na água. Larga a pasta, tira a gravata, o casaco, os sapatos, empurra a embarcação e salta para dentro.

O vento com cheiro de água doce e dos peixes que nela vivem expande a vela rumo ao Sul. Na quilha do barco o colorido infantil dos lápis de cor.

As ilhas observam a absurda solidão das pessoas no continente, a falta de amor, a falta de justiça.

Ele deita-se no fundo do barco, exausto, as mãos atrás da nuca. Olha as estrelas e a lua que aparecem aos poucos no céu. Anseia um lugar em que possa ter tempo pra sentir, pensar, conviver, olhar a paisagem.

Peixes prateados saltam pelos lados do barco, nadando na mesma direção.

O sol se põe.

Estar só no crepúsculo é o de menos.

Difícil é largar o barco dentro d’água, soltar a vela, buscar outras margens.

Difícil é não ser igual à pedra nem se dar por vencido.

No fim de todas as tardes, ele foge com o menino que mora dentro dele.

A felicidade civil de sentar no barco, olhando a cidade de longe, o movimento dos aguapés, a aquarela do pôr do Sol.

O rio abraça a cidade e suas dores.

O navegador do barco de papel presta atenção no ritmo das ondas, nas gaivotas, biguás, reflexos.

O rio está povoado de céu e peixes (sim, há peixes vivos, estrelas e nuvens dentro do rio).

Sinos tangem a música do entardecer sobre as águas do Guaíba.

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Texto publicado em 02 de janeiro, 2010.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Viagem aos moinhos de vento

Palomar Boavista

Moinhos de vento em Campo de Criptana. Foto de Lourdes Cardenal, 2004. Fonte: Wikipédia.


Não há nenhuma alma nas ruas desertas e nevoentas de Passo dos Ausentes a essa hora tardia. Inútil, com a bruma desfiando suas brancas sedas por aí, querer perscrutar o firmamento atrás de corpos celestes. Nenhuma galáxia, nenhuma estrela, nenhum cometa, nenhum farelo de luz. O frio congela os ossos e os astros.

Sentando no observatório, na cadeira de balanço, me enrolo no velho pala de lã crua. Deixei acesa a luminária de fraca claridade, no canto da sala, ao lado do telescópio. Estou meio dormindo, meio em vigília.

Sonhei que o avô me esperava lá fora, na rua, sob o poste de luz amarela. Me acenou embaixo do guarda-chuva e do boné, fazendo sinal para ir ao seu encontro. Fui. 

Cego, o avô se apoiou no meu ombro, como sempre fazia, e saímos a caminhar na escuridão. Falou das coisas da vida e da saudade que sentia do mundo.

- Trouxe os óculos? - perguntou. Nunca esqueça dos óculos.

O avô ama os livros que leu no tempo em que ainda havia luz nos seus olhos. Alguns trechos guardou na memória. No sonho, ele me pediu para acompanhá-lo numa visita a Campo de Criptana, pequena povoação na região de La Mancha, na Espanha.

- Foi ali que Dom Quixote travou a famosa batalha contra os gigantes, que, na verdade, eram apenas moinhos de vento. Vamos lá conhecer a maravilha de perto. Criptana é a cidadezinha mais bonita da Mancha, com suas casas brancas contra o céu azul. Leia pra mim, Palomar, em voz alta, o capítulo VIII, primeira parte, do Dom Quixote, antes de entrarmos no pueblo.

Acordei com o som da chuva batendo no telhado. Tirei os óculos, me enrodilhei no pala feito gato e cerrei os olhos outra vez. Voltei a caminhar com o avô, ouvi suas histórias e visitamos juntos a terra dos moinhos de vento, nessa noite fria de névoa e ausência.

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Palomar Boavista é astrônomo-mor em Passo dos Ausentes.


segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O náufrago que escrevia na água

Jorge Adelar Finatto


pintura: Maria Machiavelli


O náufrago escreveu sobre a falésia da ilha, em verdes letras de folhas de bananeira, um pedido de socorro. Estava no lugar havia muitos dias, em meio a palmeiras, pássaros, cachoeiras, borboletas e ventos.

A ilha era muito isolada. Nem risco de avião havia naquele céu austral.

O tempo passou e nada acontecia. O náufrago começou então a escrever breves textos na areia. Não sabia se aquilo era poema, conto, crônica, desabafo ou simples diário de náufrago.
 
Registrava coisas, sentimentos, estados de espírito, sonhos, pesadelos, esperanças, fugas, mistérios. A água do mar vinha e apagava tudo quando a maré enchia.
 
O náufrago não tinha lápis nem calepino (gostava de dizer esta palavra esquisita em voz alta, no silêncio da ilha).

Um dia ele desistiu de ser descoberto. Ninguém ia escutá-lo mesmo no fim de mundo onde vivia.

Passou a escrever direto na água com a ponta do dedo.
 
As letras azuis eram desenhadas nas linhas brancas da espuma. Escrevia com o fervor das primeiras e últimas palavras dos afogados, escrevia para sobreviver naquele mar de solidão.

As palavras afastavam-se da ilha e desfaziam-se em direção ao horizonte.

O náufrago era agora o homem que escrevia na água.

Escrevia para os peixes e as gaivotas.