terça-feira, 27 de setembro de 2011

O postigo de Deus

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


 
As manhãs amadurecem no coração da treva.

Como pode alguém tão pequeno querer voar tão longe, sonhar tão alto?
 
Em meio a portulanos e cartapácios, Claudionor, o anacoreta, alimenta o sonho. A quimera do grande encontro o habita.

Ah, as horas passadas na biblioteca da caverna, no Contraforte dos Capuchinhos. A cela onde ele se refugia em torno da mesa, viajando nas páginas, no telescópio, na bruma do tempo.

Ah, essas travessias desoladas pelo invisível. Aqui onde ele se queda a duvidar.

As místicas visões o perseguem desde a infância nestes Campos de Cima do Esquecimento.
 
A mirada do infinito saber, a vertigem do pensar, a buscada unidade com o universo. Não ser mais um estrangeiro no planeta.
 
Os mistérios do vir-a-ser.
 
Um dia - ele bem sabe - a face de Deus iluminará o postigo da caverna. Então tudo o mais será farelo de luz caído das estrelas.
 
Por enquanto, o trevamundo. Escuridão a galope pela estrada.

Urgentes prosopopéias o ajudam a povoar o silêncio, a construir o neblinoso caminho.

Ah, as solitárias caminhadas pela Rua do Farelo, em Passo dos Ausentes.

Prisioneiro do efêmero, Claudionor se lança na antieternidade do fugaz instante.

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Claudionor, o anacoreta, é místico e astrônomo amador. Vive no Contraforte dos Capuchinhos, em Passo dos Ausentes.
Foto: J. Finatto
Texto revisto,  publicado em 09 de março, 2011.
 

domingo, 25 de setembro de 2011

Celebro a vida que virá

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Un petit espoir très féroce:
c’est moi!
                                             Robert Lalonde


Ainda não nasci
sequer faço parte da paisagem
escuto uns gritos do outro lado: não estou

a sombra é apenas o começo
do previsível caminho
que vai dar na aurora

ainda não nasci
no entanto, é para breve

celebro a vida que virá
rompendo a escuridão
explodindo em alegria
como a primavera depois do inverno

sei onde isso terminará:
flor no extremo do ramo
beleza enchendo o vazio

faço do silêncio
um grande bosque
onde borboletas passeiam
pássaros inventam a claridade
com seu canto

imagina uma faísca que, súbito, paira no ar
uma palavra procurando um oco de boca
uma pequena luz que cresce: sou eu


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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O espantalho no milharal

Jorge Adelar Finatto




Se parar de escrever na casa do labirinto, nesta difícil procura de claridade, se o silêncio e o medo crescerem ao meu redor como um vasto milharal habitado por estranho espantalho vestido de negro, com grossas lentes nos óculos que não ampliam a progressiva e asfixiante pequenez das coisas, esse tal que desistiu do ofício de espantar, sendo ele próprio o contumaz espantado no oblíquo território do existir, se os amigos esquecerem de me visitar nas ermas noites de inverno, se um pássaro soltar o canto, em junho, no galho da araucária diante da minha janela, se essas palavras tiverem servido, ao menos, pra distrair o leitor (?) do problema da morte e da inefável falta de sentido da vida, só por isso a luta terá valido a pena.
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Foto: J. Finatto. Araucária vista da janela, em Passo dos Ausentes.
Texto publicado em 13 de abril, 2011.
 

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Os passos na calçada

Jorge Adelar Finatto



 
2 horas da manhã. Nenhum cochilo. Ele vara a escuridão com os olhos ora abertos, ora fechados.

Está ocupado ruminando ausências no escuro.

De repente, entra pelo quarto, através de veneziana, uma aragem, um certo aroma.

Ouve os passos da primavera, lá fora, na calçada. Ela caminha como uma jovem mulher, senhora do mundo, espalhando beleza, desejo e vida.

Ele toca com a ponta dos dedos os óculos, na mesinha de cabeceira. Quer ir até a janela vê-la passar na sua calada rua.

O som dos passos diminui até cessar. Ele desiste de levantar. A cama está quente, ainda faz frio, amanhã é dia de trabalho. Em silêncio, agradece a Deus por outra primavera.

Sabe que vive um tempo raro, delicado. Como a pele das rosas.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A câmara de Manoel de Oliveira faz 80 anos

Jorge Adelar Finatto


photo: Manoel de Oliveira. Fonte: Correio do Porto*


Na universidade, fui aluno rudimentar das aulas de cinema. Só hoje, muito tempo depois, me dou conta do que aconteceu. Ou melhor: não aconteceu. Fomos rudes alunos, porque nos faltou o essencial: observar, aula após aula, ano após ano, com toda atenção, os movimentos da câmara de Manoel de Oliveira.

Deveríamos ter aprendido a ver cinema com os olhos do cineasta português. Mas fomos por outros caminhos.

A sintaxe intimista e inaugural de Manoel de Oliveira respira silêncio, mistério e revelação. Ao mesmo tempo, poucas vezes se veem imagens com essa qualidade.

Na sua lenta e rigorosa composição, a câmara deste que é o mais antigo cineasta em atuação no mundo (completará 103 anos em 11 de dezembro próximo) nos leva por ermos, sinuosos, encantadores itinerários.

Manoel de Oliveira estreou em 19 de setembro de 1931, com o filme "Douro, faina fluvial". A péssima reação de parte da plateia presente naquele V Congresso Internacional de Crítica, em Lisboa, teria levado o dramaturgo e escritor italiano Luigi Pirandello a perguntar se, em Portugal, se costumava aplaudir os bons filmes com os pés...

O filme não agradou os portugueses por mostrar pessoas pobres, às vezes descalças, na dura lida do comércio de peixes. Os estrangeiros, por outro lado, gostaram muito. Iniciava-se ali um novo modo de pensar e fazer cinema.

A Manoel de Oliveira a nossa homenagem.

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* www.correiodoporto.com

domingo, 18 de setembro de 2011

Explode na cidade a primavera

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


As praças e ruas recebem a visita dos pássaros.

Setembro, em Porto Alegre, oferece belas pinturas e concertos ao ar livre. Muitas flores e plantas espalhadas no espaço público e em jardins particulares. Fotografei uma roseira numa calçada aqui perto, um escândalo.

photo: j.finatto

Pessoas cansadas dos seus tugúrios, que também atendem pelo nome de apartamentos, vêm para as ruas no sábado e no domingo.


photo: j.finatto


A arte não está só nas galerias, nos livros e museus (às vezes, nem aí está). Está nos olhos de quem sabe olhar as coisas simples.


photo: j.finatto

O que importa é a qualidade da experiência estética. Pode ser um ipê amarelo, um canto de muro, uma floração na esquina.


photo: j.finatto

A beleza está em toda parte. Um exagero poético, vá lá.

photo: j.finatto



Explode na cidade a primavera.


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O mundo na capa da gaita

Jorge Adelar Finatto


pintura: Maria Machiavelli
Vida difícil em todo lugar. Com raríssimas exceções, ninguém se sente muito à vontade no planeta nos últimos anos, tantos são os problemas, os medos, as violências e inseguranças que nos cercam. O mal-estar se espalha como aqueles círculos que se formam na água quando atiramos uma pedra.

Penso especialmente naqueles irmãos de certas regiões de África, que sofrem com o drama da falta de alimentos, lá onde há gente que morre de fome. Este o quadro mais doloroso.

Fruto de uma desordem mundial, de um esquecer-se do outro, de um culto sem precedentes à vaidade e ao todo poderoso deus do dinheiro e do mercado. Países ricos buscam saídas individuais para a crise da economia "globalizada" (essa que reparte prejuízos e concentra riquezas).

Os salvadores da pátria do "faça como quiser" já não conseguem encontrar soluções para suas casas que desmoronam e seus iates que afundam na baía.

Os mares e as terras do mundo, com sua generosa fertilidade, são capazes de abastecer com relativa facilidade os sete bilhões que seremos até o fim do ano. Mas qual o quê! "Faltam" alimentos para os pobres.

A Europa, quem diria, submete com regras duríssimas as comunidades de economias mais atrasadas da zona do euro.

Aqui no Brasil, onde existem condições para melhorar a vida de toda a população, a corrupção instalada rapina o dinheiro público, esse que faz falta na saúde, na educação, no sistema penitenciário, na cultura, na moradia, na qualidade de vida das pessoas, etc.

Alguém já fez a conta, ainda que aproximada, de quanto os gastos com a indústria da guerra, nos Estados Unidos, são responsáveis pelo afundamento da economia daquele país?  

Por que não se proíbe simplesmente a fabricação, a compra e a venda de armas no mundo? Já existe armamento suficiente para fazer quinhentas guerras mundiais.

Os desastres ambientais se intensificam por fatos do homem. Há países que não têm reservas de água potável para os próximos anos. O que vai ser?

Um pouco de solidariedade poderia salvar muita coisa. Mas, como tudo na vida, só vai acontecer se começar dentro de cada um. Nos pequenos e invisíveis gestos do dia a dia, na relação com as pessoas (colocar-se no lugar do outro), no respeito incondicional à vida e ao bem comum.

Isso tudo é velho e sabido como andar de pé. Mas por que será que não aprendemos?