segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O menino e o cego

Jorge Adelar Finatto


O menino caminha
pela mão do cego

o cego carrega os livros
na velha mala de couro

traz a alma partida
o violino pendurado ao ombro

cavaleiros passam lentamente
na noite da rua São João
dormem sobre os cavalos
com grossas capas azuis
os chapéus caídos nos olhos

vão para o olvido

o menino e o cego
a torre e o sino
a estação
a lua fria
o trem que parte

o vento agita as folhas

gira atônito
cata-vento
do tempo

a vida não será
mais a mesma

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Poema do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
Ilustração de Paulo Porcella.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O escândalo continua (ou uma orquestra de sopros e cores no jardim)

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

As flores perderam a noção do razoável e do pudor. É difícil olhar para o jardim e não corar (como um frade de pedra não pode fazer). Estava no escritório, na dura faina, olhando o mundo pela janela (a triste sina), quando comecei a ouvir instrumentos de sopro lá fora.

Caminhei até a breve varanda da clausura. Descobri, entre aromas, um conjunto floral em concerto, tocando seus instrumentos.



Desnecessário dizer que daí por diante perdi a concentração no que fazia. Passei o resto do dia esticado na cadeira de balanço com aquelas músicas, aquele perfume, aquelas finas cores.

photo: j.finatto


Alguma coisa está fora do controle. A beleza brutal e desumana dessas flores açula, em meio ao caos, os corações secos, abre as janelas do sentimento.

Não sei como essa insensatez vai acabar. Pra falar verdade, não estou muito preocupado. Afinal, dizem, não há mal que sempre dure.

photo: j.finatto


quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Vitorino Nemésio, mestre da palavra

Jorge Adelar Finatto

photo: Vitorino Nemésio*


Esta saudade desesperada e impertinente que tenho do que já fui.** V.N.

No mês passado, em Lisboa, uma tarde ia pela Rua Garrett, no Chiado, decidido a encontrar algum livro do poeta, cronista e ficcionista português (açoriano) Vitorino Nemésio (1901-1978). Conhecia-o vagamente, de ouvir falar.

Entrei numa livraria e descobri na estante Viagens ao pé da porta, um de seus vários livros, volume de crônicas editado pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, de Portugal. Entusiasmado com o achado, fui sentar no café A Brasileira para a costumeira pausa do cafezinho e da leitura.

Impressionou-me muito o texto do autor nascido nos Açores (as ilhas outra vez, onde também repousa a origem materna de Fernando Pessoa).
 
Eis um senhor  escritor e um notável humanista, combinação que só raramente encontramos. Combinação que faz de um escritor um grande escritor.

Às vezes, o indivíduo escreve bem, mas não tem lá muito o que dizer. São escritores ligeiros, cuja profundidade é a de um rio a que uma formiga atravessa com a água pelas canelas.

Em outro caso, a pessoa tem conteúdo, mas não talento para expressar-se com arte através da palavra escrita.

Nemésio, que foi professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se aposentou (lecionou, também, na Bélgica e no Brasil, por algum tempo), é um caso sério da escrita e do pensamento em língua portuguesa.

Ouçamos um pouco as suas palavras:

Cartas-prefácios já se não usam. Algum desabafo, em volume, é logo levado à conta de prolixidade e pieguice. Tudo se tornou tecnicamente curto e teleimediato...

Mas eu fui criado com o dito de "quem não desabafa rebenta", e preciso expandir-me.

Este livro é fraca coisa: Viagens ao pé da porta - confissões de um pequeno filósofo (como dizia o nosso defunto vizinho Azorin) emparedado numa aldeola das abas da Cumeada de Coimbra. É um livro feito dos papéis avulsos de uma longa colaboração na rádio e na imprensa periódica, em cujo impressionismo pude contudo guardar a liberdade interior da reflexão e da poesia. (...) [Dedicatória]

Deus dá o peixe à rede, o grão ao arado, a lenha ao machado, a palavra à pena e a pena à galinha. Depenei a minha galinha, aparei a minha pena, copiei o meu traslado Ao calor do meio-dia a fonte rendeu a última gota de água. O pote está cheio. Oxalá a água chegue para enganar a sede, - pelo menos ao dono do pote... [Filosofia aldeã]

Por que será que tudo na vida se não reduz a silêncio de campo e a sombra de árvore? A verdade é que trememos como varas verdes diante da morte, que já é raro apanhar-nos na cama, como apanhou nosso avô, mas vem sorrateira e mecânica no guarda-lamas de um camião ou na mesa de mármore da cervejaria de esplanada, secção de doenças súbitas. (...) [Terceira crônica das águas novas]

O segredo da nossa segurança espiritual consiste afinal em sabermos que a perpétua emboscada não desarma. (...)[Páscoa na aldeia]

Assim é este artesão do verbo: dono de um texto altamente elaborado, ao mesmo tempo que poético, simples e profundo. Seu invulgar humanismo (foi amigo e correspondeu-se com o filósofo espanhol Miguel de Unamuno) nos leva a ver a vida com resignada esperança e dignidade.

Demorei a chegar ao cais do belo escritor açoriano Vitorino Nemésio, cheguei talvez com atraso. Mas, enfim, cheguei.

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*Quando for conhecida a autoria da foto, será dado o devido crédito.

** Frase extraída do texto Terceira crônica das águas novas.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O escândalo das hortênsias

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Passo dos Ausentes


As hortênsias resolveram embelezar o mundo. Era só o que faltava.

Em meio a tanta desilusão, tanta feiura das almas, tanta gente má e casca grossa, vêm agora as hortênsias e decidem distribuir beleza e graça. Um negócio muito estranho.

photo: J.finatto

Um verdadeiro absurdo aqui em Passo dos Ausentes.

Quando achava que não tinha mais jeito, quando nada mais esperava diante do triste espetáculo humano, as hortênsias surgem em silêncio, espargindo cor e delicadeza sobre cinzas.

Essa beleza é mesmo uma violência contra o cidadão acostumado ao deserto e ao cotidiano tapa na cara.

Nem maldizer a vida em paz a gente pode mais.


photo: j.finatto

sábado, 10 de dezembro de 2011

As últimas páginas

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Quem me espera, a essa hora, na Travessa da Espera, no Bairro Alto, em Lisboa?

Eu passo invisível por vielas retorcidas em mil labirintos. Em cada esquina, uma nesga do Tejo e um fado. 

Anoitece, personagens saem das portas como das páginas de velhos livros, ganham as ruas, carregando seu abismo, sua dor, seu sonho, sua dificuldade de viver.

Um fantasma caminha rente às portas das tascas, o chapéu caído nos olhos.

As janelas abrem-se para o rumor e os cheiros que vêm da calçada.

Cada um de nós é um romance, mergulhados estamos no livro da própria existência, escrito por não se sabe que caprichoso autor.

Mas quem quer ler as últimas páginas?

Ninguém me espera na Travessa da Espera.


quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Anelo de luz

Jorge Adelar Finatto

 
lua crescente entre galhos, Lisboa. photo: j.finatto


Um anelo de luz entre as folhas, um vislumbre de claridade. Uma passagem vista da terra, olhar de um calado observador. Fragmento lácteo do universo. Um lugar distante e particular como cantar para si mesmo.

E tu caminhas no frio, o bolso cheio de pétalas vermelhas, por um caminho coberto de folhas não escritas. Um vocabulário de buscas e silêncios.

Passageiro e passagem se  misturam. Caminham perto da estrela. Viagens são anelos guardados no fundo do coração. Quem precisa de avião, se já nascemos com asas?

Uma pergunta atravessa a ponte.  Uma trincheira no vazio.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Melody Gardot e o retorno do pássaro

Jorge Adelar Finatto

Flores com bicicletas ao fundo. Amsterdam. photo: j.finatto


No retorno de Amsterdam a Passo dos Ausentes, onde acabo de chegar, escutei Melody Gardot nos fones de ouvido, dentro do pássaro prateado, na travessia da noite atlântica.

Descobri Melody no quarto de hotel, na Place de la Sorbonne, Quartier Latin, em Paris, onde gosto de ficar. O dia estava frio e nublado, resolvi ler e ouvir música numa rádio que só toca jazz. Lá pelas tantas, veio aquela voz sentida, cálida, íntima como de alguém que conhecemos há muito tempo.

Anotei o nome e no outro dia, na loja de discos, adquiri seus dois cds: Worrisome heart My one and only thrill ( Incômodo coração e Minha primeira e única emoção, em tradução livre). Apesar do sobrenome, ela não é francesa, mas americana, nascida em Nova Jérsei, em 2 de fevereiro de 1985.

Compositora, Melody diz as coisas que impressionam seu jovem coração ferido, com a voz mais doce desse mundo. Na apresentação do primeiro disco, agradece aos homens que maltrataram seu sentimento, porque deixaram material para compor suas músicas. Tudo tem dois lados.

Interessante a maneira como Gardot encontrou a música. Um dia, enquanto andava de bicicleta, aos 19 anos, foi atropelada por um automóvel. O início de sua carreira está relacionado com esse acidente, do qual lhe resultou traumatismo craniano. Seguindo sugestão de seu médico, Melody voltou-se para a composição. Criou algumas canções quando ainda estava de cama, incapaz de caminhar.

A musicoterapia deu frutos e ela fez uma pequena gravação a que chamou de Some Lessons - The Bedroom Sessions, base de Worrisome heart. Tudo tem dois ou mais lados.

Recomendo aos meus dois leitores que procurem ouvir essa doce e inspirada Melody Gardot. Acho que gostarão.

A vida, enfim, sempre se renovando, trazendo o novo, luz benigna em meio à escuridão.

O pássaro pousou outra vez. Vou agora respirar o ar das montanhas, abrir as janelas, olhar longe, escutar um pouco de silêncio.