quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Bom dia, Mano Bisol

Jorge Adelar Finatto


pinturas: Maria Machiavelli


Habitava sozinho a quitinete diante do rio Guaíba. Um microcosmo formado por uma sala, que também era quarto, uma cozinha, um banheiro e uma janela.

Uns livros empilhados contra a parede, um radinho de pilha para ouvir as músicas da rádio da universidade, as últimas notícias (o mundo estava por acabar, só não sabia o dia).

Havia também quatro baratas (as sibilas) e algumas traças de saudosa memória. 

Naquele mínimo universo, não havia liberalidades de espaço, de dinheiro (que se contava aos centavos para o ônibus e o prato feito do almoço) e muito menos de ternura.

Tudo minimalista.

Ele, as sibilas, as traças e os livros povoavam aquele território perdido, cercado de austeridade e solidão por todos os lados.

Sobre a pia da cozinha, o fogãozinho com duas pequenitas bocas. Essas bocas, como a dele, estavam sempre fechadas.

O calado morador não sabia e nem tinha disposição para cozinhar. Comer sozinho, todos os dias, deixa o cara desamparado. O que saía (ao amanhecer e antes de dormir) era uma singela e morna taça de café com leite, pão e manteiga.

Solidão, farelo de pão. A festa das baratas.

Lá fora, na rua, a ditadura militar.

Às sete horas da manhã (que é quando os justos abrem os olhos para o sol que roça a veneziana), ele ligava o radinho para ouvir Bom dia, Mano, o ensaio falado do filósofo, poeta e desembargador José Paulo Bisol.

A cortina musical era a linda Voo sobre o horizonte, tocada pelo conjunto Azymuth (o cd com essa e outras músicas acaba de ser relançado pela Livraria Cultura, na sua Coleção Cultura).

Aquele era o momento de reunir forças antes de ir para a batalha. A palavra do Bisol tinha afeto, esperança, companheirismo. Carregava uma energia capaz de empurrar o vivente para o núcleo duro da realidade.

Havia naquelas frases um entusiasmo, uma ideia de que tudo na vida é possível. E, naquela altura, era mesmo.

(Palavras acendem um coração apagado.)

Com o bornal ao ombro e uma esperança difusa no peito, o sobrevivente saía então para enfrentar o mundo.

Gracias, Mano Bisol!

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Presença

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Me tens aqui lutando
com secas palavras
para iluminar a treva
que nos reúne
em torno do lume
do poema

me tens aqui solidário
beirando a primavera
beirando os trintanos
com raros bens materiais
e nenhum privilégio
de credo ou classe

às vezes louco
às vezes patético
com poucos seres humanos
pra repartir
alguma coisa

me tens aqui poeta
num país injusto e sofrido
caminhando à beira de um rio

a sujeira flutua nas águas
os pobres equilibram-se
em perigosas palafitas

me tens aqui poeta lírico
cada dia mais lúcido

como a primavera
eu invado de repente
a sala adormecida
o coração desabitado

não tenho uma saída
para os dramas
que andam por aí

sequer possuo soluções
plausíveis
para os atrapalhos
cotidianos

o que posso oferecer
e ora ofereço
é essa canção discreta
para dissipar a sombra

um braçada de flores
no inverno

______

Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Rua sem sol

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Os antepassados
negros e italianos
rasgaram o oceano
para que eu estivesse aqui
no futuro
olhando o fim de tarde
no horizonte dos muros

não possuo do imigrante branco
a esperança eldorada
nem a saudade triste do preto
em pranto mastigada

sou apenas um homem mestiço
olhando o movimento dos barcos

agora que a noite cai
sobre a cidade
e me surpreendo sonhando
com a fuga
por uma rua sem sol

________________

Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Essa fome infinita

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Último dia do primeiro mês do ano. Alguém dirá: estamos apenas no começo.

Mas eu acho, nessa minha vã filosofia de viajante do tempo, que a locomotiva está correndo demais.

Não quero a velocidade do trem-bala. Gosto mais do ritmo da maria-fumaça.

Por favor, Seu Maquinista, mais devagar.

Quero ver a paisagem. Quero conhecer e trocar palavras com os outros passageiros.

Quero não chegar tão cedo a lugar nenhum, a nenhuma estação. Não tenho pressa.

Afinal, todas as viagens estão mesmo fadadas a chegar um dia.

Só quero o caminho. Essa fome infinita de viver.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O instante é nossa eternidade

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

A caminhada polifônica, essa que se faz para a observação da natureza e o alimento do espírito, precisa se adaptar às inclemências do clima.

O calor do verão dá muita canseira. Há quem goste (o que é de gosto regala a vida, diz o provérbio popular).

Quer dizer, um chapéu de palha é importante, assim também um cantil com água fresca, um borzeguim leve, não obstante robusto. Não esquecer, claro, telescópio, calepino e a Coruja, a câmara de revelar o mundo. Enfim, coisas do caminhante.

photo: j.finatto

Aqui na serra não se está de todo livre da força sufocante do astro-rei. Mas há a brisa generosa, o vento correndo nos cânions, os arroios, as árvores, sombras benignas.

As hortênsias já agora começam murchar, exaustas de tanta luz solar. Em compensação, inicia a vindima. O cheiro da uva nos parreirais e cestos de vime é uma promessa de felicidade. O sabor na boca das pretas, brancas e rosadas é pura epifania.

A polifonia andante demanda persistência, olhar inaugural e uma certa leveza no coração. Sim, leveza, sem a qual até o primitivo azul do céu nos oprime.

photo: j.finatto

O caminho oferece miradas. Lá longe, no vale, a casa branca entre os pinheiros. Crianças correm em volta. Uma mulher estende roupas no varal. São traços de tinta dentro da pintura.

Caminhemos, caminhemos sem pressa, disponíveis aos apelos do campo. Quem sabe encontraremos um bosque na beira do entardecer, pra descansar, fazer algumas anotações, sentir o tempo pulsar.

Somos figuras efêmeras numa irrepetível aquarela de verão. O instante é a nossa eternidade.

______________

Leia mais sobre a caminhada polifônica em O peixe da boca vermelha:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/04/o-peixe-da-boca-vermelha.html

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A nossa morte dos outros

Jorge Adelar Finatto

photo: Vítor Rios, Global Imagens, Jornal de Notícias, Portugal.

Em Lisboa, duas mulheres foram encontradas mortas no apartamento onde moravam, na Travessa do Convento de Jesus. Uma tinha 74 anos, a outra, 80. Uma vizinha estranhou que elas não atendiam a porta há dias e informou a polícia. Os corpos estavam em decomposição e foram retirados nessa quarta-feira, 25.

De acordo com os primeiros informes, eram irmãs. A mais nova sofria de câncer e cuidava da mais velha, que estava doente na cama. A senhora de 74 anos veio a falecer, após prolongada enfermidade. A outra, que dela dependia, ficou sem receber cuidados, água e alimentos, vindo a morrer também. 

A tragédia aconteceu em Lisboa, mas fatos semelhantes ocorrem diariamente pelo mundo. O brutal isolamento das pessoas está em toda a parte.

Entre velhos e crianças, esta realidade é ainda mais triste, porque normalmente são indefesos.

Morre-se no silêncio do abandono e no retiro da dor. Morre-se de qualquer jeito, sem assistência, longe do olhar das autoridades, dos parentes e amigos. Morre-se distante das redes sociais, como bicho, num dia qualquer de janeiro. Ninguém põe atenção nisso.

Afinal, todos estamos muito ocupados com a internet, e-mail, facebook, twitter, skype, blog e sei lá mais o quê. Nos comunicamos com o mundo inteiro a todo instante, mas não conseguimos cumprimentar e muito menos saber o que se passa com o vizinho de porta.

A história dessas duas senhoras é o retrato devastador de um tempo de solidão, onde se morre sem ter ao menos uma mão para segurar, porque essa mão afundou e já não pode nos valer no mar de sombras.