terça-feira, 27 de março de 2012

Uma livraria perto das nuvens

Jorge Adelar Finatto

photos: j.finatto


São Francisco de Paula é uma pequena cidade, na região dos Campos de Cima da Serra, no Rio Grande do Sul. A população beira as 20 mil almas. A paisagem é única no mundo, nunca vi nada parecido, nem nos livros, nem em viagens.


Os campos ondulam lentamente em todas as direções, encimados por bosques de pinheiros, atravessados por córregos, cortados por largas escarpas de basalto, a cerca de mil metros acima do nível do mar. Cachoeiras surgem de repente em meio ao verde. Faz muito frio no inverno, a temperatura média anual é de 14 graus.


Um dia desses descia eu de Passo dos Ausentes (1800 metros de altitude), quando resolvi parar em São Francisco para um cordial café. Eis que numa esquina avistei o enorme casarão.


O nome da livraria é Miragem. Uma quimera perto das nuvens, cheia de livros, objetos de arte, artesanato e um belo café, tudo resumido em dois mil e duzentos metros quadrados.


Uma descoberta assim a gente não deve guardar para si, seria egoísmo. Entrei para ficar uma hora, fiquei quatro. Há bancos de madeira entre as estantes para o visitante descansar, ler ou mesmo cochilar. Através das grandes janelas se vê o sol de outono lá fora. Minha obsessão por relógios foi plenamente recompensada, pois os há em abundância, de todos os tipos, espalhados nos quatro andares do prédio.

Um fragmento da antiga Biblioteca de Alexandria foi parar ali em São Francisco. Alfarrábios convivem com títulos modernos, o velho e o novo se misturando como convém, organizados por áreas e salas. Enfim, se eu fosse fazer uma livraria, acho que seria parecida com a Miragem, que surge como um remanso espiritual no deserto em que vivemos, aqui e em toda parte.


Saindo-se para o pátio da livraria (sim, a livraria tem um pátio), encontramos um amplo anexo para apresentações e leituras públicas. Na fachada consta a data de 1918. No meio do pátio, um plátano ainda jovem e variadas plantas.


No lado oposto ao anexo, o café com suas mesas e cadeiras de madeira, como antigamente. O cappuccino é dos melhores e tem pouca acidez. Os bolos caseiros são olorosos e irrepreensíveis. O único refrigerante vendido no local leva o nome de hidromel, feito de uma mistura de água e mel, fermentada, levemente gaseificada.

Se os dois leitores do blogue querem uma sugestão de livraria, está aí. Como se não bastasse, São Francisco de Paula fica no caminho para Passo dos Ausentes, que vem depois, a nordeste e mais acima, nos Campos de Cima do Esquecimento.




domingo, 25 de março de 2012

Menestrel virtual

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


O blogueiro é como o menestrel de antigamente. Leva na mão o alaúde. Entrega seu verso e sua prosa a quem quiser, em troca de um pouco de atenção.

Escrever num blogue tem virtudes. A principal delas é, talvez, evitar a derrubada de árvores para publicação de livros. O blogue se constrói no meio imaterial, não agride a natureza. É abstrato como um fantasma.

Ninguém cheira nem toca as páginas do blogue. Nesse sentido (como em muitos outros), o livro é insubstituível. A utilização do ambiente virtual é uma necessidade e uma saída diante da profusão de pessoas que estão escrevendo.

O autor do blogue pode alterar o que escreveu a qualquer tempo, e isto é importante para melhorar a qualidade do texto (principalmente em se tratando de blogue literário). O texto está em permanente construção.

No momento em que se pressiona a tecla "publicar", o conteúdo vai para o espaço infinito e pode ser lido por qualquer habitante deste e de outros planetas.
 
A solidão compartilhada dá um sentimento de companhia na dura vida da escrita.

Haverá, de fato, leitores interessados no que escrevemos? Ninguém sabe. Eu pelo menos não sei. O que importa é que o recado está na rede. As palavras estão à procura de quem as leia e, quem sabe, também as ame.

O blogueiro, tão parecido com o ancestral troglodita, vive ruminando e anotando na sua caverna virtual, em busca de comunicação.
 
__________________
 
Texto publicado em 9 de outubro, 2010.
 

quinta-feira, 22 de março de 2012

Vida bonsai

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
    
A `A a´´´´´ á ``a~a~a~a

Escrever é devorar o mundo com palavras.

á~â ``a  á`a

O escritório é um lugar silencioso, recolhido. O mapa das viagens sonhadas e nunca realizadas repousa sobre a mesa, cheio de anotações.

Alguns cravos vermelhos respiram na terra escura, no vaso perto da janela.

                                    b c d e f

Ao longe, a mata e a verde silhueta das montanhas. O voo azul e esquivo das últimas andorinhas nas escarpas, antes da partida ao hemisfério norte (a sempre procurada primavera).

O bonsai carrega dois figos pendentes sobre a escrivaninha.

A fonte, no velho tronco escuro, leva água para cima e para baixo, num movimento que lembra o incessante moinho circular da vida.

                                           l j m n hh   hh   çrt xt

O som da água escorrendo é mergulho e passagem dentro da luz.

A presença das pequenas coisas levanta a palavra da escuridão.

O outono inaugura novas seivas nos caules, nos corpos, nas almas.

O pássaro cabe na mão. Um livro é uma coisa singela. Um só olhar desvela todo o horizonte.

Vida pequena, vida possível, vida inventada

                                              uu uah  uauhhh   iih  êêêê

 

Bonsai de palavras, fresta de claridade no breu da escrita.

Letras brilhando na tela, voando como andorinhas, se projetando na infinita nuvem virtual. Em busca talvez de um olhar que as resgate da grande dispersão.

Agora é tempo de respirar fundo, habitar os aposentos interiores do outono, soltar palavras como pandorgas ao vento.


segunda-feira, 19 de março de 2012

O fantasma e o menino

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


O fantasma habita a alma do menino.

Oscar é como um parente antigo, desses que um dia batem na porta, com uma mala de couro pesada, uma roupa velha, sapatos cobertos de pó, trazendo no olhar todo desamparo desse mundo.

Em noites de vento, o menino ouve o barulho das correntes no porão. Oscar agita-se muito nas cercanias do outono. O menino é o único da casa que sabe da sua existência.

Não, o fantasma não está preso, nada o impede de ir para onde quiser. Simplesmente arrasta as correntes com as mãos de um lado para outro, numa espécie de desalento que não tem fim.

Oscar é um Sísifo condenado a recordar a vida e a todos que amou e perdeu. Arrasta as recordações pelas noites de outono adentro. Não há consolo na sua solidão.

Ele tem o cabelo muito branco, escorrido até os ombros, a pele da face rosada, as mãos solitárias. Veste bermuda cinza e uma camisa branca abotoada até o pescoço. Tem o semblante vazio.

Às vezes, o menino desce ao porão, tenta conversar. Mas ele não fala a respeito do seu viver tão fatigado.

Oscar toca violoncelo, na música deposita sua frágil e dolorida alma.

Nunca olhou o menino nos olhos. Olha para as paredes de pedra com um olhar vago de quem mira o mar de cima de uma montanha. 

O menino costuma deixar a luz do porão acesa, como uma rosa branca num vaso azul de porcelana.

Há coisas em relação às quais nada se pode fazer. Mas nem por isso o menino é triste. O sol de cada dia é sempre uma nova oportunidade.

O passado é algo estranho e insuportável.

O silêncio, às vezes, fala mais que qualquer palavra.

sábado, 17 de março de 2012

Primeiro informe do outono

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Uma certa luz

Este é o último sábado de verão. O próximo será outono. Chega ao fim o longo e suado estio. Os primeiros ocres e amarelos surgem nas folhas. É tempo de passagem para uma nova luz. Quaresma. O tempo das quaresmeiras em flor.


Um certo artista

Deus é um artista caprichoso e incomparável. Só ele tem paciência e tempo (a eternidade, no caso) para pintar folha por folha, ramo por ramo, galho por galho com tamanho engenho e arte. E sua caixa de lápis de cor não tem igual no universo.

O que é o fotógrafo da natureza, senão um mero copiador da obra Dele, sem nada pagar de direito autoral?


photo: j.finatto

Que a nova estação nos traga boas notícias nas cartas do vento.


Cavalo-Marinho

Uma das coisas mais bonitas que ouvi ultimamente é a música Cavalo-Marinho, de Cacaso e Nando Carneiro, na linda voz de Rosa Emília. Está no youtube, onde alguém colocou a canção com imagens do nascimento de um cavalo-marinho. Algo raro, emocionante:

 http://www.youtube.com/watch?v=h-jI0bObvVI

O poema de Cacaso é de uma simplicidade tocante:

                            Galopa cavalo marinho
                                    me ensina o caminho
                                    que devo tomar
                                    Solta as crinas no vento
                                    galopa no vento
                                    cavalo do mar

Está no livro Mar de Mineiro (poemas e canções), de 1982.


Balaio de uva na beira da estrada

Nessa época, quem anda pelas estradas da serra costuma encontrar tendas onde se vendem uvas em balaios de vime. Também oferecem queijos, frutas, verduras, embutidos, vinhos, chás, produtos coloniais e artesanais, chapéus de palha, além de boa conversa. As tendas estão à sombra de frondosos plátanos, cujas folhas começam a dourar. Sentir o cheiro e a frescura desses lugares é voltar um pouco na infância. Às vezes, lá longe, uma cascata branca escorre numa escarpa de antiquíssimo basalto.


photo: j.finatto


Milagres

Não acredito muito em milagres, mas que existem, existem. Tanto é que estou/estamos por aqui, em mais um outono de nossas vidas. Considerando as duras vicissitudes e os entrementes, isto não é pouca coisa.


sexta-feira, 16 de março de 2012

O poema como carta

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. 



O poema
como carta
sem destinatário certo
que não vai pela mão
                                do carteiro
mas chega a alguém
e é salvo da ironia
da gaveta



___________


Do livro O Habitante da Bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.

Conversas de escritores

Jorge Adelar Finatto

photo: jornalista José Rodrigues dos Santos

Há um bom programa de entrevistas com escritores na Rádio e Televisão de Portugal (RTP), que se chama Conversas de escritores. É apresentado pelo jornalista e escritor José Rodrigues dos Santos. O apresentador conversou com alguns dos autores mais importantes da literatura mundial, como o português José Saramago e o alemão Günter Grass, entre outros.

As entrevistas são muito bem conduzidas, com perguntas pertinentes e, sobretudo, com tempo para os entrevistados responderem (coisa rara nos meios de comunicação). Não há comerciais e tudo se passa como se a conversa acontecesse na nossa sala.

Caso queiram fazer uma visita, o acesso é pelo link:

RTP - CONVERSAS DE ESCRITORES

__________________

Fotografia: jornalista e escritor José Rodrigues dos Santos.
Fonte: http://www.livroseleituras.com