sexta-feira, 6 de julho de 2012
quarta-feira, 4 de julho de 2012
As intermitências da primavera
Jorge Adelar Finatto
photo: j.finatto |
O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás, azul e rosa o coração. O amor tocou músicas no som do carro e do apartamento. O amor tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.
Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem juntos ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.
Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer que ele não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem morar juntos.
Sente-se um morto-vivo sem aquela que o resgatou da solidão de náufrago. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar, procurar sentidos.
Uma colega de trabalho disse-lhe que ele era muito certinho. A vida não era.
Uma colega de trabalho disse-lhe que ele era muito certinho. A vida não era.
O fato é que, um dia, ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais.
A família que, no passado, foi unida agora vivia dividida, os irmãos quase não se convivem.
A mãe, que em vida teceu com dedos de cristal os frágeis laços do afeto familiar, morreu antes do tempo. Ninguém a substituiu na rara arte de evitar e, sobretudo, de colar os cacos. Os laços se partiram.
A mãe, que em vida teceu com dedos de cristal os frágeis laços do afeto familiar, morreu antes do tempo. Ninguém a substituiu na rara arte de evitar e, sobretudo, de colar os cacos. Os laços se partiram.
Ele voltou a viver no fundo da ilha. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os antigos amigos transformaram-se em conhecidos, foram casando, criando filhos, separando, mudando de rua, bairro, cidade, país.
O seu mundo de náufrago reduziu-se ao apartamento, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados e aos impiedosos dias de domingo.
Teve poucos relacionamentos depois, coisas fatigantes, sem nenhuma importância.
O seu mundo de náufrago reduziu-se ao apartamento, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados e aos impiedosos dias de domingo.
Teve poucos relacionamentos depois, coisas fatigantes, sem nenhuma importância.
O sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas memórias, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é pura diversão, pra ele é vertigem.
O lugar onde vive - a remota e inalcançável ilha - só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar doméstico ao deserto. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.
As hortênsias acendem as manhãs, iluminam a casa.
A janela é o ponto de referência dele no planeta.
Dali pode ver a praça e as pessoas, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.
De qualquer parte do universo um observador pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está na janela.
No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado no mundo.
O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.
A solidão o faz acariciar o gato invisível, na frente da televisão, até adormecer.
Se fez tratamento psiquiátrico sobre esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho a si mesmo, sem saber o que fazer com as mãos quando está sozinho.
O outono chegou com um cesto florido de lembranças.
Os dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.
A praça está vazia. Recorda-se dos dias em que caminhava com ela por ali.
A ausência da primavera faz o coração girar louco na ventania.
Se ao menos tivesse um gato de verdade.
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Texto revisto publicado em 17 de fevereiro, 2010.
terça-feira, 3 de julho de 2012
Ruy Castro e os discos de vinil
Jorge Adelar Finatto
photo:Ruy Castro (à esquerda) e Ivan Lessa. Autora: Heloísa Seixas. Divulgação |
Em belo artigo publicado domingo último, no caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo, o escritor e jornalista Ruy Castro recorda seu amigo Ivan Lessa, também jornalista e escritor, falecido em Londres, aos 77 anos, em junho passado.
O texto intitula-se Sonho de Ivan Lessa era estacionar no passado. Merece ser lido tanto pelo sabor literário que Ruy consegue dar ao que escreve como pelas informações que traz. Interessante, entre outras, a parte em que ele fala sobre a coleção de discos de vinil de Lessa. Começa assim:
"Quando os cds surgiram e tomaram a indústria fonográfica, em fins dos anos 80, todos os patetas do mundo nos desfizemos de nossas coleções de LPs. Era como se, de repente, aquele formato de disco que por 40 anos nos servira tão bem - e no qual nos habituáramos a ouvir a perfeição - se tornasse portador de lepra."
O texto intitula-se Sonho de Ivan Lessa era estacionar no passado. Merece ser lido tanto pelo sabor literário que Ruy consegue dar ao que escreve como pelas informações que traz. Interessante, entre outras, a parte em que ele fala sobre a coleção de discos de vinil de Lessa. Começa assim:
"Quando os cds surgiram e tomaram a indústria fonográfica, em fins dos anos 80, todos os patetas do mundo nos desfizemos de nossas coleções de LPs. Era como se, de repente, aquele formato de disco que por 40 anos nos servira tão bem - e no qual nos habituáramos a ouvir a perfeição - se tornasse portador de lepra."
Eis o acesso:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1112857-sonho-de-ivan-lessa-era-estacionar-no-passado.shtml
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A photo acima, que ilustra o artigo, está creditada a Heloísa Seixas, escritora, mulher de Ruy Castro.
Mais sobre discos de vinil:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/musica-de-todos-os-dias.html
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A photo acima, que ilustra o artigo, está creditada a Heloísa Seixas, escritora, mulher de Ruy Castro.
Mais sobre discos de vinil:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/musica-de-todos-os-dias.html
segunda-feira, 2 de julho de 2012
A música de todos os dias
Jorge Adelar Finatto
![]() |
photo: Edu da Gaita, 1959 |
Escrevi sobre o toca-discos que comprei para escutar meus velhos discos de vinil.* Agora estou na fase de limpar, organizar e, claro, ouvi-los. São todos elepês (long-play, disco grande), como se dizia, em oposição aos compactos. A experiência é uma feliz redescoberta.
Reencontro gravações primorosas. O som do vinil é o som original da gravação, com as nuances todas, os detalhes, a limpidez que não há no cd. Parece que existe mais transparência, como se estivéssemos na sala diante dos músicos. O som do cd soa mais abafado.
Talvez isso não passe de impressão, não sou expert no assunto. Mas como disse aquele velho filósofo grego, numa tarde de calor, sentado debaixo de uma oliveira, enquanto olhava o mar e os barcos, na beira do Mediterrâneo: o que é de gosto regala a vida. Acho mesmo um milagre que a simples passagem de uma agulha pelos microssulcos do vinil produza a maravilha.
Entre os discos que já organizei, estão Please, please me, Beatles, 1963; Minas, Milton Nascimento, 1975; Meus caros amigos, Chico Buarque, 1976; Feito em casa, Antonio Adolfo, 1977; Amoroso, João Gilberto, 1977; Sol do meio-dia, Egberto Gismonti, 1978; Edu da Gaita, Edu da Gaita, 1979; Roberto Sion, Roberto Sion, 1981; A música livre de Hermeto Paschoal, Hermeto Paschoal, 1985; Balãozinho, Eduardo Gudin, 1986; Canta, canta, minha gente, Martinho de Vila, 1988; Three windows, The modern Jazz Quartet, 1988; La grande réunion, Stephane Grappelli e Baden Powell, 1989; Grandes compositores, Dorival Caymmi, 1990; Cartola ao vivo, Cartola, 1991(gravação de 1978).
Talvez isso não passe de impressão, não sou expert no assunto. Mas como disse aquele velho filósofo grego, numa tarde de calor, sentado debaixo de uma oliveira, enquanto olhava o mar e os barcos, na beira do Mediterrâneo: o que é de gosto regala a vida. Acho mesmo um milagre que a simples passagem de uma agulha pelos microssulcos do vinil produza a maravilha.
Entre os discos que já organizei, estão Please, please me, Beatles, 1963; Minas, Milton Nascimento, 1975; Meus caros amigos, Chico Buarque, 1976; Feito em casa, Antonio Adolfo, 1977; Amoroso, João Gilberto, 1977; Sol do meio-dia, Egberto Gismonti, 1978; Edu da Gaita, Edu da Gaita, 1979; Roberto Sion, Roberto Sion, 1981; A música livre de Hermeto Paschoal, Hermeto Paschoal, 1985; Balãozinho, Eduardo Gudin, 1986; Canta, canta, minha gente, Martinho de Vila, 1988; Three windows, The modern Jazz Quartet, 1988; La grande réunion, Stephane Grappelli e Baden Powell, 1989; Grandes compositores, Dorival Caymmi, 1990; Cartola ao vivo, Cartola, 1991(gravação de 1978).
A arte das capas é, em geral, feita com capricho, havendo esmero na concepção e montagem de textos e imagens.
No disco do gaúcho Edu da Gaita (Eduardo Nadruz, 1916 - 1982), por exemplo, está reproduzida a página de sua carteira de trabalho onde, no campo profissão, foi registrado: músico excêntrico. O ilustre funcionário público escorregou no adjetivo. Desconhecia, talvez, que se tratava de um dos mais importantes e respeitados artistas brasileiros, senhor de uma carreira brilhante com seu instrumento, a harmônica de boca.
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*Uma viagem sentimental
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/uma-viagem-sentimental.html
Foto de Edu da Gaita: site oficial do artista:
http://www.edudagaita.com.br/
sexta-feira, 29 de junho de 2012
Risco luminoso
Jorge Adelar Finatto
photo: j.finatto |
O que nos liga à vida é um fio muito tênue. Traço de luz, sopro divino. A gente nunca sabe quando o encanto vai se quebrar. A obra do artista é grito em meio ao nada, risco luminoso na escuridão profunda. Aquele que cria acende a lamparina, levanta o archote. A arte registra o mistério e a fragilidade da nossa passagem pelo mundo.
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Risco, em espanhol, significa
penhasco alto e escarpado. Em português, uma acepção possível é de traço numa superfície, como papel, por
exemplo: um esboço, um desenho, uma gravura, uma fotografia, um texto.
Viver é sempre um risco, seja no sentido de uma narrativa ou de um perigo. Vivemos e corremos muitos riscos. O risco, inclusive, de um sentimento de leveza e felicidade.
Viver é sempre um risco, seja no sentido de uma narrativa ou de um perigo. Vivemos e corremos muitos riscos. O risco, inclusive, de um sentimento de leveza e felicidade.
terça-feira, 26 de junho de 2012
A casa do seu Wolf
A casa do seu Wolf era uma construção alemã em estilo bávaro, localizada na rua Lucas de Oliveira, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre. Às vezes passo por ali, pois é o caminho que faço a pé para a banca de jornal, quando estou na cidade. Sempre fico feliz de ver que a velha casa continua no mesmo lugar.
Uma majestosa araucaria angustifolia (pinheiro brasileiro) existe ainda no pátio em frente. Ao lado, algumas árvores resistem, como abacateiros que, nessa época de início de inverno, exibem rechonchudos abacates. O terreno da casa é íngreme, eleva-se para os fundos numa inclinação acentuada, mede cerca de 25 metros de frente por mais ou menos 100 de comprimento.
Quando tinha nove, dez anos, morei na rua Dona Eugênia, perto do seu Wolf. Havia poucos edifícios. Nas casas simples, algumas de madeira, viviam famílias de origem alemã, negra, portuguesa, uruguaia, judia, italiana e outras, numa diversidade humana típica do nosso país.
Éramos meninos e meninas pobres e remediados, formávamos uma comunidade fraterna. Brincávamos juntos quase todos os dias. Em festas como São João e carnaval, os adultos participavam. Eram comemorações feitas na rua, especialmente na Lucas.
De vez em quando, no forte verão, o seu Wolf e a mulher dele nos convidavam pra tomar banho na piscina que tinham entre pés de mamão, laranjeiras, uvas e canteiros de verduras. E lá passamos muitas tardes alegres da infância.
De vez em quando, no forte verão, o seu Wolf e a mulher dele nos convidavam pra tomar banho na piscina que tinham entre pés de mamão, laranjeiras, uvas e canteiros de verduras. E lá passamos muitas tardes alegres da infância.
Colho essa recordação toda vez que caminho naquela rua.
Sei que a vida de uma araucária pode durar bem mais de 200 anos. Parece muito. No entanto, certas lembranças vivem pela eternidade dentro de nós.
O que o coração diz é que a casa do seu Wolf, há muito tempo, já não é mais apenas a casa do seu Wolf. Um pedaço da nossa infância está lá, à sombra do vetusto pinheiro.
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sábado, 23 de junho de 2012
Cartas a um jovem poeta
Jorge Adelar Finatto
"As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. " ¹
Dois livros do poeta Rainer Maria Rilke (Praga, na época Áustria-Hungria, 4/12/ 1875 - Valmont, Suíça, 29/12/1926) marcaram para sempre a minha sensibilidade. São eles Cartas a um jovem poeta e Elegias de Duíno.
Rilke foi um escritor vigoroso, trabalhador, solitário e paciente, que experimentou, em toda profundidade, as dificuldades e alegrias do ofício de escrever. Construiu uma das obras mais importantes da literatura em língua alemã. Seu legado é universal e atrai leitores em todos os lugares do planeta.
Para ele, nada mais estranho ao universo da poesia e da criação do que a busca por notoriedade, a sede insaciável de autopromoção, o culto despudorado do próprio umbigo. Isto não produz a verdadeira obra de arte, mas a massa informe e pretensiosa de objetos que apenas simulam uma aproximação com o ato criador.
Para Rilke, que considerava indispensáveis a Bíblia e os livros do poeta e escritor dinamarquês Jens Peter Jacobsen, é necessário mergulhar na introspecção e no silêncio como alguém que vê, sente e nomeia o mundo pela primeira vez.
Nessas breves linhas, quero me deter um pouco em Cartas a um jovem poeta. É um livro composto por dez cartas que enviou, entre 1903 e 1908, ao jovem poeta Franz Xaver Kappus, que lhe pediu conselhos. Ao invés de deter-se na análise crítica dos textos - a que era avesso - procurou abordar questões concernentes à formação do indivíduo, ao mergulho na condição humana, ao convívio com a própria e irrenunciável solidão na busca de respostas.
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assinatura do poeta |
Diz-nos o autor:
"O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação."²
É um livro que se destina não apenas a pessoas que se interessam por poesia e literatura. Fala da vida em sua dimensão mais secreta e profunda, fala de circunspecção para tentar entender as coisas do mundo, os outros, para compreender melhor a si mesmo e talvez criar.
Não se trata de um professor que fala ao aprendiz, mas de um ser humano sensível que se dirige a outro e compartilha o que reuniu de melhor, de forma humilde e sincera.
As reflexões de Rilke sobre o fazer literário são preciosas: escrever só quando sentir necessidade, não dar muita atenção à opinião da crítica, evitar assuntos sentimentais, cuidar da linguagem, voltar-se para seu interior, sem deixar de observar o ambiente no qual se vive.
Mas não há receitas. Cada um faz o próprio caminho, é o que nos ensina o poeta.
Nestes tempos em que tudo tem sua expressão medida pelo valor comercial e midiático, a palavra de Rilke continua viva e fecunda, mostrando-nos que pode haver algo além da vaidade estéril e do entretenimento barato:
"A arte também é apenas uma maneira de viver. A gente pode preparar-se para ela sem o saber, vivendo de qualquer forma. Em tudo o que é verdadeiro, está-se mais perto dela do que nas falsas profissões meio-artísticas. Estas, dando a ilusão de uma proximidade da arte, praticamente negam e atacam a existência de qualquer arte. Assim o faz, mais ou menos, todo o jornalismo, quase toda a crítica e três quartos daquilo que se chama e se quer chamar literatura."³
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¹Cartas a um jovem poeta. Rainer Maria Rilke. Tradução de Paulo Rónai. Editora Globo, Porto Alegre, 1978, pág. 21.
² Idem, pág. 55.
³ Idem, págs. 75/76.
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